sábado, 31 de dezembro de 2022

Carmen, a varredora

    Carmen varreu tanto chão na vida, que não seria exagero afirmar que toda poeira que ela tinha retirado das casas por onde havia passado, caso fosse possível juntá-la, daria para construir um outro Pão de Açúcar. E lá estava a dita cuja carregando aqueles calos nas mãos, o suor escorrendo da testa, quando finalmente catou o último pó do dia. 

   Nem sentiu alívio, pois sabia que a rotina continuaria no dia seguinte, fosse segunda, terça, sábado, domingo ou qualquer feriado. Não dava para sonhar com o luxo de se espreguiçar numa rede suspensa por dois coqueiros em uma praia de areia macia. Definitivamente não! Pelo menos não naquela vida miserável que se arrastava há anos.

   Já na calçada, caminhava grudada às suas varizes que, de tão grossas, poderiam ser dissecadas facilmente por um médico em uma futura necropsia. Nem sabia se sentia dor. Devia estar acostumada ou, então, nem se lembrava dessa sensação de vida.

  Tentou pegar o primeiro ônibus, mas, de tão cheio, as portas nem se fechavam, como se fossem um gorducho tentando, inutilmente, fechar o zíper depois de uma feijoada. Tarimbada, decidiu aguardar pelo próximo, que chegou quase duas horas depois. E, apesar do cansaço da longa espera, pareceu que havia valido a pena. O caixote veio praticamente vazio. Carmen poderia se sentar e tirar um cochilo até perto de casa.

   Acomodou-se em uma das cadeiras mais ao fundo. Esparramou-se, já que não havia viva alma no assento ao lado. Adormeceu como há muito não o fazia. Tudo parecia como num sonho bem sonhado, desses que não queremos despertar. Todavia, não demorou muito, Carmen começou a sentir os solavancos do ônibus. 

    A suspensão, de tão gasta, parecia não suportar nem mesmo o menor defeito da pista. Mal saía de um tremelique, o coletivo começava outro, numa infinidade de convulsões. Revoltada, Carmen não se conteve e gritou: "Ô, motorista, eu paguei a passagem de ônibus, não foi a entrada pro baile!" 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Carmen, a varredora" foi publicada pelo Notibras no dia 17/7/2023.
  • https://www.notibras.com/site/solavanco-de-onibus-transporta-para-baile-funk/

Elvis em Porto Alegre


  Lá estava eu na agência Central dos Correios, em Porto Alegre, onde havia ido buscar uma correspondência enviada pelo meu tio. De lá, teria que ir até o cartório da 4ª Zona, que fica bem próximo ao Brique da Redenção. 

    Saquei o aparelho celular do bolso e chamei um Uber. Enquanto isso, fiquei olhando o movimento ao meu redor e, então, me deparei com um enorme outdoor. Nele havia uma propaganda do filme "Elvis", estrelado pelo ator Austin Butler. 

   Olhei por alguns instantes aquele cartaz e, em seguida, volto os olhos para a tela do meu celular. Tomei um susto! Fiquei sem saber o que significava aquilo, até que me dei conta do que estava acontecendo: o motorista se chamava Elvis.

    O Uber chegou, entrei e, como de costume, puxei conversa com o motorista. Enquanto isso, fiquei imaginando uma maneira de como poderia passar aquilo tudo pro papel, pois era uma das situações mais hilárias que já havia passado. 

    Seja como for, deixei essa história de lado, até que a contei para o Marcio Petracco quando o conheci no cachorródromo do Tesourinha. É que ele deu o desfecho que eu tanto procurava para o texto. 
    
_ Que susto, Marcio! 

_ Pois é, Dudu, sempre ouvi que o Elvis não morreu, mas não sabia que ele também estava a caminho.
  • Nota de esclarecimento: A crônica "Elvis em Porto Alegre" foi publicada pelo Notibras no dia 25/07/2023. Por uma solicitação do jornal, foi feita uma pequena alteração no texto original para que Brasília entrasse na história.
  • https://www.notibras.com/site/elvis-em-porto-alegre-so-faltou-usar-bombacha/

 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Gratidão, respeito e Resistência


   Foram 580 dias de vigília diante da sede da Polícia Federal em Curitiba, uma verdadeira prova de resistência. Enquanto o preso político Luiz Inácio Lula da Silva cumpria sua pena imposta por um emaranhado de artimanhas maquiavelicamente arquitetadas pela tal República de Curitiba, milhares de pessoas dividiam espaço com uma personagem no mínimo curiosa: uma vira-lata de pelos arrepiados e olhos tão meigos e visionários.    

   Resistência! Foi justamente esse o nome que a Janja escolheu para a tal simpática cadelinha. Não demorou muito, a então namorada do Lula a abrigou em seu lar, onde também já vivia outra vira-lata, a doce Paris. 

   Resistência de milhões de brasileiros maltratados, humilhados, vítimas de um governo que flertou com o fascismo durante quatro cruéis anos. Aos sobreviventes, ares de esperança começaram a soprar na noite do dia 30/10/2022 com a confirmação do resultado das eleições presidenciais. 

   Resistência das pessoas em conceder espaço para os animais é algo tão comum no Brasil, já que a permanência deles em vários ambientes é terminantemente proibida. Além disso, não são raras as caras de nojo das pessoas quando olham um cachorro ou um gato em situação de rua. Aliás, essas criaturas de Deus são enxotadas até de igrejas, como no clássico "O Pagador de Promessas", do saudoso Dias Gomes.

  Gratidão! Palavra usada tantas vezes de maneira leviana, não poderia ser mais adequada quando se trata da fidelidade canina. E Lula, como um homem que sabe como poucos o valor dessa qualidade, soube demonstrar esse nobre sentimento pela Resistência.    

  Respeito pelos animais foi o motivo crucial que para que alguns protocolos sejam deixados de lado durante a posse do próximo presidente eleito democraticamente. Nada de fogos de artifício e os 21 tiros de canhão, que tantos traumas causam especialmente aos cães e gatos, que possuem ouvidos muito mais sensíveis que os nossos.  

   Há um antigo ditado que diz que "Deus fez o cão para que protegesse o homem enquanto caminhasse pelas trevas". Por isso, nada mais justo que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois de passar pelo calvário em Curitiba, suba a rampa do Planalto acompanhado da sua amiga Resistência. Esse pequeno gesto do único homem eleito por três vezes para sentar na cadeira do maior posto do Poder Executivo brasileiro abre caminho para que outros cães também possam ser recebidos com amor e carinho em todos os ambientes no Brasil.

  • Nota de esclarecimento: o texto "Gratidão, respeito e Resistência" foi publicado pelo Notibras no dia 29/12/2022.
  • https://www.notibras.com/site/resistencia-vira-sinonimo-de-gratidao-e-respeito/

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Camilo, o almoço e a sogra

  Camilo, mal pôs os pés no chão gelado do quarto, logo se lembrou que a esposa não estaria em casa naquele dia. Ela havia viajado na noite anterior a trabalho e iria permanecer fora por alguns dias. Arrastou o corpanzil até a cozinha e soltou um bocejo que despertou o gato, que deu aquela esticada preguiçosa antes de tomar coragem e sair do cesto acolchoado para as necessidades. 

  O homem, que não suportava cozinhar, teria que fazer o almoço. Nada de comida sofisticada, mas crescera aos pés da mãe, que tudo fazia. Cresceu um tanto mais e se casou com Aurora, a quem conheceu ali mesmo naquela rua. Chegaram até a brincar de queimada, garrafão e outras peraltices antes do primeiro beijo, que só aconteceu porque ela tomou a iniciativa. 

   Tiveram um par de filhos, que hoje não chegam a dez anos. Viviam até bem, caso não fosse pela rigidez de Serafina, a rigorosa mãe de Aurora. Sempre atenta a todos os detalhes, não poupava Camilo de uma bronca aqui, uma chamada de atenção ou até mesmo um puxão de orelha por qualquer descompostura.

    Maria Luíza e Pedro tiveram que ser quase empurrados da cama, que parecia acolhê-los muito melhor que a escola. Pelo menos era o que os filhos do Camilo insistiam em sonhar, apesar do berro do pai 

    _ Vamos que vamos sair dessa cama!

    _ Ah, pai, só mais cinco minutinhos.

    _ Anda, anda e não me aperreie! Hoje tô que tô uma pilha!

    Depois do café da manhã preparado e devorado quase sem gosto, os rebentos rumaram para a escola, logo ali na esquina. Enquanto isso, Camilo foi até o quintal da casa, onde tragou dois cigarros baratos. Voltou para a cozinha e tratou de descascar algumas batatas. Olhou para o lado e viu o gato esparramado no cesto, cabeça tombada, nariz quase encostado na cerâmica carcomida pelo tempo. 

    _ Folgado!

  Batatas depiladas, foi jogar as cascas ao pé da mangueira. Aproveitou e sacou mais um cigarro e tragou até a alma. O amargor na garganta o despertou para o horário. Quase meio-dia! Correu para a cozinha, tirou as panelas de arroz e de feijão da geladeira, quase ao mesmo tempo em que pegou a frigideira com óleo de uma semana ou mais. Fritou as batatas, requentou o punhado de arroz e feijão. 

    Sacudiu os farelos de pão da toalha da mesa, derramou os pratos e talheres. Não demorou, Maria Luíza e Pedro, esbaforidos, entraram em casa. Jogaram as mochilas sobre o sofá e correram para a cozinha. Famintos, mal conseguiram esperar que o pai os servisse. 

    Enquanto o homem despejava mais uma colherada de feijão no prato de Maria Luíza, eis que surge Serafina. Com o nariz apontado para o alto como um perdigueiro, a sogra de Camilo tentou farejar o aroma do ambiente. Enquanto isso, os netos e o genro, quase estáticos,  a observavam. A velha afanou uma batata do prato de Pedro e a colocou na boca. Mastiga daqui, mastiga dali, encarou os três e, finalmente, a engoliu. Camilo, com a voz quase muda, arriscou uma pergunta.

    _ Gostou?

    _ É, até que ficou uma comida honesta. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Camilo, o almoço e a sogra" foi publicada pelo Notibras no dia 02/07/2023. Foi feita uma pequena alteração no texto, a pedido da redação do jornal, para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/camilo-mestre-cuca-ruim-faz-batata-em-oleo-velho/












sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Marcio Petracco, Cacau e Coco

    Lá estávamos a Dona Irene, o Clei e eu no cachorródromo do Tesourinha, em Porto Alegre, quando surgiu um magrelo em sua bicicleta acompanhado de dois belos cães da nobre raça vira-lata. Não demorou muito, as nossas buldogues, Bebel e Clarinha, foram dar as boas vindas àqueles dois lindos cachorros, que logo soubemos se chamarem Cacau e Coco. 

    Enquanto as quatro crianças corriam para cá e para lá, chegando ao fundo, voltando para mais perto, eis que o tal rapaz da bici (alcunha gaúcha para bicicleta) se aproximou e começamos uma conversa, no início meio tímida, mas que logo se encheu de sorrisos e até algumas gargalhadas. "Nem precisa perguntar quem é o Coco e quem é o Cacau", disse Marcio, fazendo menção às cores dos seus pupilos.

    Conversa vai, conversa vem, faço uma pergunta que, provavelmente, tenha causado certo espanto aos outros donos de cachorros que estavam próximos. 

    _ Marcio, o que você faz da vida?

    _ Dudu, eu sou músico há mais de 40 anos.

  Pois é, eu estava diante do famoso Marcio Petracco, mas como autêntico forasteiro nem percebi o tamanho da minha gafe. Seja como for, ele não pareceu ter ficado chateado comigo, já que a nossa conversa se descambou para a música, onde percebemos algumas afinidades. Marcio me disse que iria fazer um show no Queen's, famoso bar da cidade, no dia seguinte, 18 de dezembro de 2022. Seria uma apresentação com músicas dos Rolling Stones, justamente na data do aniversário de 79 anos do Keith Richards, lendário guitarrista.

  Fomos uns dos primeiros a chegar ao Beco do Queen's, quando as nuvens acinzentavam o céu da capital gaúcha. Típico dia de primavera! Um efusivo Marcio nos recebeu, enquanto fazia os últimos reparos no palco. 

    _ Fio do bigode! Vocês vieram mesmo! 

    Demos os parabéns pelo aniversário do Marcio, já que ele iria fazer as vezes do Keith. Aliás, diria até que o Marcio estava mais parecido com o Keith Richards do que o guitarrista dos Stones poderia parecer consigo mesmo. Não demorou muito, o ambiente começou a lotar, apesar da chuva, que logo começou a derramar um monte de água. Abrigados, bebericamos e degustamos, enquanto nossos olhos e ouvidos se encantavam com a apresentação da banda. Tanto é que até arriscamos alguns passinhos ao lado da mesa.

    O tempo pareceu voar, como geralmente acontece quando estamos nos divertindo. Logo chegou a derradeira "Satisfaction", o que é o prelúdio do término do show da famosa banda inglesa. Todavia, assim que o último acorde desse clássico do rock and roll se esvaiu pelo ambiente, eis que o Marcio anuncia ao microfone: "A gente vai fazer uma pausa de cinco minutos e daqui a meia hora a gente volta".

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Marcio Petracco, Cacau e Coco" foi publicada pelo Notibras no dia 17/08/2023. Por solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que houvesse alguma referência sobre o Distrito Federal na história. 
  • https://www.notibras.com/site/banda-do-petracco-e-cinco-minutos-de-meia-hora/

     

domingo, 11 de dezembro de 2022

A insanidade do ser humano

  Provavelmente você não se recorde do longínquo final de dezembro de 1992, quando dois fatos marcaram os noticiários brasileiros: O impeachment do então presidente Fernando Affonso Collor de Mello e o brutal assassinato da atriz Daniella Perez.  Nessa época, talvez pela minha total ignorância em relação às novelas, nunca havia ouvido falar da artista, muito menos que ela era filha de uma escritora de teledramaturgia. Seja como for, não foi esse fato que me causou certo espanto, mas sim como nos comportamos diante de certas situações.

    Calma!!! Vou explicar! Longe de mim querer negar a importância jornalística de um crime tão cruel cometido por um ator (que eu também não fazia a menor ideia de quem era) contra sua companheira de cena. Todavia, não há como negar que o impeachment do Collor era muito mais importante para o país, já que se tratava de algo que iria mexer com todos nós. Mas só se falava no então homicídio, tanto é que eu, um completo ser alheio ao mundo das tramas novelescas, acabei por me informar de praticamente tudo por osmose.

     Avancemos para dezembro de 1998 e mudemos de país, agora os Estados Unidos da América. Pois é, nessa época, o pessoal de lá queria porque queria arrancar o traseiro do Bill Clinton da Casa Branca. Nunca na história daquele país um sexo oral havia abalado tanto a estrutura de uma nação. Sim, isso mesmo!!! Por causa dessa esdrúxula situação, todos estavam com os olhos voltados para os lábios da então estagiária Monica Lewinsky e o órgão sexual presidencial. 

   Mas onde eu quero chegar, talvez você esteja questionando? Pois bem, o ser humano parece se preocupar com coisas que, na verdade, não o afetam diretamente. A barbárie ocorrida com a Daniella Perez, por mais desumana que fosse, jamais deveria ter ofuscado o impeachment do Collor. Por sua vez, um ato sexual tão comum como, por exemplo, chupar picolé, também não deveria ganhar proporções gigantescas, ainda que tenha sido praticado por alguém aos pés do homem mais poderoso do planeta. 

  Somos humanos!!! Somos curiosos!!! Preferimos coisas escabrosas, cruéis e não desejamos nos preocuparmos com algo talvez chato. Queremos crer em mamadeira de piroca, kit gay, banheiro unissex nas escolas, já que encarar os reais problemas do país (miséria, fome, racismo, machismo, abismo socioeconômico) deva ser mesmo muito enfadonho. Afinal, a nossa bandeira jamais será vermelha!!! Talvez o nosso maior problema esteja aí, haja vista Brasil significar, literalmente, vermelho como brasa.

  • Nota de esclarecimento: O texto "A insanidade do ser humano" foi publicado pelo Notibras no dia 11/12/2022.
  • https://www.notibras.com/site/corrupcao-sexo-e-brasil-vermelho-como-brasa-eterna/?fbclid=IwAR04JlxCYB4s1KWAmyz2Ik6e1hFHIfnYGd0Wm-Re6GyuEcR0oDja5MEzNr0

Arthur Claro, o comunista

    Arthur nasceu Claro, sobrenome de família. Mas desde cedo buscou caminhos e trilhas tão diversos, às vezes obscuros, mas todos carregados de paixão. Alguns poderiam acusá-lo de ser cabeça-dura. Que seja!!! Para enfrentar tanta pancada da vida, não pode ter a moringa de bexiga. 

   Os que o conhecem dizem que ele parece uma coruja, pois sempre está de olho em tudo, como se tentasse entender, ou melhor, captar a essência e, assim, fazer a sua arte. Esta, aliás, pode soar estranha, às vezes até lúgubre, mas digo-lhe que não. Basta dar uma olhadela no blog do Arthur para você sentir que está no DeLorean do Marty McFly indo direto para os conturbados anos 1970, quando os fanzines eram armas contra a cruel Ditadura Militar. 

    O blog do Arthur Claro é uma colcha de retalhos, onde cada detalhe é importante para a formação do todo. No entanto, não se engane, caso esteja imaginando que essa verdadeira feira livre está pronta e acabada. Não!!! Esse artista, um verdadeiro bicho-carpinteiro, não cansa de se reinventar e buscar novas trajetórias nessa saga.

    Esse rapaz paulista, que ostenta um belo bigode à Salvador Dalí, também tem lá as suas contradições. A maior delas, a meu ver, descobri quando constatei que ele é torcedor de um certo time, que não é conhecido por engajamentos sociais. Pois bem, lá estávamos os dois trocando algumas ideias, quando surgiu esse pequeno interlúdio.

    _ Dudu, eu faço arte alternativa porque sou comunista.

    _ Mas, Arthur, você torce pro São Paulo!

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Arthur Claro, o comunista" foi publicada pelo Notibras no dia 22/09/2023.
  • https://www.notibras.com/site/verdades-numa-colcha-de-palavras-retalhadas/

       

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Adeus, namorico!

 

    Aprígio, com seus quase 70, acordava sempre cedo, mais cedo até que o próprio despertador, que, talvez cansado de ter a corda apertada há anos, de vez em quando se fazia de mudo. Seja como for, o velho parecia não se importar com tal comportamento desse seu segundo companheiro de quarto. Sim, o segundo! É que também havia a temperamental Filó, a não muito simpática cadelinha caramelo. 

    Cara de poucos amigos, a companheira de Aprígio colecionava desafetos na quadra 312 da Asa Norte, Brasília-DF. Algumas tentativas frustradas de mordidas aqui, outras tantas acolá, inúmeros latidos estridentes por todos os lugares. Não perdoava ninguém!!! Até mesmo o Aprígio carregava algumas cicatrizes, lembranças de mordidelas sem grandes consequências, a não ser aquelas que ferem a parte mais valorizada por um homem como ele: a honra.

    Aprígio, assim como Filó, também não era muito afeito a conversas sem um sentido prático. Por isso, não era do tipo que dizia "Bom dia!", "Boa tarde!" ou "Boa noite!", nem mesmo para Francisco, o antigo porteiro do prédio. Homem direto, sem tempo para sentimentalismo, até que, por um desses acasos da vida, eis que Aprígio percebeu que do outro lado da calçada havia um enorme cachorro. De tão gigantesco, o velho chegou a duvidar de que se tratava mesmo de um cão. Talvez fosse um cavalo ou qualquer desses bichos da roça. 

   Não demorou, o velho constatou que Filó mantinha o olhar fixo naquele cachorrão. Apesar de azulados pela catarata avançada, os olhos da cadelinha pareciam apaixonados. Nenhum latido!!! Apenas ganidos de quem queria porque queria algo. No caso, esse algo estava há poucos metros, preso a uma guia que se estendia até as mãos graciosas de Eufrásia, que também carregava uma recente viuvez. 

   O defunto, apesar de fresco, carregou o resquício de lamúrias da viúva, além de lhe deixar uma polpuda pensão. Livre do estorvo e com dinheiro mais do que suficiente para as despesas, Eufrásia se sentiu livre como jamais havia sido. Queria mais é se divertir!

    _ Desculpe, não sei o que houve com a minha cachorra!

    _ Ah, não se preocupe! Acho que o Sultão também gostou dela. 

    Não tardou muito, Aprígio, Filó, Eufrásia e Sultão passaram a se encontrar algumas vezes por dia, como se tivessem combinado. Na verdade, Aprígio ficava de olho na janela do seu apartamento para ver quando a velha e o enorme cachorro apareciam na calçada lá embaixo. Então, mais ligeiro que barata fugindo quando se acende as luzes, lá ia o Aprígio carregando uma também apaixonada Filó. 

    A conversa, por mais frugal que fosse, parecia bem recebida por Eufrásia. Todavia, caminhava para um eterno destino sem futuro, até que a velha tomou a iniciativa e convidou Aprígio para um lanche logo mais à tarde. Obviamente que ele aceitou! Tomou aquele banho caprichado uma hora antes do horário marcado. Borrifou pelo corpo maltratado o perfume que havia ganho num dos seus aniversários, não sabia qual. Retirou a naftalina de dentro do sapato e o calçou. 

   De tão entusiasmado, arriscou até uma leve corridinha, olhando para aquele céu azul de Brasília. Sorria, sorria, sorria!!! De tanta felicidade, imaginou que a calçada estava mais macia do que de costume. Era o amor saltitando no velho coração enrugado!!!

    Mal se postou diante da porta da amada, essa lhe sorriu aquele sorriso esperançoso de que algo mais pudesse vir a acontecer. Logo estavam sentados à mesa. Suquinhos, biscoitinhos, chazinhos, até mesmo um providencial cafezinho gourmet para agradar os paladares mais aguçados. Entretanto, Eufrásia pareceu se incomodar com um cheiro não muito agradável. Ela abriu a ampla janela da sala, mas aquele fedor parecia cada vez mais impregnado no ambiente. 

    _ Você não está sentindo, Aprígio?

    _ O quê?

    _ Essa catinga horrível.

    O velho, como se fosse um perdigueiro, começou a buscar o tal fedor, até que resolveu olhar para a sola do sapato. Não demorou muito, constatou que havia uma boa explicação para a tal maciez da calçada.

    _ Que merda!!!

  • Nota de esclarecimento: "Adeus namorico!" foi publicado no Notibras no dia 16/12/2022. 
  • https://www.notibras.com/site/cuidar-do-coco-do-pet-evita-frustracao-como-a-de-aprigio/

    

    

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Almeidinha e o truco

    Já contei sobre o meu amigo Almeidinha, que tem um temperamento intempestivo, mas um grande coração. Se bem que há gente que duvide que ele possua o famoso órgão que bombeia o sangue pelo corpo. Mas deixemos um pouco de lado tal implicância com o gajo, pois hoje é dia de relembrar uma das situações mais esdrúxulas que vivi durante meus tempos de estudante de medicina veterinária lá na Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

    Apesar de conviver com muitos aficionados por carteado, nunca me interessei por esse passatempo. Na verdade, nunca levei muito a sério, apesar de na infância acompanhar a minha avó nas intermináveis batalhas de paciência. Mas não aquelas tão comuns em jogos de computador. Minha avó só jogava uma em que se formavam oito colunas, quatro de um lado, quatro do outro, cinco cartas em cada. Tanto é que, quando alguém me fala em paciência, sempre me vem à mente justamente esse tipo, apesar que ninguém parece conhecê-lo.  

    Todavia, deixemos a paciência de lado, mesmo porque o tipo de carteado que vou falar é outro. Pois bem, lá estava eu degustando o meu jantar no bandejão, quando o Almeidinha, todo eufórico, veio me contar a última, como se eu fosse a pessoa mais interessada nesse assunto, o tal truco.

    _ Dudu, sabe aqueles caras do alojamento C?

    _ Que caras?

    _ Os que ganharam o último campeonato de truco.

    _ Almeidinha, nem sei do que você tá falando. 

    _ Dudu, em qual mundo você vive?

    O meu amigo me olhou com cara de espanto, como se eu tivesse que saber quem eram esses tais caras. Aliás, nem sabia que existia um campeonato de truco, ainda mais na Rural. Não dava a mínima para aquilo. No entanto, o Almeidinha continuou com aquela ladainha até que, não entendo isso até hoje, conseguiu me convencer a formar uma dupla com ele para enfrentar os tais campeões do alojamento C. Pois é, acredite ou não, essa tal batalha seria naquela mesma noite.

  Rapidamente o Almeidinha me jogou um monte de regras, como se eu fosse um computador recebendo vários dados, que deveriam ser prontamente processados. Isso depois que eu havia acabado de encher o bucho no bandejão. Seja como for, aceitei o desafio apenas para agradar o meu amigo. Não que eu levasse aquilo a sério, muito menos imaginava que isso tivesse tamanha relevância para o Almeidinha. Isto é, até que, depois de tomarmos aquele vareio dos caras do alojamento C, o meu amigo, espumando pela boca mais que touro diante do balançar de um pano vermelho, começou a esbravejar.

    _ Dudu, você fez a gente perder!

    _ Deixa isso pra lá, Almeidinha! Isso é apenas um jogo.

    _ Dudu, isso não é um jogo! Isso é truco!!! 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Almeidinha e o truco" foi publicada pelo Notibras no dia 29/08/2023.
  • https://www.notibras.com/site/jogar-e-para-ganhar-nem-que-seja-no-palitinho/

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Talarico, o pé de pano

   Talarico corria despido pela rua, enquanto uma multidão furiosa o perseguia. Aliás, tirando o marido traído, os outros eram apenas curiosos a fim de ver o desenlace daquela pendenga. E lá ia Talarico todo esbaforido, mais ligeiro que preá com medo de virar espetinho. Tamanho o seu desespero, nem sentia dor, apesar do balançar do sino de Belém entre as suas pernas.

    _ Pega!!! Pega!!! Pega!!!

   Que nada!!! O peladão entrou por aqui, mas, antes que o seu perseguidor percebesse, lá estava o nosso Don Juan pulando o muro, entrando pelos fundos da casa vizinha, assustando duas velhas sentadas à mesa na hora do chá, tomando novamente a rua em seguida. 

    Correu tanto, que nem os cachorros que latiam em seu encalço conseguiram alcançá-lo. Escafedeu-se, apesar da expectativa de todos e, em especial, da do esposo da doce Jurema. Afrânio, ainda com uma peixeira na mão, suando em bicas, soltou um grito, que poderia até ser confundido com o de um bugio.

    _ Que raiva!!! Mais cedo ou mais tarde eu te pego, seu salafrário!!! 

   Já bem distante dali, Talarico, com as duas maçãs do traseiro perdendo o ritmo daquela desesperada corrida, finalmente olhou para trás. Nada!!! Ninguém mais ao alcance dos seus olhos tão lascivos. E, a despeito da sensação de ter escapado de mais uma boa, não titubeou e manteve o passo firme até a casa da Rosinha, com quem, há tempos, fazia promessas de uma vida juntos. 

    Em pé diante da porta, Talarico foi recebido pelos olhos surpresos da amada.

    _ O que houve? Por que está assim sem roupa?

   _ Minha flor, você não vai acreditar! Fui assaltado por uma gangue logo ali! Como esse mundo está violento! Não se pode nem mais andar por aí em paz!

    Rosinha, olhando todo aquele teatro, tocou de leve o rosto do seu homem, fez uma cara de compaixão e, finalmente, lhe deu as costas.

    _ Talarico, você falando e um risco n'água, pra mim, é a mesma coisa! 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Talarico, o pé de pano" foi publicado pelo Notibras no dia 29/5/2023.
  • https://www.notibras.com/site/talarico-escapa-de-corno-mas-perde-perfume-de-rosinha/

terça-feira, 29 de novembro de 2022

A mãe, a filha e o céu

 

   De tão barriguda que estava, a mulher se deitou naquela grama verdinha típica da primavera e, usando toda a força que até então nem supunha ter, pariu ali mesmo uma menina, que já nasceu olhando para o céu quase totalmente azul, não fossem por algumas nuvens, de tão branquinhas, poderiam facilmente se passar por chumaços de algodão soltos no ar.  

    Mesmo sem um dente sequer, a moleca sorriu um sorriso de alegria. A mãe a acolheu nos braços e lhe ofereceu o peito, que foi sugado. Todavia, os olhos, quase cegos, continuavam vidrados naquela imensidão lá em cima. 

    Não tardou, uma pequena multidão se aproximou. Uma mulher, talvez mais experiente, tocou o ombro da parida, que lhe fitou com aqueles imensos olhos escuros. 

    _ Você está bem, minha filha?

    A mãe de primeira viagem sorriu. Em seguida, alguém a ajudou a se levantar e a encaminharam ao hospital. Mal entrou, a menina começou a chorar. A mulher tentou lhe dar o peito novamente, mas nada a consolava. O choro ecoou por todo aquele ambiente.

   Uma médica foi chamada. O choro corria solto, a mãe desesperada. Corre-corre daqui, corre-corre dali, foram levadas para um consultório. A doutora auscultou, apalpou, apertou, soltou, virou, colocou de ponta-cabeça... Nada!!! O choro perene angustiava aquela mãe, que, também chorando, foi posta no canto, bem junto à cortina. 

  Não se sabe o porquê, talvez ansiosa para buscar um alento, a mãe abriu a cortina e, quase instantaneamente, a menininha voltou a sorrir. Os olhos miúdos fixos naquele oceano lá no alto. Aliviada, a mãe a tomou no colo e voltou a lhe oferecer o peito. Ela mamou, mamou, mamou... Até que, tomada por Morfeu, adormeceu.

  Instintivamente, a mãe saiu do hospital naquele momento. Já em casa, colocou a filha, que ainda dormia, no berço bem ao lado da janela. Arrancou a cortina e, exausta, desmaiou ali mesmo naquele tapete felpudo. 

    A noite mal chegou, a mulher acordou assustada, como se tivesse tido um pesadelo. Qual sua surpresa ao perceber sua garotinha sorrindo para as estrelas. Com um leve toque de suas mãos macias, a mãe tocou a testa da sua menina e disse.

    _ Não sei o que você tanto olha lá pra cima, meu amor. Talvez um dia você me conte.

  • Nota de esclarecimento: O conto "A mãe, a filha e o céu" foi publicado pelo Notibras no dia 8/9/2023.
  • https://www.notibras.com/site/sorriso-suave-doce-identifica-origem-de-anjo/

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

O velho, o Natal e o pinhão

   O Natal se aproximava, mais um entre tantos que aquele velho vivenciara ao longo de décadas e décadas, como se todos, ao menos até agora, fossem iguais ou, no mínimo, quase a repetição de um hábito. A mulher mandou que ele fosse comprar pinhão, pois era uma tradição que ela adorava manter na família, cada vez mais dispersa. 

  Já na calçada, o velho caminhou até o Mercado Público, onde sabia que o preço era mais atrativo, especialmente naquela época do ano, onde tudo custava os olhos da cara. Observou a multidão tentando engalfinhar os diversos produtos, como se fosse a última chance de conseguir algo único, apesar das centenas de réplicas logo ali ao lado. Estacou em frente a uma das bancas, onde se assustou com o preço da iguaria das mais gaúchas.

    _ Dois quilos, por favor.

    Enquanto esperava, notou dois moleques sorridentes carregando uma caixa contendo uma árvore de Natal, dessas de montar. Tudo de plástico, nenhum cheiro de pinheiro de verdade. Isso, aliás, o transportou para o seu longínquo tempo de criança. Tanto tempo, que imaginou que se tratava de apenas mais um devaneio, como se aquilo jamais pudesse ter existido. 

     Nessa época, era apenas um menino. Talvez dez, onze anos. O importante é que se lembrava de que era apenas um garotinho, não mais que isso. Diante de sua avó, ele prestava atenção nas histórias de outros natais, bem mais antigos que todos os que ele havia vivido. Enquanto escutava a agradável voz daquela velha, o então menino grudava pedaços de algodão naquele pequeno pinheiro, como se fossem flocos de neve. Tudo isso lhe parecia ridículo hoje em dia, mas era uma diversão naquela época tão distante. Um sorriso emoldurou a face enrugada do agora velho, que, logo em seguida, foi despertado por uma voz áspera.

    _ Aqui está o seu pinhão! 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "O velho, o Natal e o pinhão" foi publicada pelo Notibras no dia 25/12/2022. A pedido da redação do jornal, o texto sofreu pequena alteração para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/cesta-de-pinhao-resgata-natal-da-infancia-feliz/

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Dona Irene e a Maria Bethânia

 

    Já falei que a cantora preferida da Dona Irene sempre foi a Maria Bethânia. Inclusive que a minha mulher costuma fazer a mesma pergunta para mim e para quem quiser ouvir: "Quem é melhor: a Maria Bethânia ou a Gal Costa?" E, mesmo se a resposta for qualquer outra que não uma dessas duas incríveis intérpretes, invariavelmente a minha amada cantarola algumas estrofes de um sucesso da irmã do Caetano. 

    A Dona Irene, apesar de possuir uma voz muito agradável e saber usá-la com esmero, ainda mais para alguém que nunca teve aula de canto, geralmente utiliza um tom acima daquele da Bethânia. Isso, aliás, deixa os presentes surpresos, pois talvez imaginassem que a minha esposa fosse apenas mais um rostinho bonito na cidade. Que nada!!! 

   Não raro, a minha amada faz dueto com a Bethânia logo nas primeiras horas do dia, seja no chuveiro, seja enquanto degusta um pãozinho frito tomando seu café com leite. E, de tão entusiasmada, arrisco a dizer que a Dona Irene consegue abrilhantar ainda mais a performance da famosa baiana. É que, quando duas pérolas se encontram, o brilho de uma não ofusca o da outra, mas se amplificam. 

    Diriam alguns, certamente todos invejosos, que eu exagero as qualidades da Dona Irene. Desculpe, mas, se você é daqueles que pensam assim, talvez devesse conhecer melhor a minha mulher. Ademais, se a Maria Bethânia que é a Maria Bethânia não se cansa de abrilhantar as minhas manhãs fazendo duo com a Dona Irene, quem é você para discordar?

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Dona Irene e a Maria Bethânia" foi publicada pelo Notibras no dia 4/9/2023.
  • https://www.notibras.com/site/bethania-ou-gal-dona-irene-prefere-filha-de-dona-cano/

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Dona Irene e o Ademir da Guia

    Conheci a Dona Irene no dia 11/02/2011, quando já nos apaixonamos e começamos a namorar. Aliás, pra mim foi fácil me encantar com tamanha mulher, mas até hoje me pergunto o que foi que ela viu em mim. Seja como for, lá estávamos nós dois curtindo nossos primeiros momentos, quando ela começou o seguinte interlúdio.

    _ Dudu, adivinha qual é o meu time?

    _ Hum... Deixa eu pensar... Qual é o maior ídolo da história do Botafogo?

    _ Ah, é o Garrincha.

    _ Qual é o maior ídolo da história do Flamengo?

    _ O Zico.

    _ Qual é o maior ídolo da história do Vasco?

    _ O Dinamite.

    _ Qual é o maior ídolo da história do Atlético?

    _ O Reinaldo.

    _ Qual é o maior ídolo da história do Palmeiras?

    _ Ah, o Ademir da Guia!

    _ Então você só pode ser palmeirense!

    _ Por quê, Dudu?

    _ Somente um torcedor do Palmeiras saberia responder isso.

    Pois é, e foi assim que eu descobri o time da minha mulher. Aliás, nunca vi alguém tão apaixonado por um time. Tanto é que ela consegue até cantar o hino do Palmeiras de trás pra frente. Por isso, vou prolongar um pouco esta história e contar o que aconteceu no recente 13/11/2022, quando o Palmeiras, já campeão do Campeonato Brasileiro pela décima primeira vez, veio jogar aqui em Porto Alegre contra o Internacional pela última rodada. 

    Lá estava a Dona Irene em pleno Beira-Rio, quando a torcida do Palmeiras começou a gritar: "Divino! Divino! Divino!" Minha amada abriu aquele sorriso maravilhoso que só ela possui e, então, quase gritando, disse: "Não acredito que o Ademir está aqui!" E não é que ele estava logo ali, já cercado por uma pequena multidão apaixonada?!

      E lá foi a minha mulher, que não se intimidou com aquele paredão humano cercando o maior ídolo da história do seu time do coração. Não demorou muito, a Dona Irene e o Ademir da Guia estavam juntinhos, quando ela o beijou no rosto. Tímido, o Divino agradeceu pelo gesto de carinho. Mal sabia ele que estava diante da incrível Dona Irene ou, se sabia, guardou para si tal segredo.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Dona Irene e o Ademir da Guia foi publicada por Notibras no dia 19/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/dona-irene-entrega-o-jogo-de-ser-palmeirense/

Um dia de Machado de Assis

 

    Apaixonado que sou pela Literatura, de tempos em tempos arriscava umas histórias, sejam longas, sejam curtinhas. No entanto, apesar de já ter lançado três livros a partir de 2004, a minha vida de escritor estava fadada a ficar restrita a um grupo bem pequeno de leitores, a maior parte formada por amigos e conhecidos. Isso até que a minha mulher, a Dona Irene, criou o Blog do menino Dudu na noite do dia 23/12/2021. 

    A partir desse dia, comecei a escrever de maneira frenética e, para minha surpresa, já nos primeiros meses de 2022, eis que recebo uma mensagem da professora Denise, que é do Rio de Janeiro. Ela me disse que estava trabalhando alguns textos do meu blog em sala de aula. Que loucura!!! A Dona Irene precisou me beliscar um monte de vezes, até que fui convencido pelas inúmeras marcas doloridas nos meus braços de que aquilo não se tratava de um sonho. 

    Não demorou muito, o professor Leandro, que dá aula em uma escola em Brasília, me mandou uma mensagem me perguntando se ele poderia utilizar os textos do Blog do menino Dudu em sala de aula. Quase caio da cadeira de novo! E, alguns meses após, eis que o Leandro me manda uma mensagem falando que os alunos estavam adorando as histórias do meu blog. E, ainda mais, queriam me conhecer pessoalmente. 

    Depois de alguns contratempos, o Leandro e eu acertamos um dia para finalmente eu passar uma manhã inteira conversando com os seus alunos. Isso aconteceu no dia 09/11/2022. Confesso que a princípio fiquei intimidado, pois sou péssimo para falar em público. Todavia, de tão bem recebido que fui por aqueles jovens extremamente carinhosos e, muitos deles, com talentos incríveis, me senti como se já nos conhecêssemos há anos. Desde então, digo para todo mundo que já tive o meu dia de Machado de Assis. 


  • Nota de esclarecimento: A visita ao CEF 102 Norte foi matéria do Notibras no dia 02/12/2022: https://www.notibras.com/site/cronicas-e-contos-chegam-as-escolas-publicas/


sábado, 12 de novembro de 2022

Abílio Augusto, o profeta

 

   Abílio Augusto Prado era amado por milhões. Sim, por milhões de leitores ávidos pela coluna mais badalada do mais renomado jornal da grande metrópole. Tamanha fama lhe trazia certas benesses, como jantares dos mais concorridos nos seletos clubes. E, nessas ocasiões, um monte daquelas pessoas carregadas de brilhantes eram todas elogios aos escritos perspicazes do colunista.

    Assuntos variados eram abordados por Abílio. Um verdadeiro analista dos ocorridos, sejam antigos, sejam até mesmo os do dia anterior. Que sapiência!!! Muitos ficavam surpresos com tamanha capacidade de análise. Era um gênio!!! Tanto é que iria receber, naquele dia, uma justa homenagem pelos preciosos serviços prestados à comunidade: o título de cidadão honorário, com direito até à chave da cidade.

    Mal deu os primeiros passos na enorme calçada do Country Club, Abílio foi cercado por entusiastas. E ondas de parabéns daqui, congratulações dali, apertos de mãos acolá, tapinhas nas costas de todos lugares. Entrou no grande salão, apinhado de gente desfilando os últimos modelitos, todos assinados por estilistas renomados. Bateu aquele frio na barriga, tamanha a expectativa. 

    Foi direto para o banheiro, onde jogou litros e litros de água no rosto. Um sorriso nervoso tomou-lhe a face. Sacou diversas folhas de papel do suporte ao lado. No entanto, antes que pudesse enxugar-se, eis que entra um velho empurrando um carrinho com material de limpeza. Uma breve troca de olhares, nada mais. 

    O faxineiro começou a recolher o lixo, ao mesmo tempo em que Abílio passava o papel na face. Assim que terminou de se enxugar, depositou o papel-toalha na lixeira do carrinho. O velho agradeceu pela gentileza e, então, o homenageado, mais altivo do que nunca, resolveu conceder um breve interlúdio.

    _ Sabe quem sou eu?

   Diante do silêncio ensurdecedor do homem da limpeza, Abílio não resistiu e se apresentou. Fez um breve relato dos seus fundamentais serviços prestados à sociedade. 

    _ Eu decifro os motivos pelos quais algo se deu de uma forma ou outra. Entendeu?

    _ Ah, tá! Você é o profeta dos fatos acontecidos.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Abílio Augusto, o profeta" foi publicada pelo Notibras no dia 08/08/2023,
  • https://www.notibras.com/site/faxineiro-define-colunista-como-autor-do-que-ja-foi/

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Meu nome é Gal!!!

  No dia 09/11/2022, a Gal Costa aprontou uma com todos nós, apaixonados que somos pela sua voz inconfundível. Choramos a sua partida, inesperada pelo menos para mim, pois ela é dessas criaturas tão divinas, que jamais imaginei um dia ir embora. 

  Não sei qual é a sua percepção sobre a Gal, mas a minha sempre foi a de uma artista totalmente sem pudores sobre o palco, ciente do próprio talento. Com certeza ela usou e abusou dessa confiança ou, então, sempre fingiu muito bem. Como contraste, ela me parecia uma pessoa extremamente discreta, tímida até. Talvez a Gal seja o alter ego dessa baiana capaz de soltar uns agudos improváveis, que, acredito, faziam até a Elis Regina sentir uma pontada de inveja. 

    Aliás, preciso mencionar uma coisa que acontece rotineiramente aqui em casa. É que a minha esposa, a Dona Irene, sempre me faz a seguinte pergunta:

     _ Dudu, quem é melhor: a Gal ou a Maria Bethânia?

    Invariavelmente, eu respondo que é a Gal. Já a minha mulher tem a Maria Bethânia como sua cantora favorita. Seja como for, nós dois sempre ouvimos essas duas divas da nossa música popular brasileira, que este país teve o privilégio de ver florescer. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Meu nome é Gal!!!" foi publicada por Notibras no dia 17/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/de-2a-a-sabado-qualquer-um-e-dia-de-domingo/

        

Jarbas, o tosco

    Jarbas era tão tosco, que até a sua genitora, Clotilde, andava às turras com ele. Quanto aos outros, ninguém mais queria a companhia do troglodita. Por isso, lá estava o resmungão defronte da porta da casa da sua mãe, batendo de forma insistente, já que a velha era meio surda, e a campainha vivia desligada para afastar os pedintes. 

    A porta finalmente se abriu. Clotilde, ainda de camisola amarrotada por conta da noite mal dormida, com cara de poucos amigos, fitou o filho.

    _ O que é que você quer a essa hora, Jarbas?

    _ Ué, vim ver a senhora! Não posso?

    A velha deu as costas para Jarbas, que entrou e fechou a porta. Ele seguiu os passos da sua mãe, que foi direto para a cozinha. A água do café já borbulhava. Ela pegou o coador e colocou um pouco de pó de café. Não demorou muito, lá estavam os dois sentados, um contra o outro, à pequena mesa de madeira. 

    _ Mãe, todo mundo se afastou de mim. Até a Solange me colocou pra dormir no sofá. 

    Clotilde apenas observava, com certo desdém, as lamúrias do filho, que prosseguia a ladainha.

    _ No trabalho fico isolado, meus colegas apenas se dirigem a mim para falar coisas pertinentes ao serviço. Mãe, estou até fazendo terapia. Preciso melhorar o relacionamento com as pessoas. Mas acho que estou evoluindo.

     _ Está sim evoluindo... Que nem rabo de burro! 

     _ Como assim, mãe?

     _ Pra baixo!!! 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Jarbas, o tosco" foi publicada pelo Notibras no dia 1/8/2023. Por uma solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/jarbas-o-tosco-evolui-como-o-rabo-de-jumento/

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Martins, o Don Juan

    Martins, apesar de ter nascido em Rio Grande, município do litoral gaúcho, logo cedo foi morar no Rio de Janeiro. Cresceu todo cheio de si na Cidade Maravilhosa, justamente em Copacabana. Desde menino mostrou uma queda para o esporte, especialmente a natação. Todavia, a verdadeira vocação dele era se exibir. Parecia um pavão com uma enorme melancia no pescoço.

    Peito estufado, caminhava pelas areias da mais famosa praia do mundo, como se tudo aquilo lhe pertencesse. O tempo passou, acabou por se casar com uma das inúmeras mocinhas apaixonadas pelo galã. O casório parece que não durou muito, pois as tentações eram tamanhas para o Don Juan. Romances aqui, romances acolá, Martins se prendeu por um tempo a outra mocinha. Todavia, também não durou tanto assim. 

    Logo em seguida, lá estava o conquistador fazendo galanteios para mais uma mocinha. Esta, por sua vez, talvez mais esperta que as demais, colocou rédeas firmes no gajo, que já não era tão jovem assim. Além do mais, o casal foi morar em Nogueira, aconchegante distrito de Petrópolis, a famosa cidade serrana. E foi justamente lá que o nosso herói envelheceu. 

    Quando morreu, todos que o conheciam correram pro velório. Um dos seus filhos, o Marcius, que vinha de Niterói, passou pelo centro de Petrópolis, onde encontrou um velho conhecido de seu pai. 

    _ O Martins e eu fomos amigos não sei por quanto tempo. E, por isso mesmo, posso lhe contar uma coisa sem medo de estar falando bobagem.

     O rapaz observava atentamente aquele velho tão enrugado como o falecido e, com um restinho de coragem, perguntou: 

    _ O quê?

    _ Nogueira jamais conheceu um cara mais chato do que o seu pai!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Martins, o Don Juan" foi publicado pelo Notibras no dia 30/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/enfim-morto-don-juan-recebe-alcunha-de-chato/

terça-feira, 1 de novembro de 2022

A macarronada, o jacaré e o pássaro-palito

 

   Havia praticamente um consenso sobre política naquela família. Não que todos pendessem para um lado ou outro, mas simplesmente vigorava um quase tratado de Tordesilhas sobre isso: não se falava no assunto à mesa, especialmente aos domingos, quando todos se uniam para comer a macarronada da matriarca. 

  Entretanto, naquele dia, assim como o velho acordo entre os espanhóis e portugueses quanto aos domínios territoriais do então novo mundo, eis que Guilherme, um dos inúmeros netos, arriscou ignorar o acordo tácito. O frangote, que mal tinha uns fiapos debaixo das ventas, começou a falar do seu patrão, dono da maior rede de supermercado da região. 

    O empresário, segundo o rapaz, iria se candidatar a vereador nas próximas eleições. Todos pareciam paralisados, como se alguém tivesse apertado a tecla pause. Gente com o garfo parado diante da boca escancarada, gente com o copo na mão, gente com a boca cheia de comida e sem mastigar.

   Guilherme não parava de tagarelar, enaltecia o patrão como o homem mais próspero do mundo. E, melhor ainda, ele era o braço direito daquele desbravador do progresso. Tanto é que o próprio Guilherme, além de cabo eleitoral, já era detentor de algumas ações daquele negócio do futuro. Sim!!!

    O pirralho agora se considerava um investidor, assim como o seu patrão. De tão entusiasmado que estava, pegou o copo quase repleto de tubaína à sua frente e o ergueu, chamando a todos para um brinde. No entanto, antes que essa pantomima tivesse um desfecho cheio de glórias, eis que a matriarca, com uma coxa de frango entre os dentes, o repreendeu.

    _ Deixa de ser besta, garoto! Pássaro-palito não vira jacaré!

  • Nota de esclarecimento: O conto "A macarronada, o jacaré e o pássaro-palito" foi publicado pelo Notibras no dia 31/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/eleicao-macarronada-jacare-e-o-passaro-palito/

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Cúmplices do 13!!!

 

    Os brasileiros viveram ontem, 30/10/2022, um dos dias mais importantes de sua história. Conseguimos, apesar das falcatruas orquestradas por um governo facínora, eleger pela terceira vez o maior presidente desta terra chamada Brasil. Aliás, para aqueles que não sabem, Brasil significa vermelho como brasa. 

    Pois bem, assim como milhões de outros conterrâneos, fui votar, mais uma vez, no 13, o emblemático número do PT, o partido do Luiz Inácio Lula da Silva. Muito emocionado e com um livro do Machado de Assis nas mãos, entrei na cabine e teclei o 13. Treze!!! Que número mágico!!! É o número que combate o fascismo, a homofobia, a misoginia, o racismo, a pedofilia, o analfabetismo, a cruel desigualdade socioeconômica.  

    Assim que saí da sala de votação, eis que me deparo com uma jovem mulher cheia de adesivos e adereços do Lula. Ela sorriu para mim e, então, tivemos um pequeno interlúdio.

    _ Sei que você é petista porque o gado não gosta de ler. 

   _ Sabia que quase roubei a urna por causa  da foto do Lula? Eita, que homem mais lindo!

  A mulher abriu um largo sorriso com essa minha brincadeira e, cúmplices, nos despedimos fazendo um L com a mão esquerda. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Cúmplices do 13!!!" foi publicada pelo Notibras no dia 30/10/2023. Por uma questão de adaptação do texto à data de sua publicação, foi feita pequena alteração no primeiro parágrafo.
  • https://www.notibras.com/site/eleitor-queria-levar-urna-da-cabine-para-ter-lula-em-casa/

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Magnólia, a esposa dedicada

     Magnólia, desde praticamente toda sua existência, só se lembrava de ter sido dedicada. Fora filha dedicada, irmã dedicada, neta dedicada, mãe dedicada, avó dedicada, há mais de 40 anos, para inveja de todos, também era uma esposa dedicada. Nelson, o marido, havia feito uma pequena fortuna graças ao tino comercial, talvez herdado dos seus antepassados, parte judeu, parte turco.  

     Como matriarca daquela enorme família, todos os anos era sua responsabilidade servir a ceia de Natal. E que ceia! Comida sortida para gostos variados. Se alguém não gostasse do bacalhau, se servia do pernil assado; se por acaso tivesse alergia a nozes, eis que logo ali poderia se fartar com frutas diversas da estação. Sorrisos pra cá, gargalhadas pra lá, cochichos acolá, todos pareciam se divertir à generosidade de Magnólia e Nelson, o casal perfeito, que todos invejavam e almejavam se tornar. Que lindo de se ver! Mais de quatro décadas de harmonia! Ninguém se lembrava de uma só briga entre aqueles dois velhos pombinhos. Na verdade, nem mesmo Magnólia era capaz de se recordar de uma, simplesmente porque nunca havia acontecido. 

        Fim de mais uma festança daquelas! Nelson e Magnólia pareciam satisfeitos por mais um encontro da família. Eles trocaram olhares, como cúmplices de algo que sabiam ter conseguido preservar, apesar daquele aparente inabalável quase meio século. Era a tradição se perpetuando naquele lar, doce lar. Tamanha felicidade que poderia ser sentida por toda cidade. 

       Nelson parecia ainda mais feliz, dedilhou de leve o fino bigode e, ao subir os degraus da escada em forma de caracol, lançou um olhar, apesar de gasto, ainda sedutor para Magnólia. Esta, acostumada àquela situação, tratou logo de retocar o perfume para se deitar ao lado do esposo. Tiveram uma noite quase de núpcias, se não fossem pelos corpos já definhados pela longa jornada. 

      O marido despertou e logo percebeu que o calor do outro lado do colchão havia se evaporado. A princípio não estranhou, até que notou um bilhete cuidadosamente depositado na mesinha ao seu lado. Antes de tocá-lo, imaginou que se tratava de dizeres apaixonados da Magnólia. Todavia, um aperto no coração quase o enfartou ao ler as poucas palavras escritas por aquela letra tão conhecida: "Nelson, cansei! Cansei de tudo! Cansei de fingir essa tal felicidade que nunca tivemos!"

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Magnólia, a esposa dedicada" foi publicada pelo Notibras no dia 24/01/2023. Por solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/magnolia-esposa-dedicada-finalmente-caiu-na-real/

sábado, 22 de outubro de 2022

Betina, a mulher sem amarras

    Betina, apesar do nome pouco comum, não parecia se diferenciar de outras crianças da rua, fossem irmãos, primos, parentes de consideração, amiguinhos ou até completos desconhecidos. Nas brincadeiras, se divertia como todos. Na escola, apesar da paixão por história e biologia, não se destacou entre tantos outros alunos. Aliás, quem sempre tirou as maiores notas, especialmente em matemática, foi a Taís, sua vizinha de carteira. 

    Veio a adolescência, seguida de transformações, que, de certa forma, a envergonharam. Todavia, depois de alguns anos, ela se apaixonou por si própria. Totalmente despida, olhava-se diante do espelho. Linda! Maravilhosa! 

    Não demorou muito, os amigos de infância todos foram se aprumando com alguém. Casamentos cheios de amor e promessas, outros nem tanto, alguns até por conveniência ou, então, simples arranjos entre famílias. E foi justamente na festança do casório da Taís, aquela que fizera companhia para Betina na escola, que o fato se deu. 

    Pois é, parece que Taís errou os cálculos na hora da famigerada tabelinha, embuchou e, antes que alguém percebesse, sua mãe a obrigou a se casar com o Albertinho, filho do seu Alberto, neto do seu Albertão, que também herdou o nome de algum ancestral. Gente sempre daquele lugar. 

    Aquele mundaréu de conhecidos, aquela quantidade de comida capaz de saciar a fome de um pequeno povoado. E lá estava a Betina, com um copo de licor entre os dedos, quando o Olavo, irmão do noivo, se aproximou. Ele já estava de olho naquelas carnes há tempos, mas Betina nunca lhe deu trela. Seja como for, o rapazola tentou mais uma investida, agora apelando para os brios da jovem mulher, no auge dos seus 29 anos.

    _  Já está indo pro caritó, hein, Betina!

    _ Tô indo tomar conta da minha vida!

    E foi justamente o que ela fez. Mudou-se da cidade e, até onde se sabe, nunca mais voltou.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Betina, a mulher sem amarras" foi publicado pelo Notibras no dia 21/09/2023.
  • https://www.notibras.com/site/entre-olavo-e-carito-betina-preferiu-outra-cidade/

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Tonico Pereira, muito além do Zé Carneiro

 


    O primeiro contato que tive com a figura tão carismática do Tonico Pereira talvez tenha sido com o Zé Carneiro do "Sítio do Pica-Pau Amarelo". Anos depois, me diverti muito vendo as peripécias do Mendonça tentando passar a perna no quase ingênuo Lineu de "A Grande Família". Não há como negar que o Mendonça passou a ser o novo contraponto do Lineu nesse seriado. O outro, obviamente, era a Nenê, personagem divinamente interpretada (como se fosse possível não o ser) pela enorme Marieta Severo. 
    
    Que trio!!! Esse sim é o ataque dos sonhos, ao contrário daquele outro, que mostrou ser um desastre, talvez pelos egos exacerbados dos atletas que não causaram nada além do que chacotas por parte dos torcedores do Botafogo, do Vasco e do Fluminense. 

   Mas voltemos ao Tonico Pereira. Querer determinar que ele é simplesmente um ator talvez seja limitar o seu universo de possibilidades. Não que ser ator signifique tolhimento. Pelo contrário, é expansão, como bactérias que se multiplicam aos milhões num piscar de olhos. Tanto é que esse homem transita por campos diversos, inclusive no comércio. 

    Hoje é dono do Brechó TPM em Botafogo, mas já mexeu com boteco e até peixaria, além de ter lançado um livro sobre filosofia. Sim, filosofia! E, se houvesse mesmo a tal máquina do tempo, não seria de se estranhar que o Tonico fosse tirar um dedinho de prosa com o Sócrates, aquele mesmo da Grécia Antiga. E, com a lábia que possui, é bem provável que o nosso gênio das artes cênicas convencesse o velho filósofo a desistir de beber a tal cicuta. 

    Outra curiosidade sobre o Tonico é que ele é ferrenho torcedor do Goytacazes. Não há nem um dia sequer que ele não se sinta cada vez mais certo de que seu time é o maior de todos. Repare que eu disse maior e não melhor. Este, por sinal, pode ser qualquer um Barcelona da vida, que, por um instante ou outro, vence tudo como se fosse algo jamais visto. Mas isso ocorre de tempos em tempos. Já o Goytacazes, no imaginário do Tonico, é o maior porque não precisa ganhar nem sequer um campeonato estadual para ser objeto de paixão de seus torcedores. E como duvidar?  

   Aliás, pensando bem, o Tonico não é comerciante, não é filósofo, não é nada além de ator. Vou explicar, antes que alguém venha me agredir com palavras de baixo calão. Seja como for, não me calarão! O Tonico é um ator e ponto final ou, caso prefira, ponto de exclamação ou interrogação, talvez até uma infinidade de reticências. É que esse conterrâneo do mestre Didi, tal qual folha seca, sobe e desce, suave, onde e quando bem desejar, talvez pela simples ânsia de nos surpreender. Quer apostar? 

  • Nota de esclarecimento: O texto "Tonico Pereira, muito além do Zé Carneiro" foi publicado pelo Notibras no dia 13/05/2023.
  • https://www.notibras.com/site/lineuzinho-vai-muito-alem-do-ze-carneiro/