sexta-feira, 28 de março de 2025

Preparando-se para o pior

        A idade poderia ser encurtada ou esticada, dependendo da boa ou má vontade do observador. Também não chegava a ser um tipo incomum, apesar dos grandes olhos castanhos adornados com cílios tão grandes, que poderiam causar dúvida se eram originais ou postiços. Nem bonita nem feia, mas tinha lá seus encantos.

          — Stela.

          — De quê?

          — Colina. 

          — Colina?

          — Sim.

          — Nunca vi.

          — Na minha família tem um monte.

          — É óbvio que tem.

          — Conhece?

          — Conheço o quê?

          — A minha família.

          — Não! Por que conheceria?

          — É que você disse que era óbvio.

          Costumava fazer isso como uma forma de treino, já que carregava a dúvida sobre o dia de amanhã. Vá que os fascistas cheguem ao poder novamente.

          Stela Colina, diante dos alunos no curso de direito, fazia questão de promover um minuto de silêncio logo após adentrar no recinto. E, antes da plateia demonstrar inquietação, proferia: "Talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata."

          Tortura. Era esse o tema a ser tratado, enquanto opiniões diversas pululavam assim que a professora promovia o debate.

          — Sou contra!

          — Sou a favor!

          — Depende.

          — Depende do quê?

          — Ah, de quem for torturado?

          Stela, diante de tais opiniões, se dirigiu ao quadro e escreveu em letra garrafais: "A lei que não protege o meu inimigo não me serve." (Ruy Barbosa)

          — Professora, a senhora escreveu Ruy com ípsilon.    

          — Sim. Fiz isso em respeito à grafia que consta na certidão de nascimento e de todos os demais documentos de um dos nossos maiores juristas.

          Stela, assim que terminou a aula, viu os estudantes pegarem seus pertences e saírem da sala. Ela imaginou que, entre aqueles jovens, talvez um ou outro se tornasse proeminente figura pública. Pensou por algum tempo antes de ir embora e, sem mais se lembrar do caminho percorrido, logo se encontrava na varanda do apartamento, xícara de café nas mãos, tentando desvendar o que estava por detrás do horizonte, muitas vezes sombrio.

          — Stela.

          — De quê?

          — Colina. 

          — Colina?

          — Sim.

          — Nunca vi.

          — Na minha família tem um monte.

          — É óbvio que tem.

          — Conhece?

          — Conheço o quê?

          — A minha família.

          — Não! Por que conheceria?

          — É que você disse que era óbvio.  

          Vá que...

  • Nota de esclarecimento: O conto "Preparando-se para o pior" foi publicado por Notibras no dia 28/3/2025.
  • https://www.notibras.com/site/stela-pragmatica-via-a-tortura-sob-dois-angulos-depende-quem-seja-a-vitima/

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