segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A floresta

     Aquela floresta bem que poderia ser cenário de um filme de terror. Sim, é verdade que, durante a noite, o chirriar de alguma coruja pudesse causar calafrio na espinha até mesmo dos mais destemidos. Todavia, bastava surgir os primeiros raios solares para que todo esse medo fosse dissipado. Os cantos dos inúmeros pássaros tornavam aquele lugar o mais propício para uma agradável caminhada. 

     Pois foi justamente numa bela manhã, no início da primavera, que aquele jovem casal decidiu matar aula e se embrenhar por trilhas que os corações apaixonados anseiam conhecer. Analu e Hugo, de uniforme e mochila nas costas, rumaram para aquela mata, que soprava promessas de amor nos ouvidos daqueles enamorados. Eles aceitaram o convite quase de imediato, tamanha a impulsividade dos adolescentes. 

       Andaram algumas dezenas de metros mata adentro. A garota, receosa de que alguém ainda pudesse vê-los, quis ir mais adiante. O rapaz, apesar de ansioso, concordou. Caminharam 500 metros ou mais, até que pararam diante de uma enorme árvore. Deixaram as mochilas junto às raízes expostas. Ainda ofegantes, muito mais pela emoção do que pela caminhada, os dois se beijaram pela primeira vez. 

    Analu, mais experiente, orientava o namorado, que parecia perdido diante de tanta novidade. Encostada na árvore, a garota sentia os lábios do amado quando, de repente, ouviu um som seco. Assustada, abriu os olhos e viu a expressão morta do rapaz, que tombou ao seu lado. Ela mal teve tempo de gritar, pois uma enorme mão a suspendeu pelo pescoço, enquanto a outra, com uma enorme faca, abriu seu ventre. As tripas caíram no chão. A garota deu seu último suspiro antes daquele homem gigantesco a soltar. O corpo da jovem despencou e caiu próximo ao de Hugo, quase como se continuassem a se amar. 

      Naquela mesma noite, as famílias dos desaparecidos, desesperadas, procuraram em cada canto. Nada de Analu, nada de Hugo. Foram até a polícia, onde o delegado, o bonachão Andrade, disse que mais cedo ou mais tarde o casalzinho iria aparecer. Com certeza estavam escondidos por conta da proibição do namoro. 

        No dia seguinte, as buscas continuaram. Nenhuma pista. Prosseguiram por mais um mês, até que, finalmente, Andrade resolveu levar aquele sumiço a sério. Juntou uma turma de populares e vasculhou cada centímetro da cidade. Nenhuma pista. Até que a mãe de Analu sugeriu procurarem na floresta. Andrade, que estava com a roupa encharcada de suor, disse que iriam lá nas primeiras horas do dia seguinte.

        Apesar da chuva e da vontade de adiar a busca, Andrade achou por bem acabar por uma vez por todas com aquela situação. Aos quase 30 voluntários do dia anterior, juntaram-se mais de 40, inclusive o velho Horácio, que estava acompanhado de Sansão e Dalila, sua dupla de perdigueiros quase puros. 

        Diante da floresta, abriu-se um enorme arco humano. As buscas começaram. As fortes chuvas do mês haviam lavado todo o sangue. Os corpos dos jovens também não foram encontrados, talvez tivessem sido enterrados ou, então, devorados por animais selvagens. Todos sabiam que ali era região de onças, sem contar os inúmeros javalis, que haviam escapado ou que foram soltos por antigos criadores. 

        Depois de procurarem por quase a manhã inteira, eis que os cachorros latiram. O velho Horácio sabia que eles haviam encontrado algo. Ele correu ao encalço dos seus pupilos, que, estáticos, apontavam para uma moita ao pé de uma enorme árvore. Era o caderno de Analu, como logo reconheceu sua mãe. A mulher, com o coração apertado, abriu o caderno da filha e leu uma frase escrita com uma caligrafia desconhecida: "Analu, sinto que nossos destinos estão eternamente ligados!" Era a letra de Hugo.
  • Nota de esclarecimento: O conto "A floresta" foi publicado pelo Notibras no dia 4/8/2023.
  • https://www.notibras.com/site/analu-e-hugo-marcam-sua-uniao-ate-nas-trevas/
  • O conto "A floresta" faz parte da Antologia "Contos de Terror - MEDO" da editora Tenha Livros, 2023.


A linda mulher no cavalo branco


    Ataliba não conseguia se esquecer daquela mulher maravilhosa que conheceu há tempos. Não sabia exatamente se ela era real ou, então, fora simplesmente um sonho que havia sonhado em mais um momento durante a hora de almoço no trabalho. Na verdade, pelo que se lembrava, ela surgiu montada em um lindo cavalo branco, bem lá naquelas colinas. Todos ficaram boquiabertos com aquela figura tão esplendorosa, que poderia muito bem ter saído de uma tela de cinema. Talvez tenha sido isso mesmo, já que Ataliba amava os clássicos hollywoodianos dos anos 1950.

     Decidido a decifrar tal enigma, remexeu a ampla estante repleta de vídeos antigos. Espanou o velho videocassete. A poeira lhe causou uma tosse quase instantânea. Recomposto, conectou os fios à televisão. Passou todo o final de semana numa busca frenética por aquela mulher. Nada!!! Não havia Grace Kelly, Ingrid Bergman, Sophia Loren nem Elizabeth Taylor que pudesse substituí-la.  

    Na segunda-feira, as olheiras o acompanharam até o trabalho, e com ele permaneceram até sexta. Mal conseguiu prestar atenção ao serviço. Todavia, ninguém pareceu notar, pois todos estavam entretidos com suas tarefas. Talvez apenas Heloísa, a moça da copa, tenha percebido, já que Ataliba mal tocou nos inúmeros cafezinhos deixados em sua mesa. 
 
    Voltou para casa o mais rápido possível. Caminhou sem se dar conta de que havia esbarrado em pelo menos duas pessoas durante o trajeto. Uma o xingou, é verdade. Não se sabe se percebeu que tal injúria era para ele ou, então, simplesmente a ignorou, pois tinha uma missão a cumprir. Descobrir quem era aquela mulher havia se tornado uma obsessão. 

     Dezenas de filmes mais. Nada!!! Nenhuma imagem da sua amada. Sim, Ataliba agora tinha certeza de que amava aquela mulher. A paixão era o único sentimento que o impulsionava nessa busca incessante. E foi assim pelos próximos meses. A mesma rotina.

    Ataliba havia perdido alguns quilos. Mal sentia o gosto da comida, às vezes até se esquecia de se alimentar. Já nem se preocupava em fazer a barba, pentear os cabelos. A roupa amarrotada, a mesma que havia lhe feito companhia na última sexta-feira, lhe conferia o aspecto de desleixado. As olheiras completavam o cenário, que agora parecia de pura frustração.

     O homem adormeceu. A encantadora mulher, montada no lindo cavalo branco, finalmente surgiu bem diante dos seus olhos. Ela abriu o mais belo sorriso que Ataliba havia visto. Que emoção!!! O seu coração acelerou como nunca. Parou! Seu corpo só foi encontrado depois de quase uma semana. Os vizinhos começaram a reclamar do fedor vindo do apartamento daquele homem solitário. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "A linda mulher no cavalo branco" foi publicado pelo Notibras no dia 08/06/2023.
  • https://www.notibras.com/site/sonho-de-hollywood-de-ataliba-acaba-no-cemiterio/?fbclid=IwAR0mcaANChJG944c23Yrlf2jHcoYX_3bHj4YAKLXiE8bTVHrFgCgYztK4Ik

        

        

        

Carlota, a observadora


     Carlota, por detrás daqueles óculos escuros, usados até nas noites mais sombrias, adorava observar os outros. De tão observadora, era capaz de afirmar, sem qualquer sombra de dúvida, quantos passos cada membro da família dava até o banheiro todas as manhãs. Agnaldo, o marido, arrastava a perna esquerda por conta de um furúnculo mal curado. Todavia, o velho insistia em dizer que era por conta da guerra, mesmo que não tenha enfrentado qualquer uma, a não ser a luta contra lombrigueira durante a infância em Caxias, a famosa terra de Gonçalves Dias, tão cantada por Luiz Gonzaga. 

    Alberto e Roberto, os gêmeos, quase não paravam em casa, enquanto Sônia, a única dos três filhos que se sustentava e ainda ajudava nas despesas, andava à procura de um marido que prestasse. Os hormônios, cada vez mais ausentes, diziam que era agora ou nunca. 

        A velha adorava arrumar intriga com a filha, que era a mais nova. Não que Sônia fosse merecedora de tamanha perseguição. Era o que se pode chamar de boa filha. Por outro lado, era toda mimos com os gêmeos, dois notórios vagabundos no alto dos 50 anos. Os dois viviam como adolescentes, às custas da aposentadoria dos pais. É certo que de vez em quando conseguiam um emprego aqui e ali, mas logo eram despedidos por pura falta de compromisso com o horário e o trabalho. Atrasavam quase sempre, menos aos domingos e feriados, dias das folgas.

        Foi numa sexta-feira, durante o café da manhã, que Sônia resolveu contar a novidade, que tanto guardara por medo de não dar certo. Superstições, diriam alguns. Seja como for, ela se virou para os pais e os irmãos, todos sentados à mesa. Disse que precisava lhes contar algo muito bom, que mudaria a sua vida. Todos a olharam espantados, especialmente Carlota, que não conseguia disfarçar a ansiedade por detrás dos óculos escuros.

        Sônia, com um sorriso maior que a própria cara, disse que iria se casar com Juvenal, seu colega no Banco do Brasil. A família sabia muito bem quem era o tal homem, mas todos imaginaram que se tratava de apenas mais um namorico da parenta.  Carlota, sem saber nem mesmo os detalhes, já quis protestar. Ela, talvez por hábito herdado, precisava discordar da sua filha. 

        _ Veja bem! Você nem conhece o rapaz direito. Além do mais...

        A filha nem escutou as palavras da mãe ou, se ouviu, fez questão de fingir que não. O que se sabe é que o casório aconteceu no mês seguinte. Sônia e Juvenal se casaram apenas no civil. Até prometeram uma cerimônia para os mais chegados, coisa que nunca aconteceu. Saíram em lua de mel para João Pessoa. Gostaram tanto do lugar, que pediram para serem transferidos para uma agência naquela cidade. 

        Carlota andou calada por um bom tempo. Quase não dizia uma palavra sequer durante o café da manhã. Diante do marido manco e dos filhos, sentia falta de Sônia. Ela ouvia as idiotices de Roberto, ao mesmo tempo em que observava a cara de imbecil de Alberto.  Dois trastes inúteis! Foi a gota d'água que faltava. Naquele dia mesmo ela comprou duas passagens de ida: uma para ela e outra pro Agnaldo. Iriam visitar a filha e, finalmente, conhecer o neto, que, diziam, corria pelas areias da praia de Cabo Branco. Parece que gostaram tanto, que já faz mais de ano que não voltaram para casa, ali no Guará.
  • Nota de esclarecimento: A crônica "Carlota, a observadora" foi publicada pelo Notibras no dia 05/09/2023.
  • https://www.notibras.com/site/quem-casa-quer-casa-e-guara-e-trocado-por-praia/
        

         

domingo, 29 de janeiro de 2023

Jaime, o filósofo de araque

 

    Jaime, quase mudo, mantinha-se calado no trabalho, nas reuniões de família, nas festinhas de fim de ano. Gostava de se manter distante das discussões, pois preferia a paz à discórdia. E assim se mantinha livre de agressões verbais de alguém com ideias divergentes, mas também não atraía olhares apaixonados por possíveis mentes sinônimas.

    Aos 60 redondos, apenas duas coisas lhe transformavam num tagarela: bebida e botequim. Não um ou outro, mas um e outro. Somente essa combinação era capaz de tal façanha. Tanto assim, que Jaime arriscava teses filosóficas, algumas tão estapafúrdias, que fariam até mesmo um energúmeno ficar com um pé atrás. Só não ficaria com os dois porque, desse jeito, tombaria para frente e daria com a fuça no chão. 

    Uma das teses mais sem-noção foi a que Jaime tentou explicar naquele final de tarde no Boteco Benfica, famoso bar ali em Copacabana. Com um copo de chope na mão esquerda, Jaime ergueu a direita e afirmou com todas as letras: "O samba foi criado por um gaúcho que se chamava Castro!" Todos os pinguços presentes encararam o Jaime, que já estava pra lá de calibrado. 

    O filósofo de botequim pediu a atenção de todos, pois iria explicar. Entretanto, o que disse logo em seguida pareceu mais uma baboseira, como tantas outras que já haviam saído daquela boca. Deu um longo gole no chope, limpou o bigode com a língua, pousou a taça sobre o balcão. 

    _ Pois bem, meus amigos! O Castro, lá no final do século XIX, estava batucando numa mesa, quando seus amigos, admirados, se aproximaram. Ali também se encontrava o Samuel, que todos conheciam por Sam. Curioso, ele perguntou para o Castro que música era aquela. O Castro, como todo  gaúcho que se presa, respondeu: "Sam, bah! Sonhei com isso e gostei". 

 Diante de tamanha asneira, o Boteco Benfica esvaziou quase que instantaneamente. Outra consequência dessa teoria estapafúrdia foi o cartão vermelho que o Jaime tomou imediatamente. Dizem que o gancho durou o verão inteiro.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Jaime, o filósofo de araque" foi publicado por Notibras no dia 20/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/jaime-filosofo-de-araque-explica-origem-do-samba/

Abigail, a aristocrata


     Abigail, nascida de cesárea, era filha única da finada Francesca, uma buldogue que acompanhou madame Lola, a matriarca da família Leclerc. Podre de rica, a velha não poupava para manter o conforto da sua cachorra. Aliás, madame Lola já havia despedido dois empregados que se atreveram a chamar a nobre Abigail de Bibi. Onde já viu tamanha descompostura? Bibi? Pois madame Lola, quase aos berros, sem perder a classe, dizia que Abigail não era Ferreira, mas Leclerc. 

     Abigail Leclerc mal pisava no chão e, quando o fazia, era para dar uma volta pelo amplo jardim daquela mansão, tão invejada até pelos mais ricos do bairro. A cadela, assim como os herdeiros mais afortunados, possuía duas babás, além de cozinheira, manicure, estilista e guarda-costas pagos a peso de ouro. De tanta atenção que recebia, acabou por se tornar um pouco geniosa. 

    Durante suas festas de aniversário, todas comemoradas no dia dois de abril, alguns cães da vizinhança iam lhe fazer as honrarias. Abigail, apesar de ser a menor, sabia ser superior a todos. Tanto é que ela os olhava de cima para baixo, inclusive quando estava diante de Edgard, o enorme dogue alemão da família Medeiros. Até as pulgas sabiam se manter distantes daquele ser de sangue azul. Tanto é que a buldogue jamais havia se coçado ou, caso tivesse tido tal vontade, um dos serviçais o faria por ela. 

        Madame Lola amava a companhia da sua buldogue. Se estava na sala, Abigail estava ao seu lado no conforto do sofá. Se era hora de dormir, madame Lola nem precisava falar um ai com o servo de plantão. Bastava um olhar, que o empregado pegava Abigail com todo cuidado e a levava no colo até os aposentos reais.  Se fosse passar uma temporada em Paris, Abigail possuía até assento na primeira classe no avião. 

      Certa manhã, Irenilde, a cozinheira, precisou levar sua filha, a pequena Clara, para o trabalho. Madame Lola não se incomodou, mesmo porque não era tão má. Isto é, desde que a menina não passasse da cozinha. E foi o que aconteceu.

     No decorrer do dia, Abigail, que dormia tranquilamente no sofá, escutou a fina voz da Clara. Curiosa, quis saber de quem era. Para espanto de madame Lola, Abigail desceu do sofá e foi caminhando até a cozinha, onde se deparou com a filha da empregada. De imediato teve vontade de saltar sobre a menina, que sorriu aquele sorriso de criança. 

        Foi um corre-corre daqui, um corre-corre dali. Madame Lola ficou espantada com aquela situação. Quis brigar com Irenilde, mandá-la embora por justa causa. Ainda mais porque logo a criança e Abigail já estavam no jardim, onde a brincadeira parecia não ter fim. Todavia, diante da alegria da cachorra, nada fez. Dizem até que madame Lola aprendeu com a Abigail. Ela também desceu do seu pedestal. Além do mais, não raro, agora a velha ajuda a menina a catar algumas pulgas da Bibi. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Abigail, a aristocrata" foi publicado pelo Notibras no dia 5/2/2023. A pedido da direção do Notibras, foi feita pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal. 
  • https://www.notibras.com/site/abigail-aristocrata-mudou-madame-lola-geral/

        

sábado, 28 de janeiro de 2023

Ariosvaldo, o ladrão

    Ariosvaldo desde sempre teve um apreço pelos bens alheios. Não que fosse um cleptomaníaco, como a sua mãe insistia em dizer. talvez procurando uma desculpa para justificar essa mania do seu filho favorito, que era único, por sinal. Era mesmo um ladrão! Com todas as letras e exclamações. 

    Outra característica daquele rapaz era o amor pelos animais, especialmente pelos cães. Dizem até que havia pensado em se tornar veterinário, mas nunca tivera muito tutano para os estudos. Tanto é que a parte da escola que mais o havia encantado era justamente o sinal anunciando a hora da saída. Que alívio!!! 

    O rapaz foi crescendo e tentando aprimorar suas qualidades natas. No entanto, não foram poucas as empreitadas malsucedidas, que lhe valeram alguns bons anos no xilindró. Ninguém mais, além da dedicada genitora, acreditava mais na sua recuperação. Até porque todos já aguardavam a chegada da próxima viatura policial vir buscar o Ariosvaldo após mais um furto desastroso. 

   Pois era um domingo. Um domingo! Desses com tempo tão lindo, que todas as praias ficam abarrotadas de biquínis, maiôs e sunguinhas em vários tipos de corpos, a maioria não tão atraente assim. E lá estava o Ariosvaldo planejando mais um trabalho, que talvez fosse o último do ano. 

    Ele percebeu que a moradora mais rica do edifício em frente acabara de sair carregando todos os apetrechos de praia. Ariosvaldo sabia muito bem que ela morava sozinha. Não teve dúvida e, então, logo estava diante da porta de madeira do apartamento. 

      O ladrãozinho não conseguiria derrubar aquela barreira que o separava das inúmeras joias da ricaça. Isso, no entanto, não era empecilho para o gatuno. Ele sacou um clipe do seu bolso e, quebrando-o ao meio, começou a operação. De tão bom naquilo, Ariosvaldo logo ouviu o clique da fechadura. Abriu!!!

       Foi recebido por uma cadelinha, que pedia toda a atenção do ladrão. Ele afagou o animal, mas logo a deixou de lado. Precisava encontrar as joias. Abriu todas as gavetas, remexeu debaixo das roupas, mas nada de achá-las. 

      Ariosvaldo já estava quase desistindo, quando sentiu sede. Foi até a cozinha, abriu a geladeira. Uma garrafa de suco de laranja. Bebericou tudo, como se fosse um camelo no deserto. 

      Satisfeito, depositou a garrafa sobre a mesa. Eis que, bem ali naquela cestinha diante dos seus olhos, estavam as inúmeras joias. Abriu aquele sorriso, ao mesmo tempo em que tomou a cesta repleta em suas mãos. 

    Ele precisava sair logo daquele apartamento. Virou-se e foi em direção à porta, quando, então, a cachorrinha latiu pedindo mais carinho. Ariosvaldo, que sempre tivera coração mole, pegou a cadela no colo e fugiu. 

     Não demorou, atravessou a rua e foi em direção ao seu apartamento. Esbaforido, abriu a porta e logo se sentou no sofá da sala. Colocou a cachorrinha bem ao seu lado e, finalmente, quis conferir quanto havia sido o lucro do dia. Eis que, então, ele percebe que havia  esquecido a caixinha no apartamento da sua vítima. 
  • Nota de esclarecimento: O conto "Ariosvaldo, o ladrão" foi publicado pelo Notibras no dia 28/6/2023.
  • https://www.notibras.com/site/ariosvaldo-ladrao-trapalhao-leva-cadela-e-deixa-joias/

        
    
    
    

 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Se faz sucesso é bom!!! É mesmo???

                                        Lindy Naldo                                    Marcio Petracco
    Recentemente, um colega me disse que começaria a ler meus textos quando eu ficasse famoso. A princípio, pensei que o que ele estava dizendo era uma grande bobagem, como também a minha esposa, a Dona Irene, me falou depois que lhe contei o ocorrido. A minha filha do meio, pior, xingou esse meu colega sem nem mesmo nunca tê-lo visto. O palavrão? Creio que nem vale a pena mencionar, mesmo porque o objetivo aqui não é crucificar o meu amigo, que prefiro manter no anonimato. 

    Pois bem, depois de algum tempo, percebi que o meu colega não estava de todo errado. Quer dizer, não digo que não estivesse, talvez eu tenha escolhido as palavras erradas. O que quero dizer é que a atitude dele é comum entre boa parte das pessoas, que prefere ser direcionada por algum "especialista" para o que é bom ou não. Isso é péssimo!!!

    Provavelmente você deve estar com a pulga atrás da orelha. Afinal, quem sou eu para ir contra a análise quase científica de um crítico, seja musical, seja literário, seja de qual especialidade mais lhe convier? Bem, é simplesmente porque quem faz sucesso não é necessariamente bom. Aliás, tem muitos artistas, alguns bem famosos, que são péssimos! Todos sabemos disso, mas a maioria não se atreve a dizer. Obviamente que também há aqueles incrivelmente talentosos, que podem ou não ter fama. 

    Para não me alongar, vou citar um artista não famoso, que é um dos cantores dos quais mais aprecio. Já cansei de assistir a shows e mais shows dele. O nome da criatura? Ah, Lindy Naldo! Talvez você, que more no Rio de Janeiro, já tenha assistido a algum espetáculo do Lindy, ainda mais se frequenta Copacabana. Excelente cantor, muito eclético, carismático, é o que costumamos dizer tudo de bom!!!

    Aproveitando que estamos falando de Copacabana, basta bater perna pelo calçadão mais famoso do mundo, onde você poderá facilmente se deparar com vários artistas maravilhosos, sejam pintores, escultores, músicos. Tal local é um reflexo do que ocorre no restante do país, repleto de pessoas extremamente talentosas, mas que ainda não tiveram o reconhecimento de um "especialista" para se consagrarem. Provavelmente, nunca terão. 

    Da Cidade Maravilhosa, vamos dar um pulo até a linda Porto Alegre. Pois é, ali mora um grande músico chamado Marcio Petracco. É possível que esse nome não lhe seja estranho, já que o Marcio foi integrante da antiga banda TNT, que apareceu até mesmo no Show da Xuxa, entre outros programas da televisão. 

    O TNT não existe há tempos, para desespero de alguns fãs, que ainda hoje pedem o seu retorno. Acreditem!!! Isso é verdade, ainda mais se você é da capital gaúcha. Creio que o TNT está para Porto Alegre assim como os Beatles estão para Liverpool. Exagero? Talvez seja.

    A antiga banda do Marcio era ruim? Não. Era boa? Prefiro não responder, mas você pode facilmente fazer uma pesquisa na internet ou acessar algumas músicas no Spotify. Tire as suas próprias conclusões. Afinal, não sou um "especialista" no assunto. Todavia, já que você está tão disposto para descobrir coisas sobre o TNT, aproveite e busque algo também sobre o que o Marcio Petracco anda fazendo. 

  Pois é, o antigo guitarrista dessa extinta banda gaúcha, na sua incessante busca musical, trilhou caminhos que, talvez, não chame a atenção daquele tal "especialista". É que o Marcio está longe das rimas fáceis, das batidas previsíveis, da "nova onda" que a todos contagia, desde que respaldada pelo consentimento prévio do "especialista". É verdade que o Marcio quase não aparece na mídia, especialmente na televisão. Entretanto, toda vez que se apresenta, a plateia, mesmo que seja composta por apenas algumas dezenas de indivíduos, fica extremamente eufórica. O cara é bom!!!

    Outra questão sobre a fama é a situação do artista que se torna refém do próprio sucesso. Não raro, um cantor é quase obrigado pelo público a cantar sempre as mesmas músicas. Isso, aliás, pode tornar  sua carreira extremamente limitada, pois muitos temem a rejeição do próprio público que o aplaude. 

    Artistas extremamente famosos, inclusive megaestrelas mundiais, são afetados por isso. Caso você não acredite, faça uma pequena busca na internet e assista aos shows do Elvis ou dos Rolling Stones. As músicas, até em espaços de anos, se repetem. O próprio Marcio sofre um pouco com esse quadro, já que é comum ele se apresentar em algum local e as pessoas o instigarem a cantar os antigos sucessos do TNT. 

    Voltando ao meu amigo anônimo, que se chama Almeidinha, parece que ele anda lendo minhas crônicas e contos. Não sei o que o levou a mudar de ideia. Talvez seja porque soube que alguns textos de minha autoria andam saindo pelo Notibras.  

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Se faz sucesso é bom!!! É mesmo???" foi publicada pelo Notibras no dia 26/09/2023.
  • https://www.notibras.com/site/subir-sem-ter-caido-e-porque-e-bom-e-faz-sucesso/

sábado, 21 de janeiro de 2023

Godofredo, Onofrina e Café

    Godofredo teria por volta dos 15 anos quando encontrou aquele mirrado cachorro dentro de uma caixa de papelão bem em frente ao portão de sua casa. Antes até de pensar no que faria com aquele pulguento, deu-lhe o nome, ali mesmo, de Café. Não que fosse preto, mas simplesmente porque Godofredo estava com uma xícara nas mãos dessa famosa iguaria nacional.

    Não demorou, o rapaz pegou o filhote no colo. Pela sua experiência, que na verdade não era muita, supôs que aquele cachorro deveria ter no máximo um mês, talvez até dois. Não tinha certeza disso nem se a mãe, Onofrina, aceitaria um novo inquilino no barraco. 

    Não só aceitou, como o acolheu com muitos mimos. A despeito de tais agrados, Café não desgrudava do Godofredo. Mas também andava nos calcanhares da Onofrina, especialmente para pegar uma migalha de pão. A mulher, por sua vez, não conseguia resistir àqueles olhos pidões. 

   Café deu uma espichada, mas nada que lhe fizesse alçar à categoria dos cães médios, muito menos dos grandes. Era pequeno e olhe lá. Alguns o classificavam de quase rato, mas não como as robustas ratazanas da região. Café não passava de um camundongo! Tanto é que amava se aconchegar nas mãos do Godofredo. 

  No primeiro aniversário, o cachorro ganhou de presente uma salsicha. Ele a devorou quase que instantaneamente. Todavia, eis que passou quase uma semana vomitando os bofes, além de emporcalhar a casa com uma diarreia daquelas. Não morreu por milagre ou, então, devido aos cuidados da Onofrina e do Godofredo, que sofreram quase tanto quanto o bichinho por dias.

   Veio o segundo ano de vida do vira-lata. Nada mais de salsicha. Ganhou uma bolinha, que passou a ser o seu brinquedo preferido. E não importava quantas vezes Godofredo jogasse a bolinha, lá ia o cãozinho buscá-la. E ficavam assim por algum tempo, até que o Café era mais língua que cachorro. 

    Os anos seguintes vieram com uma rapidez não percebida por aquela gente. Godofredo já passara dos 30, mas continuava fiel ao seu companheiro, que já não tinha forças para correr atrás da bolinha. Esta, de tão gasta pelo tempo, permanecia intacta no canto do quarto. Onofrina continuava deixando as migalhas de pão caírem da mesa, que eram devoradas pelo agora quase desdentado Café. 

   Pouco antes do dia de finados, Café decidiu antecipar a sua partida. Dormiu nas mãos do Godofredo e não mais despertou. Ou, se o fez, deve ter sido no Céu dos cães, onde, dizem, há muitas migalhas de pão. 

  Foi uma comoção só! Com o coração apertado, lá foi o Godofredo enterrar seu melhor amigo. Arrumou uma caixinha de papelão, quase igual àquela na qual encontrou o Café. Acomodou-o cuidadosamente e o enterrou ali em frente ao barraco. Chorou todas as noites possíveis abraçado à mãe, que também verteu muitas lágrimas.

   Apesar dos quase 10 anos seguintes, Café ainda era assunto recorrente entre mãe e filho. Entretanto, aquela dor da perda passara, há tempos, a lembranças de momentos de alegria vividos pelo então trio.

  Certa manhã, Godofredo acordou com um sorriso no rosto. Havia sonhado com o Café, que corria atrás da bolinha em um lindo gramado verdinho. Não teve dúvida, foi jogar no jogo do bicho. 

   Ganhou uma bolada! Não ficou rico, é verdade, mas deu entrada num quarto e sala na rua lá embaixo. Fez a mudança assim que possível. 

   Já instalados na nova moradia, Godofredo deu de presente para a mãe um jarro de flores, mas sem flores. Apenas terra e nada mais. Onofrina apenas observou o filho depositando aquele objeto ao lado do sofá. Em seguida, Godofredo enterrou alguns ossinhos no vaso. A mãe, com os olhos marejados, abraçou o filho

    _ Eu sabia que você faria isso. Você não abandona os que ama!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Godofredo, Onofrina e Café" foi publicado pelo Notibras no dia 25/01/2023. Por solicitação do editor, a história sofreu uma leve mudança para que se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/godofredo-onofrina-e-cafe-uma-historia-de-amor/


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Luzia, a baixinha

    Luzia nasceu pequena, cresceu menos que a maioria, tornou-se uma mulher de pouco mais de 1,50 m. Parecia não se incomodar com as diversas piadas da família e dos amigos, mesmo que boa parte deles nem chegasse a 1,60 m. Até ria da situação, e acabou gostando quando alguém lhe disse que os melhores perfumes vinham sempre em frascos menores. 

   Da sua pequena cidade natal no Maranhão, foi ainda bem jovem tentar a sorte no Rio de Janeiro. Arrumou um emprego em uma loja de couros ali na rua da Passagem, em Botafogo. Toda sorriso, logo conquistou os clientes, que só queriam ser atendidos por ela. O patrão, obviamente, gostou, já que os lucros aumentaram substancialmente. 

    Não demorou, a maranhense passou a ser conhecida naquela parte do bairro. Dessa forma, toda vez que saía para fazer algo na rua, era parada para uma conversa, mesmo que fugaz, com alguém, seja o porteiro de um dos edifícios, seja o atendente da lanchonete na esquina, seja até mesmo um dos ambulantes ali pertinho do metrô. De tão enturmada, Luzia já se sentia parte daquele lugar, apesar da saudade da sua terra ainda lhe fazer companhia, especialmente nas noites solitárias. 

    Naquela manhã, tudo parecia como nos dias anteriores. Calçou a sua rasteirinha e foi trabalhar. Já na loja, Luzia andava de um lado para o outro, tentava dar atenção a toda aquela gente, que parecia só querer ser atendida por ela. Que correria! Todavia, pareceu valer a pena, pois, quase no final do expediente, eis que a maranhense recebeu uma polpuda gorjeta de um senhor, que nem era freguês de longa data, mas que de cara se simpatizou pelo largo sorriso da jovem mulher. 

    Final de expediente, Luzia foi caminhar pela calçada da rua Voluntários da Pátria, quando se deparou com uma vitrine cheia de manequins usando vestidos, saias e blusinhas. Diante do vidro, bem que se imaginou com aquelas roupas. Com certeza algumas lhe cairiam muito bem, pois formosura era o que não faltava naquele corpo trigueiro. 

   Quase decidida a gastar a sua pequena loteria, eis que ela desviou o olhar para o canto. Ficou encantada por aquele sapato de salto alto. Vermelho! Totalmente vermelho, caso não fossem pelas pequenas fivelas prateadas que lhe conferiam um ar de sofisticação ainda maior. Não teve dúvida! Comprou aquele mimo!

 Mal chegou ao seu pequeno apartamento, jogou a rasteirinha para debaixo do sofá. Seus pés deslizaram por aquela forma delicada, como se fosse uma criança brincando no escorrega de um parquinho qualquer. Ergueu-se de tal forma, que todas as vértebras de sua coluna pareceram estalar. Caminhou até o enorme espelho do seu quarto. No entanto, antes que pudesse se apreciar, a campainha tocou.

    Era Josivaldo, o porteiro. Ele, que até era alguns milímetros mais alto que Luzia, se surpreendeu quando ela o atendeu. Graças aos quase 15 centímetros de salto, a maranhense o olhava de cima para baixo. Luzia se sentiu poderosa!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Luzia, a baixinha" foi publicadp pelo Notibras no dia 23/7/2023. Por solicitação da redação do jornal, foi acrescentado um parágrafo para incluir Brasília na história.
  • https://www.notibras.com/site/saindo-do-maranhao-para-brasilia-via-rio-de-janeiro/

sábado, 14 de janeiro de 2023

Valdete e o carnaval

    Valdete havia se casado antes dos 16, quando acabou engravidando do primeiro namorado, Carlos. Já com os filhos criados, pensou até em arrumar um emprego, mas foi desencorajada pelo marido, que gostava de ser o provedor. No entanto, o salário era curto para atender até mesmo as necessidades básicas. 

   Questão de honra resolvida, Carlos sempre arrumava uma desculpa para suas escapadas. Não foi diferente naquela véspera de carnaval, quando ele disse que precisava viajar a trabalho. Valdete, talvez cansada do marido, gostou da ideia, mas fingiu tristeza. 

    _ Você precisa mesmo ir, meu amor?

    _ Minha flor, o chefe pediu. E a gente está precisando dessa grana. 

    No sábado, a mulher acordou sozinha na cama. Abriu os braços, se espreguiçou toda, sorriu para o teto. Passaria um feriado sozinha. Nada de cozinhar, lavar, passar, varrer a poeira pra calçada. Aos 40, estava finalmente se sentindo um pouco livre, mesmo que tal liberdade tivesse prazo de validade.

    Demorou a se levantar, até que sentiu vontade de ouvir um samba na voz da sua favorita: Beth Carvalho. Colocou "Vou festejar" e até arriscou uns passos, que resgatou das longínquas memórias de um antigo baile, quando não passava de uma menina espevitada ali mesmo em Madureira. Sambou!

    No final da manhã, xícara de café na mão, foi olhar o movimento da rua. Algumas pessoas festejando, mas nada comparado às saudosas lembranças de Valdete. Bateu-lhe um sentimento de nostalgia, como se tudo no passado fosse melhor. Talvez estivesse certa, talvez fosse apenas o desejo de voltar a ter aquele corpinho de mocinha na flor da idade. Não que ela não fosse atraente, pois ainda sabia se fazer desejada.

    Sentiu um pouco de fome, preparou um sanduíche de queijo e presunto. Entediada, largou quase metade no prato. Perambulou pela casa vazia. Sentou no sofá da sala, pegou uma das almofadas ao lado e, carente, a abraçou bem forte. Acabou por adormecer ali mesmo.

    Valdete despertou com o som de pagode vindo da rua. Levantou e, descalça, caminhou até a janela, de onde pode vislumbrar um bloco de carnaval. Aqueles corpos felizes fizeram a mulher querer participar daquele cortejo. A dúvida, porém, a impediu por alguns instantes. Pois é, não demorou e lá estava a Valdete sambando toda sua alegria reprimida por anos.

   Como o tempo voa quando estamos felizes, a noite logo chegou. O bloco ganhou vários outros adeptos, entre os quais o Luiz, homem forjado ali mesmo no famoso bairro carioca. Viúvo, desde então não conseguiu se firmar em relacionamento sério. Não que não quisesse, pois não gostava de ficar pulando de galho em galho. Mas as tentações eram tamanhas, que ele acabou se acostumando com a situação. 

    Lá pelas tantas, calhou daqueles dois se encararem. Valdete, a princípio, desviou os olhos, mas logo encarou aqueles olhos escuros do Luiz. Os dois sorriram, meio sem jeito, é verdade. Seja como for, não demorou e estavam dançando bem pertinho, pertinho até demais. Mas era carnaval e, por isso mesmo, estava tudo bem. 

    Não tardou e o "Deixa disso!" se transformou no "Que beijo gostoso você tem!" Terminaram a noite no pequeno apartamento do Luiz, onde se amaram até perderem as forças para mais uma roda de samba. 

    No início da tarde, Valdete, totalmente despida, despertou assustada, como se não se lembrasse de onde estava. Luiz, bem à sua frente, lhe trazia uma bandeja com café, leite, manteiga e algumas torradas. Ele sorriu, ela sentiu vontade de cair nos seus braços novamente. E foi o que fez, enquanto o café esfriava na bandeja ao lado. 

    Valdete e Luiz sambaram e se amaram em todos os dias de carnaval, até que, já na manhã da quarta-feira de cinzas, os dois se despediram. Promessas de que ainda se veriam, mas nem eles sabiam se seriam cumpridas. Ela voltou para sua casa, onde seu marido não tardou a chegar. 

    Carlos estava bronzeado, como se tivesse passado esses dias na praia. A esposa não pareceu ligar, talvez nem tenha percebido, pois seu pensamento estava envolvido nos braços de Luiz. 

    _ Minha flor, que olhar mais triste é esse? Sentiu falta do seu Carlão?

    _ Você nem imagina o quanto, meu amor!

  • Nota de esclarecimento: O texto "Valdete e o carnaval" saiu na coletânea "E o Carnaval Voltou!" da editora Persona, de 2023. O texto de orelha de tal livro é de autoria de Eduardo Martínez.
  • O conto "Valdete e o carnaval" foi publicado por Notibras em 10/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/esposa-traida-cai-na-folia-como-nova-colombina/

Um dia na vida de Adélia

    Adélia abriu a porta do seu apartamento na rua Voluntários da Pátria, ali em Botafogo. Deixou a bolsa sobre o sofá, em seguida rumou para a sacada. Debruçou-se sobre o parapeito, observou o movimento da rua lá embaixo. Suspirou, como que aliviada por estar finalmente livre da rotina de acordar cedo, tomar café às pressas, calçar o incômodo sapato de salto alto e ir para o trabalho.

    Aposentada! Nem acreditava que havia conseguido! Quase 30 anos no mesmo banco, onde tomara posse aos 23, logo depois de ter se formado em economia. Alguns anos antes, foi convencida pelo pai de abandonar o sonho de ser veterinária. 

    Cercada de números, deixou cada vez mais enterradas as lembranças da infância, quando passava horas ao lado do Pancho, o buldogue que ganhara de sua falecida avó. Eram tão próximos, que a então menina fazia bico se alguém tentava separá-los. Adélia levou um tempo para entender que o cachorro não poderia ir para a escola, mas isso não foi empecilho para que os dois fizessem os deveres de casa juntos. 

    Talvez pela liberdade que pareceu sentir naquele dia, as lembranças desse tempo de cumplicidade com o seu Pancho, que há décadas havia partido para o além, voltaram com uma força impossível de ser evitada. Adélia, nostálgica, desejou ter um cachorro, quem sabe um outro buldogue. No entanto, tal pensamento foi interrompido pelo barulho insistente do telefone tocando. 

    Era sua mãe, Áurea, que há muito ficara viúva. As duas marcaram para o dia seguinte um almoço. A velha também morava sozinha, mas no bairro ao lado, Copacabana.  Não eram amigas, mas mantinham uma boa relação familiar, cheia de aparências. 

     Mal entrou no apartamento da mãe, Adélia pareceu sentir o cheiro inconfundível do seu Pancho. Ela seguiu seus sentidos e encontrou seu cachorro em uma antiga fotografia emoldurada na parede ao lado. Pancho e a menina Adélia debruçados na mesa da sala. Não havia mais menina, não havia mais Pancho, mas a mesa continuava, quase intacta, ali no centro do cômodo. 

    Comeram lasanha, receita antiga de família. Falaram pouco, trocaram alguns olhares. Rusgas antigas. De tão calejadas, Áurea e Adélia pareciam não ligar. Era assim e assim deveria continuar. Despediram-se logo após o cafezinho na mesinha de centro.

    Adélia resolveu caminhar um pouco além da estação de metrô mais próxima. Foi até a  Cardeal Arcoverde. Por impulso, não entrou. Rumou para a praça do Lido, onde teve vontade de comprar algo na feira. Passou de banca em banca, mas nada. Algo a estava incomodando. Foi até a praia. 

     Sentada na areia diante do mar, não prestava atenção nas ondas que vinham e voltavam, lambendo seus pés. Teve vontade de pular na água, desejo que logo se cumpriu. Por algum tempo, se sentiu criança novamente.

    Já no famoso calçadão de pedras portuguesas, não pareceu se incomodar com o vestido molhado, a areia grudada nos pés e pernas. O sorriso estampou sua face. Caminhou até a rua Ministro Viveiros de Castro. Pessoas perambulavam por todos os cantos, indo e vindo, até que ela foi despertada pelo barulho de uma freada brusca de um automóvel ali perto. 

    A princípio, Adélia não entendeu aquela situação, até que avistou um cachorrinho magrelo correndo assustado. Um filhote! Por puro instinto, ela foi em seu encalço. E, depois de certa perseguição, Adélia conseguiu pegá-lo no colo. Chamou um táxi e logo estava em seu apartamento.

    Arrumou um potinho para água, outro para ração. Não tinha ração, ela pegou um pouco de carne na geladeira. Mal colocou no pote, eis que o novo hóspede, faminto como um cachorro em situação de rua, devorou tudo. Adélia pensou em lhe dar o nome de Pancho, até que percebeu que se tratava de uma menina. Não teve dúvida, passou a chamá-la de Villa.  
  • Nota de esclarecimento: O conto "Um dia na vida de Adélia" foi publicado pelo Notibras em 20/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/um-dia-na-vida-de-adelia-sem-pancho-com-menina/
       

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Sorvete de abacaxi

    Não sei se foi amor à primeira vista. Todavia, até onde me consta, houve uma atração tão intensa entre aqueles dois desde o instante em que trocaram olhares. Ele a convidou para um sorvete, que ela desejou de abacaxi. Ele sorriu e disse que aquilo era um presságio, já que era também o seu sabor favorito. Mentiu, como depois ela acabou descobrindo que era de morango. 

    Após se lambuzarem de tanto sorvete de abacaxi, foram passear, quando ela parou diante de uma livraria. Parecia encantada. Ele, talvez para fazê-la ainda mais interessada, lhe disse que era escritor. Obviamente que ela não acreditou. Sorriu aquele sorriso que só os sarcásticos possuem, enquanto o puxou pelo braço para que continuassem o passeio. Algum tempo depois, surpresa, ela descobriu que ele não havia mentido. 

    Ela logo demonstrou que estava apaixonada. Ele, que também estava, parecia reticente, ainda mais porque era bem mais velho. De tanto insistir naquele relacionamento fadado ao fracasso pela barreira etária, ela, muito mais sábia, o convenceu de que haviam nascido um para o outro.

     _ Você tem consciência de que está fadada a ser viúva?

     _ E daí?

     _ E se eu morrer daqui um ano?

     _ Que delícia será passar um ano inteirinho ao seu lado!

    Até onde sei, parece que os dois continuam se amando, já que irão completar 12 anos juntos no próximo mês. O tempo parece que os uniu ainda mais. Ela foi brindada com alguns anos, é verdade, mas ele também foi presenteado com um pouco de sapiência. 
  • Nota de esclarecimento: A crônica "Sorvete de abacaxi" foi publicada pelo Notibras no dia 02/08/2023.
  • https://www.notibras.com/site/pegadinha-de-morango-faz-casal-viver-amor-eterno/

  

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Argemiro, o deprimido

        Argemiro vivia deprimido, independentemente das coisas que aconteciam ao seu redor. Até quando ganhou uma bolada no jogo do bicho, não deixou de lamentar a suposta falta de sorte. É que ele era do tipo que sempre considerava o copo meio vazio ou, então, a galinha do vizinho mais gorda. 

        Se chovia, Argemiro queria sol. Se fizesse aquele tempo de se esbaldar na praia, eis que ele rogava pra que São Pedro abrisse todas as torneiras do céu. Vivia de lamúrias, como se elas lhe fossem sopros de vida, mesmo que ele desejasse a morte a todo instante. 

        Carregado de angústias, Argemiro decidiu naquela manhã terminar com tudo. Olhou-se no espelho do banheiro, pensou em fazer a barba. Deixou pra lá tal ideia, até que mudou seu pensamento. Não queria deixar para ninguém a tarefa de lhe passar a navalha na face para dar uma aparência melhor ao defunto. 

      Escolheu o terno mais apropriado com a aura que o perseguia. Cinza chumbo, tão pesado que os ombros se curvavam. Não suportando mais tamanha tristeza, pegou o ônibus direto para o cemitério São João Batista, ali em Botafogo. Apesar dos inúmeros assentos disponíveis, preferiu continuar no seu calvário, tão firme como um castelo de areia. Manteve-se em pé.

   Desceu cinco pontos após o São João Batista. Era questão de honra vencer mais alguns bons  quilômetros com aqueles sapatos apertados, dois números abaixo do seu.  O sol escaldante batia justamente sobre a sua calvície avançada. A pele do cocuruto estava tão castigada, que o vermelho a tomava por completo. 

       Decidido, transpôs o portão do cemitério. Queria porque queria acabar com a própria vida diante do túmulo da sua finada mãe. Pensou que ele estaria mais à direita, mas não o encontrou. Caminhou no sentido oposto, mas nada de encontrar o local do repouso final da sua genitora. Cansado, acabou por se sentar diante de uma lápide, onde havia a fotografia carcomida de uma velha e, logo abaixo, as seguintes palavras: "Tá fazendo o quê aqui? Vá à praia!!!"

  • Nota de esclarecimento: O conto "Argemiro, o deprimido" foi publicada pelo Notibras no dia 14/8/2023. Por uma solicitação da redação do jornal, foram feitas algumas modificações no texto para que a história se passasse no Distrito Federal. 
  • https://www.notibras.com/site/lapide-carcomida-faz-argemiro-ir-para-a-praia/

Cleide, Renê e o xis

   Cleide e Renê formavam um dos casais mais invejados de um dos tradicionais bairros de Porto Alegre, o Menino Deus. Relativamente jovens, ela ainda não contava com 40, enquanto ele há pouco havia ultrapassado a barreira dos 50. Pareciam felizes, ainda mais porque continuavam a sair de mãos dadas pelas largas ruas da cidade. 

   Poucos sabiam, no entanto, que os dois eram seres humanos muito competitivos. Não gostavam de perder, mesmo que fosse em uma simples adivinhação de qual a cor da blusa da próxima pessoa que iria cruzar a esquina. Todavia, esse espírito de competição não os afastava. Pelo contrário, eram cada vez mais unidos, tipo queijo e goiabada. 

   Apaixonados por futebol, torciam ferozmente para o mesmo time. Aliás, essa foi a desculpa que os aproximou há quase uma década, quando os dois estavam sentados em mesas próximas em um bar durante uma final de campeonato. Foi pouco depois de um lance de quase gol que aqueles dois trocaram olhares pela primeira vez. 

    Não tardou, lá estavam os dois novamente no mesmo bar assistindo a outra partida de futebol. Atrevida, Cleide fez questão de escolher uma mesa ainda mais perto da que Renê já se encontrava. Ele até pensou em convidá-la para se juntar ao grupo, mas lhe faltou coragem ou, como alguns preferem, a timidez o impediu de tal intento. 

    Restou à Cleide a tarefa de tomar a iniciativa. Assim que o primeiro tempo terminou, ela se levantou e, olhando diretamente para os olhos do seu alvo, foi até a mesa ao lado. Ela se apresentou e disse que havia se encantado com a semelhança dele com a do ator Robert Redford. Renê sorriu e, finalmente, a convidou para se sentar ao seu lado. 

    A atração entre os dois foi tamanha, que mal esperaram o jogo terminar. Foram direto para o motel mais próximo, onde se amaram até a manhã seguinte. Não trocaram promessas, apenas os números dos telefones. E foi o que bastou para que logo se envolvessem de maneira tão intensa, que não suportavam mais a ideia de morarem separados. 

   Juntaram os trapos e, desde então, se amam cada vez mais. Todavia, ainda guardam aquele sentimento de competição, como aconteceu num dia desses, quando estavam naquele mesmo bar assistindo a outra final do time do coração. Pediram um xis, que é uma espécie de rei dos sanduíches. Enorme!!! Renê, com os olhos enfastiados, passou a mão na barriga. 

    _ Ah, se eu comer mais um pedaço, explodo! 

    _ Você é fraco! Te falta ódio! 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Cleide, Renê e o xis" foi publicada pelo Notibras no dia 15/8/2023. Por uma solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história fizesse referência ao Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/cleide-rene-e-o-xis-de-comilanca-e-odio/

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

O namorado de Vila Isabel

        Se é mentira ou mera invenção do povo, não sei. Mas vou lhe contar como ouvi essa história da minha avó, que morou por algum tempo em Vila Isabel, o bairro carioca onde o samba corre nas veias de qualquer um que tenha bom tino. Não que lá também não andem os surdos de pé, que não sabem arriscar nem sequer um passinho pra cá, dois pra lá. 

Pois bem, o nome do nosso herói, que não tinha superpoderes nem a fisionomia dos galãs de Hollywood, era Noel. Ele, no entanto, apesar da aparente falta de atrativos, conquistava as mulheres, inclusive algumas distintas senhoras casadas, apenas com a sua capacidade única de juntar um monte de palavras, que encantava toda a cidade do Rio de Janeiro. Sim, o gajo era compositor. Aliás, o maioral quando o assunto era samba!

E lá estava o Noel, que andava enrabichado por uma tal Ceci, tomando aquele banho caprichado para se encontrar com a amada. A moça, segundo me consta, era muito requisitada por todos cavalheiros distintos da cidade, desejosos de carinhos e afagos, logo ali na Lapa, bairro boêmio. Entretanto, apesar da profissão malvista pela parte feminina da sociedade, o nosso sambista parecia não se importar com as fofocas.

De banho tomado, toalha felpuda enrolada na cintura, lá foi o Noel para o seu quarto. Tratou logo de vestir a sua samba-canção, enquanto vasculhava o armário à procura da mais bela camisa de cetim. Qual foi a sua surpresa ao descobrir que todas haviam sumido, inclusive aquela que comprara na quinta-feira ali mesmo na loja do seu José, na esquina com a Teodoro da Silva.

O rapazola, mais que depressa, pôs a boca no trombone. Questionou a dona Marta, sua mãe. Esta, por sua vez, a princípio, se fez de desentendida. Não queria entrar em atrito com o filho, que sabia era turrão. Mas não adiantou, pois Noel saiu do quarto quase como veio ao mundo, caso não fosse por aquela samba-canção. A velha deu-lhe de ombros, como a se preocupar com a teia de uma aranha que há muito se alojara bem no alto do lustre da sala. 

Com uma visão privilegiada, o aracnídeo a tudo observava. Com certeza tentando imaginar o que era aquela algazarra lá embaixo. Já conhecia aqueles dois humanos de outros carnavais. Todavia, não se lembrava de ter visto aquele rapaz em tão poucas vestes. Quis até se fazer de tímida e, por um instante, virou os quatro pares de olhos para o teto. Isso não durou muito, nada além de alguns míseros segundos. 

Mais poderosa até que o veneno de suas quelíceras, a curiosidade aguçou aquela aranha. Agora, sem o menor pudor, voltou todos seus olhos lá para baixo. Para os mais atentos, poder-se-ia dizer, sem medo de cometer qualquer exagero, que aquela aranha apresentava um sorriso. Sim, um sorriso! Não um sorriso vulgar. Mas daqueles que emolduram os rostos dos cínicos. 

Noel, alheio a tudo que acontecia bem acima de sua cabeça, estacou diante da sua genitora. Essa o observou de cima a baixo, com aquele ar de superioridade que todas as mães sabem que possuem. Não adiantou. O filho, intransigente, começou a reclamar. 

Senhora minha mãe, cadê minhas camisas?

Mandei todas pro tintureiro.

Todas?

Sim! Todas estavam com marcas de batom.

Marquei com a Aracy. Vou lhe mostrar um novo samba.

 Dona Marta pareceu não dar ouvidos ao filho, que insistiu na contenda:

Senhora minha mãe, mas com que roupa eu vou?

Bem, não se sabe se essa história realmente aconteceu ou, então, é mais um fruto da vasta imaginação popular. Seja como for, dizem, foi daí que o Noel tirou a ideia para um dos seus sambas mais famosos.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O namorado de Vila Isabel" foi publicado pelo Notibras no dia 16/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/noel-sob-teia-de-aranha-procura-roupa-para-sair/

 

 


terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Paulão, o churrasqueiro

    Alguns poderiam dizer que essa história não passa de mais um devaneio da minha mente, mas afirmo com todas as letras e mais algumas que isso realmente aconteceu. Pois bem, lá estava eu trabalhando no antigo DEREG, o maior depósito do Banco do Brasil, quando alguém passou recolhendo o dinheiro do churrasco que iria acontecer na sexta-feira. Seria a primeira vez que eu iria participar dessa confraternização, já que há pouco havia sido transferido para aquele local, que ficava encrustado na entrada da favela Kelson, na Penha Circular, na cidade do Rio de Janeiro.

    Apesar de não ser tão fã assim de carne, passei a semana inteira pensando mais no churrasco do que no trabalho. Fiquei sabendo que o churrasqueiro oficial do DEREG era o Paulão, que trabalhava na empilhadeira. Ele era um cara enorme, não tanto pela altura, mas pelo peso. Por volta de 1,80 m, pesava uns 180 kg no mínimo. Aliás, ele sempre tinha uma frase na ponta da língua para mim: "Dudu, você nunca terá o meu peso, mas um dia eu terei o seu". 

    Quando chegou o dia tão esperado, todos estavam sorrindo mais que de costume. O Antonio Manoel, meu grande amigo até hoje, era o mais animado, mesmo porque sempre foi réu confesso quanto a nunca ter sido muito afeito ao trabalho. A Sonia, a Kênia, a Keila, o Nilsinho, o Anibal, o Samuel, o Antonio Costa, o Serginho, o Divino, o Marquinhos, o Marcão, o Clarinho, o Luís, o Rodina, o Tadeu, todos sorrindo de orelha a orelha. 

    E lá estávamos no refeitório do DEREG, onde havia até karaokê para quem quisesse arriscar uma de cantor. Eu, que até então desconhecia os dotes artísticos do Samuel, fiquei impressionado. Imagine uma mistura de Sidney Magal com Altemar Dutra. Pois é, creio que isso é o mais próximo do que é a poderosa voz do Samuel, ou Samuca, como alguns o chamavam. 

    Eu ainda não havia comido, quando a Sonia, sempre muito atenciosa com todos, veio me oferecer um pratinho abarrotado de carne e linguiça. Agradeci e me sentei numa mesa com alguns colegas. A carne era deliciosa, como jamais havia provado. O tempero era algo que eu não conseguia distinguir muito bem. Todavia, jurei a mim mesmo que era o melhor churrasco que havia comido em toda a minha vida. 

   Conversa vai, conversa vem, eis que o prato logo se esvaziou. Então, como eu era o mais novo integrante daquela trupe, fiz questão de me levantar para buscar mais carne. Fui até a churrasqueira, que ficava no fim do salão. Foi aí que percebi de onde vinha esse gosto tão diferente, que havia me conquistado. É que o Paulão, quase grudado à churrasqueira, suava em bicas sobre a carne na grelha. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Paulão, o churrasqueiro" foi publicada pelo Notibras no dia 28/07/2023. Por uma solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que o Distrito Federal fosse incluído.
  • https://www.notibras.com/site/suor-na-grelha-da-mais-sabor-e-ansia-de-vomito/

Marcio, Helena, Lucas e a água

   

   Dizem que essa história aconteceu em Porto Alegre. Na verdade, eu até sei os nomes dos personagens: Lucas, Marcio e a sua filha, a pequena Helena, que não é a de Troia, mas bem que poderia ser, tamanha a sua capacidade de captar os olhares de todos. Magnetismo puro, apesar dos seus oito anos, quase nove.

    Pois bem, o Marcio havia matriculado a menina em uma aula de natação. E lá estavam os dois saltitando pelas largas calçadas da capital gaúcha, quando, de repente, surgiu o Lucas. De tão amigo do Marcio, o Lucas fez questão de acompanhá-lo nessa missão importantíssima para o futuro da natação nacional. Afinal, vai que a Helena se torne uma prodígio nesse esporte e ganhe várias medalhas nas próximas olimpíadas. 

     Durante o trajeto, Helena, tagarela como ela só, disse que sua avó materna era judia. Lucas sorriu e falou que ele era judeu. Até falou que o seu sobrenome era Hoffmann. Pronto! Formou-se um laço quase instantâneo por conta dos elos de uma história marcada por perseguições. Tanto é que o Marcio, que é Petracco, se sentiu um pouco deslocado da conversa. Todavia, curioso como ele só, quis saber como aquele bate-papo iria terminar. 

     A conversa sobre o povo judeu prosseguiu até pouco depois do trio entrar no clube, onde a pequena Helena iria seguir os seus firmes passos até o ponto mais alto nos futuros jogos olímpicos. Isso se a professora, uma mulher enorme, cabelos loiros, olhos azuis mais azuis até que os azulejos da piscina, não começasse a gritar ordens e mais ordens. Só faltou exigir que todos os alunos lhe fizessem continência.

     A aula prosseguiu, a pequena Helena parecia resistir a qualquer impropério da professora de natação. Já o Marcio queria porque queria arrancar a sua garotinha das garras daquela enorme mulher, que parecia uma caricatura de militar de pantufas. Todavia, foi contido pelo Lucas. Ademais, a professora era bem maior do que o Marcio. Perigava ele tomar uma surra.

   Terminada a aula, Helena foi direto para o vestiário a fim de se trocar. O Marcio, todo orgulhoso, imaginou que a sua filha era durona, pois havia resistido a tanta brutalidade. No entanto, assim que a menina saiu, ele percebeu que estava enganado. A pequena Helena surgiu com o rosto mais choroso que uma menina de quase nove anos poderia ter. Os dois se abraçaram e choraram juntos.

    O Marcio disse para a filha não se preocupar, pois ela não precisaria ser uma campeã de natação. Ele falou para a Helena que ela já sabia nadar muito bem cachorrinho. Aliás, esse estilo de nado ela havia aprendido muito mais com o Coco e o Cacau, que são os dois cachorros do Marcio, do que com ele. É que o Marcio não é o que podemos chamar de grande adepto das braçadas em águas com mais de 30 centímetros de profundidade. O lance dele é mesmo a música. 

    O Lucas ficou tão emocionado com a situação, que foi abraçar aqueles dois. Nisso, a Helena fez um bico e disse que estava com sede. O Lucas, então, disse que iria pagar uma água para a menina, que sorriu aquele sorriso mais largo do que boca de sapo. 

    Já no caminho de volta, Lucas se despediu do amigo e da menina. O Marcio e a Helena continuaram a caminhada. Nisso, ele para e pergunta para a filha se ela está melhor. A menina, ainda com a garrafa de água nas mãos, responde: "Estou ótima! Eu só queria ver se eu conseguia fazer o Lucas me pagar uma água".

  • Nota de esclarecimento: O conto "Marcio, Helena, Lucas e a água" foi publicado por Notibras no dia 18/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/cara-de-choro-faz-judeu-abrir-carteira-e-pagar-agua/