quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Talarico, o pé de pano

   Talarico corria despido pela rua, enquanto uma multidão furiosa o perseguia. Aliás, tirando o marido traído, os outros eram apenas curiosos a fim de ver o desenlace daquela pendenga. E lá ia Talarico todo esbaforido, mais ligeiro que preá com medo de virar espetinho. Tamanho o seu desespero, nem sentia dor, apesar do balançar do sino de Belém entre as suas pernas.

    _ Pega!!! Pega!!! Pega!!!

   Que nada!!! O peladão entrou por aqui, mas, antes que o seu perseguidor percebesse, lá estava o nosso Don Juan pulando o muro, entrando pelos fundos da casa vizinha, assustando duas velhas sentadas à mesa na hora do chá, tomando novamente a rua em seguida. 

    Correu tanto, que nem os cachorros que latiam em seu encalço conseguiram alcançá-lo. Escafedeu-se, apesar da expectativa de todos e, em especial, da do esposo da doce Jurema. Afrânio, ainda com uma peixeira na mão, suando em bicas, soltou um grito, que poderia até ser confundido com o de um bugio.

    _ Que raiva!!! Mais cedo ou mais tarde eu te pego, seu salafrário!!! 

   Já bem distante dali, Talarico, com as duas maçãs do traseiro perdendo o ritmo daquela desesperada corrida, finalmente olhou para trás. Nada!!! Ninguém mais ao alcance dos seus olhos tão lascivos. E, a despeito da sensação de ter escapado de mais uma boa, não titubeou e manteve o passo firme até a casa da Rosinha, com quem, há tempos, fazia promessas de uma vida juntos. 

    Em pé diante da porta, Talarico foi recebido pelos olhos surpresos da amada.

    _ O que houve? Por que está assim sem roupa?

   _ Minha flor, você não vai acreditar! Fui assaltado por uma gangue logo ali! Como esse mundo está violento! Não se pode nem mais andar por aí em paz!

    Rosinha, olhando todo aquele teatro, tocou de leve o rosto do seu homem, fez uma cara de compaixão e, finalmente, lhe deu as costas.

    _ Talarico, você falando e um risco n'água, pra mim, é a mesma coisa! 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Talarico, o pé de pano" foi publicado pelo Notibras no dia 29/5/2023.
  • https://www.notibras.com/site/talarico-escapa-de-corno-mas-perde-perfume-de-rosinha/

terça-feira, 29 de novembro de 2022

A mãe, a filha e o céu

 

   De tão barriguda que estava, a mulher se deitou naquela grama verdinha típica da primavera e, usando toda a força que até então nem supunha ter, pariu ali mesmo uma menina, que já nasceu olhando para o céu quase totalmente azul, não fossem por algumas nuvens, de tão branquinhas, poderiam facilmente se passar por chumaços de algodão soltos no ar.  

    Mesmo sem um dente sequer, a moleca sorriu um sorriso de alegria. A mãe a acolheu nos braços e lhe ofereceu o peito, que foi sugado. Todavia, os olhos, quase cegos, continuavam vidrados naquela imensidão lá em cima. 

    Não tardou, uma pequena multidão se aproximou. Uma mulher, talvez mais experiente, tocou o ombro da parida, que lhe fitou com aqueles imensos olhos escuros. 

    _ Você está bem, minha filha?

    A mãe de primeira viagem sorriu. Em seguida, alguém a ajudou a se levantar e a encaminharam ao hospital. Mal entrou, a menina começou a chorar. A mulher tentou lhe dar o peito novamente, mas nada a consolava. O choro ecoou por todo aquele ambiente.

   Uma médica foi chamada. O choro corria solto, a mãe desesperada. Corre-corre daqui, corre-corre dali, foram levadas para um consultório. A doutora auscultou, apalpou, apertou, soltou, virou, colocou de ponta-cabeça... Nada!!! O choro perene angustiava aquela mãe, que, também chorando, foi posta no canto, bem junto à cortina. 

  Não se sabe o porquê, talvez ansiosa para buscar um alento, a mãe abriu a cortina e, quase instantaneamente, a menininha voltou a sorrir. Os olhos miúdos fixos naquele oceano lá no alto. Aliviada, a mãe a tomou no colo e voltou a lhe oferecer o peito. Ela mamou, mamou, mamou... Até que, tomada por Morfeu, adormeceu.

  Instintivamente, a mãe saiu do hospital naquele momento. Já em casa, colocou a filha, que ainda dormia, no berço bem ao lado da janela. Arrancou a cortina e, exausta, desmaiou ali mesmo naquele tapete felpudo. 

    A noite mal chegou, a mulher acordou assustada, como se tivesse tido um pesadelo. Qual sua surpresa ao perceber sua garotinha sorrindo para as estrelas. Com um leve toque de suas mãos macias, a mãe tocou a testa da sua menina e disse.

    _ Não sei o que você tanto olha lá pra cima, meu amor. Talvez um dia você me conte.

  • Nota de esclarecimento: O conto "A mãe, a filha e o céu" foi publicado pelo Notibras no dia 8/9/2023.
  • https://www.notibras.com/site/sorriso-suave-doce-identifica-origem-de-anjo/

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

O velho, o Natal e o pinhão

   O Natal se aproximava, mais um entre tantos que aquele velho vivenciara ao longo de décadas e décadas, como se todos, ao menos até agora, fossem iguais ou, no mínimo, quase a repetição de um hábito. A mulher mandou que ele fosse comprar pinhão, pois era uma tradição que ela adorava manter na família, cada vez mais dispersa. 

  Já na calçada, o velho caminhou até o Mercado Público, onde sabia que o preço era mais atrativo, especialmente naquela época do ano, onde tudo custava os olhos da cara. Observou a multidão tentando engalfinhar os diversos produtos, como se fosse a última chance de conseguir algo único, apesar das centenas de réplicas logo ali ao lado. Estacou em frente a uma das bancas, onde se assustou com o preço da iguaria das mais gaúchas.

    _ Dois quilos, por favor.

    Enquanto esperava, notou dois moleques sorridentes carregando uma caixa contendo uma árvore de Natal, dessas de montar. Tudo de plástico, nenhum cheiro de pinheiro de verdade. Isso, aliás, o transportou para o seu longínquo tempo de criança. Tanto tempo, que imaginou que se tratava de apenas mais um devaneio, como se aquilo jamais pudesse ter existido. 

     Nessa época, era apenas um menino. Talvez dez, onze anos. O importante é que se lembrava de que era apenas um garotinho, não mais que isso. Diante de sua avó, ele prestava atenção nas histórias de outros natais, bem mais antigos que todos os que ele havia vivido. Enquanto escutava a agradável voz daquela velha, o então menino grudava pedaços de algodão naquele pequeno pinheiro, como se fossem flocos de neve. Tudo isso lhe parecia ridículo hoje em dia, mas era uma diversão naquela época tão distante. Um sorriso emoldurou a face enrugada do agora velho, que, logo em seguida, foi despertado por uma voz áspera.

    _ Aqui está o seu pinhão! 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "O velho, o Natal e o pinhão" foi publicada pelo Notibras no dia 25/12/2022. A pedido da redação do jornal, o texto sofreu pequena alteração para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/cesta-de-pinhao-resgata-natal-da-infancia-feliz/

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Dona Irene e a Maria Bethânia

 

    Já falei que a cantora preferida da Dona Irene sempre foi a Maria Bethânia. Inclusive que a minha mulher costuma fazer a mesma pergunta para mim e para quem quiser ouvir: "Quem é melhor: a Maria Bethânia ou a Gal Costa?" E, mesmo se a resposta for qualquer outra que não uma dessas duas incríveis intérpretes, invariavelmente a minha amada cantarola algumas estrofes de um sucesso da irmã do Caetano. 

    A Dona Irene, apesar de possuir uma voz muito agradável e saber usá-la com esmero, ainda mais para alguém que nunca teve aula de canto, geralmente utiliza um tom acima daquele da Bethânia. Isso, aliás, deixa os presentes surpresos, pois talvez imaginassem que a minha esposa fosse apenas mais um rostinho bonito na cidade. Que nada!!! 

   Não raro, a minha amada faz dueto com a Bethânia logo nas primeiras horas do dia, seja no chuveiro, seja enquanto degusta um pãozinho frito tomando seu café com leite. E, de tão entusiasmada, arrisco a dizer que a Dona Irene consegue abrilhantar ainda mais a performance da famosa baiana. É que, quando duas pérolas se encontram, o brilho de uma não ofusca o da outra, mas se amplificam. 

    Diriam alguns, certamente todos invejosos, que eu exagero as qualidades da Dona Irene. Desculpe, mas, se você é daqueles que pensam assim, talvez devesse conhecer melhor a minha mulher. Ademais, se a Maria Bethânia que é a Maria Bethânia não se cansa de abrilhantar as minhas manhãs fazendo duo com a Dona Irene, quem é você para discordar?

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Dona Irene e a Maria Bethânia" foi publicada pelo Notibras no dia 4/9/2023.
  • https://www.notibras.com/site/bethania-ou-gal-dona-irene-prefere-filha-de-dona-cano/

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Dona Irene e o Ademir da Guia

    Conheci a Dona Irene no dia 11/02/2011, quando já nos apaixonamos e começamos a namorar. Aliás, pra mim foi fácil me encantar com tamanha mulher, mas até hoje me pergunto o que foi que ela viu em mim. Seja como for, lá estávamos nós dois curtindo nossos primeiros momentos, quando ela começou o seguinte interlúdio.

    _ Dudu, adivinha qual é o meu time?

    _ Hum... Deixa eu pensar... Qual é o maior ídolo da história do Botafogo?

    _ Ah, é o Garrincha.

    _ Qual é o maior ídolo da história do Flamengo?

    _ O Zico.

    _ Qual é o maior ídolo da história do Vasco?

    _ O Dinamite.

    _ Qual é o maior ídolo da história do Atlético?

    _ O Reinaldo.

    _ Qual é o maior ídolo da história do Palmeiras?

    _ Ah, o Ademir da Guia!

    _ Então você só pode ser palmeirense!

    _ Por quê, Dudu?

    _ Somente um torcedor do Palmeiras saberia responder isso.

    Pois é, e foi assim que eu descobri o time da minha mulher. Aliás, nunca vi alguém tão apaixonado por um time. Tanto é que ela consegue até cantar o hino do Palmeiras de trás pra frente. Por isso, vou prolongar um pouco esta história e contar o que aconteceu no recente 13/11/2022, quando o Palmeiras, já campeão do Campeonato Brasileiro pela décima primeira vez, veio jogar aqui em Porto Alegre contra o Internacional pela última rodada. 

    Lá estava a Dona Irene em pleno Beira-Rio, quando a torcida do Palmeiras começou a gritar: "Divino! Divino! Divino!" Minha amada abriu aquele sorriso maravilhoso que só ela possui e, então, quase gritando, disse: "Não acredito que o Ademir está aqui!" E não é que ele estava logo ali, já cercado por uma pequena multidão apaixonada?!

      E lá foi a minha mulher, que não se intimidou com aquele paredão humano cercando o maior ídolo da história do seu time do coração. Não demorou muito, a Dona Irene e o Ademir da Guia estavam juntinhos, quando ela o beijou no rosto. Tímido, o Divino agradeceu pelo gesto de carinho. Mal sabia ele que estava diante da incrível Dona Irene ou, se sabia, guardou para si tal segredo.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Dona Irene e o Ademir da Guia foi publicada por Notibras no dia 19/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/dona-irene-entrega-o-jogo-de-ser-palmeirense/

Um dia de Machado de Assis

 

    Apaixonado que sou pela Literatura, de tempos em tempos arriscava umas histórias, sejam longas, sejam curtinhas. No entanto, apesar de já ter lançado três livros a partir de 2004, a minha vida de escritor estava fadada a ficar restrita a um grupo bem pequeno de leitores, a maior parte formada por amigos e conhecidos. Isso até que a minha mulher, a Dona Irene, criou o Blog do menino Dudu na noite do dia 23/12/2021. 

    A partir desse dia, comecei a escrever de maneira frenética e, para minha surpresa, já nos primeiros meses de 2022, eis que recebo uma mensagem da professora Denise, que é do Rio de Janeiro. Ela me disse que estava trabalhando alguns textos do meu blog em sala de aula. Que loucura!!! A Dona Irene precisou me beliscar um monte de vezes, até que fui convencido pelas inúmeras marcas doloridas nos meus braços de que aquilo não se tratava de um sonho. 

    Não demorou muito, o professor Leandro, que dá aula em uma escola em Brasília, me mandou uma mensagem me perguntando se ele poderia utilizar os textos do Blog do menino Dudu em sala de aula. Quase caio da cadeira de novo! E, alguns meses após, eis que o Leandro me manda uma mensagem falando que os alunos estavam adorando as histórias do meu blog. E, ainda mais, queriam me conhecer pessoalmente. 

    Depois de alguns contratempos, o Leandro e eu acertamos um dia para finalmente eu passar uma manhã inteira conversando com os seus alunos. Isso aconteceu no dia 09/11/2022. Confesso que a princípio fiquei intimidado, pois sou péssimo para falar em público. Todavia, de tão bem recebido que fui por aqueles jovens extremamente carinhosos e, muitos deles, com talentos incríveis, me senti como se já nos conhecêssemos há anos. Desde então, digo para todo mundo que já tive o meu dia de Machado de Assis. 


  • Nota de esclarecimento: A visita ao CEF 102 Norte foi matéria do Notibras no dia 02/12/2022: https://www.notibras.com/site/cronicas-e-contos-chegam-as-escolas-publicas/


sábado, 12 de novembro de 2022

Abílio Augusto, o profeta

 

   Abílio Augusto Prado era amado por milhões. Sim, por milhões de leitores ávidos pela coluna mais badalada do mais renomado jornal da grande metrópole. Tamanha fama lhe trazia certas benesses, como jantares dos mais concorridos nos seletos clubes. E, nessas ocasiões, um monte daquelas pessoas carregadas de brilhantes eram todas elogios aos escritos perspicazes do colunista.

    Assuntos variados eram abordados por Abílio. Um verdadeiro analista dos ocorridos, sejam antigos, sejam até mesmo os do dia anterior. Que sapiência!!! Muitos ficavam surpresos com tamanha capacidade de análise. Era um gênio!!! Tanto é que iria receber, naquele dia, uma justa homenagem pelos preciosos serviços prestados à comunidade: o título de cidadão honorário, com direito até à chave da cidade.

    Mal deu os primeiros passos na enorme calçada do Country Club, Abílio foi cercado por entusiastas. E ondas de parabéns daqui, congratulações dali, apertos de mãos acolá, tapinhas nas costas de todos lugares. Entrou no grande salão, apinhado de gente desfilando os últimos modelitos, todos assinados por estilistas renomados. Bateu aquele frio na barriga, tamanha a expectativa. 

    Foi direto para o banheiro, onde jogou litros e litros de água no rosto. Um sorriso nervoso tomou-lhe a face. Sacou diversas folhas de papel do suporte ao lado. No entanto, antes que pudesse enxugar-se, eis que entra um velho empurrando um carrinho com material de limpeza. Uma breve troca de olhares, nada mais. 

    O faxineiro começou a recolher o lixo, ao mesmo tempo em que Abílio passava o papel na face. Assim que terminou de se enxugar, depositou o papel-toalha na lixeira do carrinho. O velho agradeceu pela gentileza e, então, o homenageado, mais altivo do que nunca, resolveu conceder um breve interlúdio.

    _ Sabe quem sou eu?

   Diante do silêncio ensurdecedor do homem da limpeza, Abílio não resistiu e se apresentou. Fez um breve relato dos seus fundamentais serviços prestados à sociedade. 

    _ Eu decifro os motivos pelos quais algo se deu de uma forma ou outra. Entendeu?

    _ Ah, tá! Você é o profeta dos fatos acontecidos.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Abílio Augusto, o profeta" foi publicada pelo Notibras no dia 08/08/2023,
  • https://www.notibras.com/site/faxineiro-define-colunista-como-autor-do-que-ja-foi/

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Meu nome é Gal!!!

  No dia 09/11/2022, a Gal Costa aprontou uma com todos nós, apaixonados que somos pela sua voz inconfundível. Choramos a sua partida, inesperada pelo menos para mim, pois ela é dessas criaturas tão divinas, que jamais imaginei um dia ir embora. 

  Não sei qual é a sua percepção sobre a Gal, mas a minha sempre foi a de uma artista totalmente sem pudores sobre o palco, ciente do próprio talento. Com certeza ela usou e abusou dessa confiança ou, então, sempre fingiu muito bem. Como contraste, ela me parecia uma pessoa extremamente discreta, tímida até. Talvez a Gal seja o alter ego dessa baiana capaz de soltar uns agudos improváveis, que, acredito, faziam até a Elis Regina sentir uma pontada de inveja. 

    Aliás, preciso mencionar uma coisa que acontece rotineiramente aqui em casa. É que a minha esposa, a Dona Irene, sempre me faz a seguinte pergunta:

     _ Dudu, quem é melhor: a Gal ou a Maria Bethânia?

    Invariavelmente, eu respondo que é a Gal. Já a minha mulher tem a Maria Bethânia como sua cantora favorita. Seja como for, nós dois sempre ouvimos essas duas divas da nossa música popular brasileira, que este país teve o privilégio de ver florescer. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Meu nome é Gal!!!" foi publicada por Notibras no dia 17/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/de-2a-a-sabado-qualquer-um-e-dia-de-domingo/

        

Jarbas, o tosco

    Jarbas era tão tosco, que até a sua genitora, Clotilde, andava às turras com ele. Quanto aos outros, ninguém mais queria a companhia do troglodita. Por isso, lá estava o resmungão defronte da porta da casa da sua mãe, batendo de forma insistente, já que a velha era meio surda, e a campainha vivia desligada para afastar os pedintes. 

    A porta finalmente se abriu. Clotilde, ainda de camisola amarrotada por conta da noite mal dormida, com cara de poucos amigos, fitou o filho.

    _ O que é que você quer a essa hora, Jarbas?

    _ Ué, vim ver a senhora! Não posso?

    A velha deu as costas para Jarbas, que entrou e fechou a porta. Ele seguiu os passos da sua mãe, que foi direto para a cozinha. A água do café já borbulhava. Ela pegou o coador e colocou um pouco de pó de café. Não demorou muito, lá estavam os dois sentados, um contra o outro, à pequena mesa de madeira. 

    _ Mãe, todo mundo se afastou de mim. Até a Solange me colocou pra dormir no sofá. 

    Clotilde apenas observava, com certo desdém, as lamúrias do filho, que prosseguia a ladainha.

    _ No trabalho fico isolado, meus colegas apenas se dirigem a mim para falar coisas pertinentes ao serviço. Mãe, estou até fazendo terapia. Preciso melhorar o relacionamento com as pessoas. Mas acho que estou evoluindo.

     _ Está sim evoluindo... Que nem rabo de burro! 

     _ Como assim, mãe?

     _ Pra baixo!!! 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Jarbas, o tosco" foi publicada pelo Notibras no dia 1/8/2023. Por uma solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/jarbas-o-tosco-evolui-como-o-rabo-de-jumento/

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Martins, o Don Juan

    Martins, apesar de ter nascido em Rio Grande, município do litoral gaúcho, logo cedo foi morar no Rio de Janeiro. Cresceu todo cheio de si na Cidade Maravilhosa, justamente em Copacabana. Desde menino mostrou uma queda para o esporte, especialmente a natação. Todavia, a verdadeira vocação dele era se exibir. Parecia um pavão com uma enorme melancia no pescoço.

    Peito estufado, caminhava pelas areias da mais famosa praia do mundo, como se tudo aquilo lhe pertencesse. O tempo passou, acabou por se casar com uma das inúmeras mocinhas apaixonadas pelo galã. O casório parece que não durou muito, pois as tentações eram tamanhas para o Don Juan. Romances aqui, romances acolá, Martins se prendeu por um tempo a outra mocinha. Todavia, também não durou tanto assim. 

    Logo em seguida, lá estava o conquistador fazendo galanteios para mais uma mocinha. Esta, por sua vez, talvez mais esperta que as demais, colocou rédeas firmes no gajo, que já não era tão jovem assim. Além do mais, o casal foi morar em Nogueira, aconchegante distrito de Petrópolis, a famosa cidade serrana. E foi justamente lá que o nosso herói envelheceu. 

    Quando morreu, todos que o conheciam correram pro velório. Um dos seus filhos, o Marcius, que vinha de Niterói, passou pelo centro de Petrópolis, onde encontrou um velho conhecido de seu pai. 

    _ O Martins e eu fomos amigos não sei por quanto tempo. E, por isso mesmo, posso lhe contar uma coisa sem medo de estar falando bobagem.

     O rapaz observava atentamente aquele velho tão enrugado como o falecido e, com um restinho de coragem, perguntou: 

    _ O quê?

    _ Nogueira jamais conheceu um cara mais chato do que o seu pai!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Martins, o Don Juan" foi publicado pelo Notibras no dia 30/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/enfim-morto-don-juan-recebe-alcunha-de-chato/

terça-feira, 1 de novembro de 2022

A macarronada, o jacaré e o pássaro-palito

 

   Havia praticamente um consenso sobre política naquela família. Não que todos pendessem para um lado ou outro, mas simplesmente vigorava um quase tratado de Tordesilhas sobre isso: não se falava no assunto à mesa, especialmente aos domingos, quando todos se uniam para comer a macarronada da matriarca. 

  Entretanto, naquele dia, assim como o velho acordo entre os espanhóis e portugueses quanto aos domínios territoriais do então novo mundo, eis que Guilherme, um dos inúmeros netos, arriscou ignorar o acordo tácito. O frangote, que mal tinha uns fiapos debaixo das ventas, começou a falar do seu patrão, dono da maior rede de supermercado da região. 

    O empresário, segundo o rapaz, iria se candidatar a vereador nas próximas eleições. Todos pareciam paralisados, como se alguém tivesse apertado a tecla pause. Gente com o garfo parado diante da boca escancarada, gente com o copo na mão, gente com a boca cheia de comida e sem mastigar.

   Guilherme não parava de tagarelar, enaltecia o patrão como o homem mais próspero do mundo. E, melhor ainda, ele era o braço direito daquele desbravador do progresso. Tanto é que o próprio Guilherme, além de cabo eleitoral, já era detentor de algumas ações daquele negócio do futuro. Sim!!!

    O pirralho agora se considerava um investidor, assim como o seu patrão. De tão entusiasmado que estava, pegou o copo quase repleto de tubaína à sua frente e o ergueu, chamando a todos para um brinde. No entanto, antes que essa pantomima tivesse um desfecho cheio de glórias, eis que a matriarca, com uma coxa de frango entre os dentes, o repreendeu.

    _ Deixa de ser besta, garoto! Pássaro-palito não vira jacaré!

  • Nota de esclarecimento: O conto "A macarronada, o jacaré e o pássaro-palito" foi publicado pelo Notibras no dia 31/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/eleicao-macarronada-jacare-e-o-passaro-palito/