quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Marcolino e a profecia


    Marcolino, antes mesmo de dar os primeiros passos, já desfilava toda a sua elegância na piscina da escolinha de natação. O moleque levava jeito para a coisa. Tanto é que, não demorou, inúmeras medalhas e troféus passaram a decorar a estante da sala, para orgulho da mamãe.

        Foi numa manhã ensolarada de abril, enquanto a mãe embalava o lindo bebê no carrinho, bem ali na pracinha do bairro, que, do nada, surgiu uma velha vidente. Assim que bateu os olhos no Marcolino, a mulher estremeceu todo o seu corpo carcomido pelo tempo. De início, ela se virou para ir embora, mas algo a fez voltar e, parada diante daquele carrinho, fez um prenúncio: "Afogado!"

       A mãe de Marcolino, aflita com aquela única palavra, não conseguiu proferir nem uma sequer. Enquanto isso, a velha trepidou todo o corpo novamente, virou-se e foi embora. A pobre mulher pegou seu filho no colo e o aninhou carinhosamente no peito. Ela jurou que nada de mal iria acontecer ao seu bebê.

        O menino foi crescendo, enquanto a mãe tentava dissuadi-lo de nadar. Que nada! O moleque se via a cada dia mais e mais fisgado por aquele esporte. Enquanto isso, a mãe não se atrevia a contar para ninguém o triste destino do filho. Seria verdade? Cismada como ela só, desacreditava acreditando. Seja como for, mandava benzer todos os apetrechos do filho antes de uma competição.

    Depois de passar a infância quebrando recordes atrás de recordes, o menino, mal entrou na adolescência, enjoou de nadar em raias. Talvez por conta da idade, desejou desafios mais apropriados para aquele turbilhão de hormônios. Dessa forma, mesmo a contragosto da mãe, resolveu participar de provas no mar.

      Na primeira disputa, sentiu seu corpo mais leve por conta do elevado índice de sal na água. Todavia, as ondas, algumas enormes, davam-lhe vários tapas na cara. Entretanto, destemido como ele só, Marcolino, braçada a braçada, deixava seus pobres concorrentes, mesmo os mais tarimbados, bem lá pra trás. 

     Agora homem feito, Marcolino não sabia mais onde guardar tantos prêmios. E, num passe de mágica, deixou toda aquela vida aquática para trás. Não se sabe ao certo o que o levou a tomar tal atitude. Talvez tenha sido a bela Soraia, que acabara de conhecer. Seja como for, os dois começaram a estudar juntos para o concorrido vestibular da USP.

     Veio o vestibular, e os dois pombinhos passaram para o curso de biotecnologia. Os jovens se matricularam e, em poucos meses, lá foram para a capital paulista, onde alugaram um apartamento bem pequeno, mas muito aconchegante. A mãe de Marcolino, apesar de sentir saudade do rebento, se sentia aliviada, pois não se esquecera daquele duro prenúncio.

        Pois foi na madrugada de um domingo quando o mais improvável aconteceu. Lá estava o Marcolino e a sua bela namorada estudando para a última prova do semestre. Fizeram uma saborosa sopa de legumes para dar suporte aos cérebros cada vez mais exigidos. 

        Quase três da madrugada, a moça desejou dormir um pouco, pois já não aguentava mais tantas informações. Precisava relaxar. Marcolino, por sua vez, decidiu dar uma última passada na matéria. Ele se despediu da amada com um breve beijo.

        Não se sabe quanto tempo depois isso aconteceu, mas aconteceu, como foi noticiado nos jornais no dia seguinte. Pois bem, o Marcolino, exausto que estava, não conseguiu vencer o próprio sono e, então, adormeceu com a fuça dentro do prato de sopa, que se encontrava quase cheio. O campeão dos mares não despertou mais. Nunca mais. A profecia da velha acabara de ser confirmada.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Marcolino e a profecia" foi publicado por Notibras no dia 29/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/mar-que-quebra-na-praia-nao-e-sopa-de-letrinhas/

Fuga e liberdade

     Na calada da noite, durante a fuga orquestrada por Salamandra, um a um dos condenados passaram pelo buraco no chão, que dava direto num imenso túnel. O medo de desabamento fez com que Corrimão desistisse. Filé, cuja pena era pequena, foi outro que preferiu ficar. Farofa e Pouca Ideia, dois gatunos dos mais sofríveis, tomaram coragem e seguiram os fugitivos.

    Quase meia hora depois, Pouca Ideia foi o último a sair do buraco, que ficava a pouco mais de 30 metros do muro lateral da Papuda. Correu que nem maluco até a primeira moita, onde tentou se encolher o máximo possível.  Ainda desorientado, escutou um sussurro. Era o Farofa, que acenava freneticamente para que ele se arrastasse em sua direção. 

      Assim que se juntou ao amigo, Pouca Ideia perguntou pelos outros fugitivos. Farofa disse que não sabia, mas que preferia daquele jeito. E, antes que Pouca Ideia pudesse questioná-lo novamente, o gatuno puxou o companheiro pelo braço e prosseguiram a fuga. 

      Caminharam durante o resto da noite e, assim que o dia começou a clarear, se embrenharam ainda mais no cerrado. Ofegantes pela longa jornada, não faziam ideia de onde estavam. Talvez já fosse Goiás, arriscou Pouca Ideia. Farofa, não sabendo se o amigo estava certo, concordou com um aceno de cabeça. Cansados, adormeceram com o cantar dos pássaros. 

     A dupla foi despertada pelos raios solares castigando suas faces. Por um instante, imaginaram-se ainda na prisão, até que, de olhos bem abertos, perceberam que estavam livres. Os dois sorriram e pularam abraçados. Finalmente livres depois de quase cinco anos atrás das grades. 

        Uma dúvida fez com que Farofa, o mais inteligente da dupla, ficasse pensativo. Pouca Ideia ainda tentou continuar comemorando a fuga, mas foi interrompido pelo comparsa. De nada adiantava fugir se os dois fossem capturados dali a pouco. Um plano! Eles precisavam de um plano para nunca mais voltarem para aquele calabouço de cimento duro e frio. 

        Farofa, cujas ideias não vinham naquele momento, decidiu continuar a caminhar. Pouca Ideia, sem melhores perspectivas, o acompanhou. Andaram por dias e noites. Alimentaram-se de qualquer coisa comestível que encontravam pelo caminho. Perderam algum peso, mas nada que pudesse abalar a confiança de que conseguiriam se manter em liberdade. 

      Os foragidos já haviam perdido a noção do tempo, quando perceberam que a vegetação começou a mudar. As árvores do cerrado, a maioria torta, foram ficando cada vez maiores. Como os dois não sabiam ler, nem perceberam a placa, bem lá atrás, anunciando a divisa entre Minas Gerais e São Paulo, continuaram desorientados. Também não se atreveram a manter contato com quem quer que seja. Afinal, alguém poderia reconhecê-los e chamar a polícia. 

        Já era final de tarde quando se depararam com um riacho. Pararam por um instante, se refrescaram e até tentaram, com as próprias mãos, agarrar um dos pequenos peixes. Sem sorte, desistiram da empreitada. Foram andando ao longo do riacho até que avistaram uma casa bem ao fundo. 

        Pouca Ideia, impaciente, quis saber o que os dois fariam. Farofa, que parecia sem ideias, disse que precisava pensar. Não teve ideias, mas decidiu que iriam até a propriedade. E foi o que fizeram. Caminharam por quase uma hora, depois por mais duas, e nada de chegarem. Teimosos, insistiram pela noite inteira. Amanheceu e a caminhada prosseguiu até a noite seguinte. Nada! 

        Exaustos, decidiram se sentar, cada um escorado em uma árvore, um de frente para o outro. De repente, os dois se olharam espantados. Sangue escorria de seus corpos. Mortalmente feridos, os dois tombaram a poucos metros do muro da Papuda, o famoso presídio em Brasília, onde haviam passado os últimos quase cinco anos. A esperada liberdade, enfim, havia chegado.
  • Nota de esclarecimento: O conto "Fuga e liberdade" foi publicado por Notibras no dia 1/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/pouca-ideia-e-farofa-fogem-sonhando-com-liberdade/

        

    

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Ana Clara, a menina que me encantou

 

    Desde que resolvi me tornar escritor, percebi que essa profissão é, quase sempre, solitária, pois lá ficamos isolados do mundo, mas com o pensamento nas coisas que acontecem nele e dentro de nós, numa constante busca da melhor maneira de juntar palavras e expressar sentimentos. 


    Apesar dessa solidão, de vez em quando, tenho contato com um ou outro leitor, que me aborda na rua. Confesso que isso, a princípio, me deixava desconcertado, a despeito de provocar uma sensação bem gostosa, como se o meu eu interior me dissesse: "Pois é, Dudu, até que você consegue cativar algumas pessoas". No entanto, antes que a vaidade me transporte para as nuvens, eis que a minha mulher, a Dona Irene, me puxa pelas orelhas.

    Diante dessas massagens no ego, que têm se tornado mais frequentes, fiquei desnorteado no dia 21/11/2023, quando estive no Centro de Ensino Fundamental 102 Norte (CEF 102 Norte), em Brasília. É que o professor Leandro Mendes havia me feito um convite para mais um encontro com suas turmas. Na verdade, o segundo, pois, há um ano, mais precisamente no dia 9/11/2022, também estive por lá. 

    Pois bem, lá estava eu próximo à porta da sala, após ter conversado com uma das turmas do Leandro, quando os alunos do 7º C começam a entrar. De repente, fui surpreendido por uma linda menina com o sorriso capaz de encantar o universo e aqueles olhos cheios de vida direcionados para mim. A garota, quase lacrimejando, colocou as duas mãos no rosto, eu me aproximei e ela falou: "Não acredito que você veio!"

    Logo soube que o seu nome era Ana Clara. Aliás, preciso falar o nome inteiro da minha agora amiga: Ana Clara Rodrigues Costa. Puro encanto!!!

    Durante o bate-papo com a turma, a Ana Clara me entregou uma carta, onde diz que estava muito ansiosa para me conhecer, que amou muito todos os meus textos lidos e trabalhados em sala de aula. Mas o melhor ainda estava por vir. 

      Lá estava entretido com aquelas meninas e meninos maravilhosos, quando o professor Leandro sugeriu uma atividade para aquele momento. Os alunos teriam que refazer o final de um dos meus textos. Fiquei muito curioso para ver o que aquela garotada iria aprontar.

        Não tardou, a Ana Clara leu em voz alta o seu final para "Almerinda, a empregada doméstica", que, por sinal, foi o primeiro dos meus contos que foi publicado por Notibras há quase um ano. Na história original, Almerinda não tem um final feliz, pois é vítima da exploração imposta por sua patroa. No entanto, eis que a minha amiga, sábia e criativa como ela só, me vem com um desfecho muito melhor do que o meu.

           Com o desenlace imaginado por essa menina tão arrebatadora, o destino da Almerinda foi trabalhar de cuidadora com um salário de 30 mil reais. Dessa forma, ela pode ter tempo e dinheiro de sobra para levar uma vida feliz. Tudo graças a essa garota tão carismática, que, com aquele sorriso mais lindo no rosto, me encantou. Muito obrigado, Ana Clara!!!
            
  • Nota de esclarecimento: A crônica "Ana Clara, a menina que me encantou" foi publicada por Notibras no dia 28/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/ana-clara-muda-final-e-cronica-ganha-epilogo-feliz/



segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Promessa é dívida

    

    Algumas coisas bem legais aconteceram comigo após decidir levar a sério o trabalho como escritor. Ganhei alguns prêmios, fui convidado pelo José Seabra para ser cronista/contista do Notibras, passei a ser reconhecido nas ruas e recebi várias mensagens de pessoas que gostaram dos meus textos. No entanto, posso afirmar que, sem qualquer receio de estar falando bobagem, nada se compara a encontrar as turmas do professor Leandro Mendes no Centro de Ensino Fundamental 102 Norte (CEF 102 Norte) em Brasília. 


    Esse contato com o Leandro surgiu quando ele me mandou uma mensagem no início de 2022. Ele queria a minha autorização para utilizar os meus textos em sala de aula. Quase caí da cadeira, pois é o sonho de qualquer escritor algo assim. É óbvio que aceitei na hora. A partir de então, o Leandro utiliza meus contos e crônicas em trabalhos e provas com seus alunos e, inclusive, um dos textos de minha autoria virou uma peça de teatro feita pela garotada. 

    Pois bem, no dia 21/11/2023, fui até o CEF 102 Norte para o meu segundo encontro, já que, ano passado, estive lá pela primeira vez, e, de cara, fui recebido por um entusiasmado Leandro, que me confidenciou que muitos dos seus alunos estavam descrentes de que eu iria conversar com eles, sem falar nos outros, que estavam muito ansiosos. Eu disse que havia acordado às 2h da madrugada, tamanha ansiedade que havia tomado conta de mim, mesmo que o encontro estivesse programado para o período da tarde. 

    Assim que fui apresentado à primeira turma, percebi naqueles olhos infantis um brilho que, talvez, muitos de nós perdemos ao longo dos anos. A garotada não parava de me fazer perguntas das mais variadas. Tentei responder a todos da maneira mais direta possível, mesmo porque logo se formou uma conexão  entre nós, como se já fôssemos amigos há tempos. Coisas de crianças, que deveríamos levar conosco para sempre. 

    Vários nomes, que eu conhecia apenas das cartinhas recebidas daquela galera, se tornaram rostos naquele momento. A Liv, uma menina com os olhos e cílios enormes como os da minha filha mais velha, a Ninica. O Odin, com seu nome de deus nórdico. O Wendell, que ficou feliz por eu ter escrito o seu nome corretamente. O Rochinha, carismático além do infinito, que havia me recebido antes de eu entrar em sala de aula. 

    Outro menino que me encantou foi o Christopher, artista nato. Ele, sem qualquer traço de timidez, veio me falar que sabia fazer imitações. 

    _ Eduardo, você quer me ver imitar um bem-te-vi?

    Obviamente que respondi que sim. E lá estava aquele som lindo saindo diretamente da garganta desse menino. Mas não pense que parou por aí. Ainda teve imitação da cantora Joelma, que rendeu um comentário meu.

    _ Se você treinar mais, vai cantar melhor até que a Elza Soares.

    O Christopher riu e, antes que nos depedíssemos, fez outra imitação, agora do som de um golfinho. Que talento! Eu ali parado diante de um artista pronto! 

    Ao todo, conversei com cinco turmas do professor Leandro. Em cada uma delas, fui acolhido de maneira extremamente carinhosa. O tempo voou e, antes de terminar este texto, quero destacar o que uma estudante, a Janaína, me disse, ao mesmo tempo em que me sorria aquele sorriso tão cheio de vida.

    _ Eduardo, eu não acreditava que você existia.

    _ Como assim, Janaína?

   _ Ah, o professor Leandro falava pra gente que você viria nos visitar em novembro, mas eu não acreditava. Eu pensava que, no final, ele diria que o escritor era ele.

    Assim que eu ouvi essas palavras da Janaína, eu lhe disse que iria escrever sobre isso. Ela talvez não tenha acreditado, mas, quando ler esta crônica, talvez perceba que, além de eu existir, cumpri com a minha palavra. 




  • Nota de esclarecimento: A crônica "Promessa é dívida" foi publicada por Notibras no dia 27/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/alunos-da-rede-publica-usam-notibras-como-pauta-de-portugues/

    

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Mafalda e os sisos

     

    As pessoas gargalhavam tão desvairadamente, que dava para ver os sisos ou a ausência deles. Isto, para Mafalda, era a prova irrefutável de que nem todo mundo tem juízo. Seja como for, ela continuou arrancando risadas despudoradas da pequena plateia ao seu redor, enquanto o marido, Alves, ficava perto da churrasqueira para não deixar a carne passar do ponto. 

    Entre os convidados estava Gerson, amigo de longa data do seu amado esposo. Sim, ninguém jamais poderia acusá-la de não amar o tranquilo Alves, sempre solícito para todos os desejos da esposa. Aliás, os dois se davam tão bem, que bastava um olhar para saber o que o outro estava pensando. E como se desejavam, como se amavam, não importava o local. Às vezes até ali mesmo naquele amplo quintal, encostados na churrasqueira, que nem precisava estar acesa, tamanha a quentura daqueles corpos.

    Mas voltemos ao Gerson. Pois é, o Gerson! Basta uma simples descrição daquele homem para afastar qualquer suspeita de que alguém lhe desejasse. Baixinho, não passava de 1,60 m. Careca, desses que deixam um arco de parcos cabelos ao redor da cabeça. Barrigudo, do tipo que sofre tanto com os botões das calças, que, não tarda, prefere se render ao ridículo dos suspensórios. 

    Pois bem, o gajo, apesar da flagrante falta de atrativos físicos, vez ou outra aparecia com uma mulher de saltar os olhos de quem tivesse a sorte de vê-la passar. Ah, e antes que alguém fale que, na certa, era por conta dos milhões da polpuda conta bancária do Gerson, isso não procede. Ele, que não era um miserável, estava bem longe de poder deixar o boi na sombra. 

    Vale aqui lembrar que a Mafalda, no auge dos seus 38, tinha plena ciência dos seus atributos. Quase alta, caso não fosse por aqueles míseros centímetros que a impediam de ultrapassar o 1,70 m, mas nada que um bom salto não pudesse resolver. Quanto ao Alves, este era um tipão. Alto, corpo quase em forma, apesar dos 50, não tão bonito de rosto, mas não teria dificuldade de atrair supostas pretendentes. Possuía lá seus atrativos. 

    Aconteceu o improvável. Foi pouco antes desse churrasco, enquanto o Alves teve que fazer uma viagem a trabalho. Não demorou tanto assim, mas foi mais que suficiente para que Mafalda e Gerson se entregassem a algo mais forte do que eles. Amaram-se como namorados de poucos dias, cheios de faíscas e desejos irracionais. 

   Mafalda, satisfeita pela noite de amor, levantou e foi até o enorme espelho do quarto. Ela sorriu aquele sorriso de satisfação, mas não de satisfeita. Ela queria mais, muito mais. Enquanto observava o corpo completamente nu do amante através do espelho, não sentiu qualquer remorso. Gerson também não demonstrava arrependimento pelo delito. Não era culpa deles terem nascido sem os sisos.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Mafalda e os sisos" foi publicado por Notibras no dia 22/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/lencois-de-mafalda-recebem-amigo-do-marido/

terça-feira, 21 de novembro de 2023

O velho e a mitral

    

    Apesar de não me sentir tão velho, a maioria das pessoas costuma colocar um senhor logo antes do meu nome. E não pense você que possuo posição social de destaque. É verdade que também não preciso contar os vinténs no final do mês, isto é, desde que não surja algum imprevisto ou, por ventura, eu resolva extrapolar o orçamento por conta de certas extravagâncias. Por sorte, gente da minha idade geralmente as usufruiu quase todas há tempos. 

    Como deve ter percebido, já passei dos 60. Para ser preciso, completei 67 no último julho. Devo confessar que, há tempos anos, abomino meus aniversários. Não por conta do avançar da idade, mas porque todos, invariavelmente, acontecem no mesmo dia do mês mais frio do ano por aqui onde moro. Minhas carnes, antes firmes, agora não suportam mais os rigorosos invernos que cismam em chegar praticamente na mesma época.

    Além do clima, outro desconforto me tomou nos últimos dias. Não sei se essa é a palavra adequada, mesmo porque, até aquele exato momento, havia suportado, certamente a contragosto, todos os invernos, por mais rigorosos que fossem. Todavia, desde então, algo tem me tirado o sono e me enchido de pesadelos. É que tive meu primeiro encontro com a morte.

    Calma, que explico antes que você se aborreça e me deixe aqui falando sozinho. Isso é até compreensível, já que não seria o primeiro a fazê-lo. Entretanto, peço-lhe um pouco de paciência com este velho. Prometo ser breve, como breves foram os anos que passaram diante dos meus olhos. Como deveria tê-los aproveitado melhor!

    Fui ao médico no início da semana. Exames de rotina, nada mais. Faço-os quase anualmente. Não porque seja tão preocupado com a saúde, que, é certo, me fez companhia durante décadas. Eu, que pensava que tínhamos uma relação harmoniosa, fui pego de surpresa quando o cardiologista me abriu os olhos para um problema em uma das válvulas do coração. Mitral. Pois é esse o nome da dita cuja, que, a essa altura da vida, resolveu me trair. E eu, ingênuo até aquele momento, nunca havia desconfiado. Ela agiu sorrateiramente.

    _ Doutor, é grave?

    _ Não muito, mas requer cirurgia o mais breve possível.

    _ É arriscado?

    _ Não se preocupe com isso. Já operei diversos casos até piores do que o seu.

    _ Então, posso ficar tranquilo?

   _ Certamente, mas, como diz aquele ditado, o seguro morreu de velho. Melhor apressar o testamento.

    Que todos vamos morrer um dia, sempre soube.  No entanto, quando a morte se aproxima de maneira tão sutil, nos pega desprevenido. Seja como for, já decidi que não farei testamento. Que os herdeiros se engalfinhem pelas migalhas!

  • Nota de esclarecimento: O conto "O velho e a mitral" foi publicado por Notibras no dia 21/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/coracao-engasga-e-heranca-sera-disputada-a-tapa/


segunda-feira, 20 de novembro de 2023

As gêmeas

     

          Maria Amélia e Maria Amália nasceram do mesmo ventre há exatos 77 anos. Apenas sete minutos davam à primeira a vantagem de ter conhecido o mundo antes. Se bem que tal espaço temporal fora bastante compensado no decorrer dos anos que se seguiram pela gêmea mais nova, que sempre foi afeita a aventuras. 

            Amélia, ao contrário, viveu sua vida bem próxima à realidade das mulheres de sua idade: casou, teve filhos, netos, quebrou algumas barreiras, mas não muitas. Enviuvou cedo, teve de arrumar um trabalho, coisa sempre abominada pelo falecido, que não admitia que a esposa trabalhasse fora. Na verdade, a polpuda pensão que passou a receber do falecido, que fora alto funcionário do Banco do Brasil, era mais do que suficiente para manter o padrão de vida. Todavia, ela desejou conhecer os ares além das paredes do vasto apartamento em Copacabana.  

            Maria Amélia não se satisfez em apenas cuidar da prole. Jamais foi uma mãe ausente. Jamais! Ela sempre foi uma mãe dedicada, educou os três filhos praticamente sozinha. E nenhum deles poderia se queixar da falta de amor, carinho e, sejamos sinceros, algumas boas chineladas que receberam em momentos oportunos. 

    Teve poucos amores na vida, alguns ainda por cima platônicos, outros que se concretizaram, inclusive um que resultou em adultério. E foi justamente este que mais durou. Sete anos! E, apesar da desconfiança de alguns, jamais foi totalmente desvendado. Tanto é que, com o passar dos anos, as pessoas nem mais comentavam os constantes almoços de Adolpho e Maria Amélia. 

    Ele era o seu chefe numa repartição pública no Centro. “Dr. Adolpho é um homem sério, jamais iria se envolver com uma funcionária, ainda mais sua secretária. Além do mais, ele é apaixonado pela linda esposa”, diziam os contrários à tese de adultério. A etiqueta, parece, serviu de véu para encobrir qualquer desvio de comportamento.

            Por sua vez, Maria Amália bem cedo caiu na vida. Não que tivesse virado meretriz ou, pior até para alguns, vedete de teatro. Ela sempre fora apaixonada pelo mar, quando, ainda menina, construía castelos de areia na praia de Copacabana. 

    Quando completou seus 22 anos, tomou coragem e, para desespero dos pais, zarpou à bordo do convés do veleiro Captain Krayk ao lado de Bruno, um italiano metido a fazer o que Colombo já havia feito há séculos. Ele queria porque queria descobrir um mundo novo. E nessa empreitada achou em Amália a companheira ideal. 

    Velejaram, velejaram, velejaram. Não encontraram nenhum mundo novo, mas redescobriram alguns lugares bastante conhecidos. E possivelmente estariam juntos até hoje, caso um trágico acidente não tivesse acometido o pobre Bruno apenas nove meses depois que desatracaram na Baía de Guanabara.

     O Captain Krayk costeava o continente Africano, onde o casal já havia atracado e partido de alguns países (Nigéria, Camarões, Angola, Namíbia). Já na costa da África do Sul, o sol escaldante convidava a um mergulho no mar. O impetuoso Bruno foi o primeiro a pular nas águas quentes do oceano. Foi o primeiro. E somente ele pulou no mar, para sorte e desespero de Amália, que, quando já estava pronta para fazer companhia ao amado, viu o azul da água ser tomada por um vermelho assustador. Tubarão!

            Até hoje Amália não sabe como conseguiu chegar ao primeiro porto da África do Sul. Chegou! É fato que chegou! E, quando se encontrou em terra firme, a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi retornar para casa e pedir perdão aos pais. 

            Chorou. Chorou muito! E descobriu que havia uma segunda alternativa: viajaria por terra mesmo, conheceria todo o continente africano. Logo depois de fazer o que havia de ser feito, voltou para os braços da sua grande paixão: o mar. 

            Viajou, viajou, viajou... Conheceu toda a costa africana, mas isso era pouco para o espírito aventureiro dessa mulher. Amou vários homens, também algumas mulheres. Mas nem todo amor na sua vida teve uma conotação romântica. Teve atrações físicas, nada além de amor carnal, é verdade. 

            Chan, um filipino de traços e voz brutos, a encantou por certo tempo. Não mais de duas semanas, sejamos sinceros. Mas, para não faltar com a verdade, provavelmente tenha sido o amor carnal mais intenso que Maria Amália viveu durante muitos e muitos anos de alcova. Tanto que, de vez em quando, seu nome é lembrado durante certas conversas mais picantes com suas amigas, mesmo depois de vários anos. 

            “O Chan era a prova viva de que o que vale não é o tamanho da varinha, mas a mágica que ela faz”, costumava dizer logo antes de cair na gargalhada. Uma gargalhada espalhafatosa, mas ao mesmo tempo encantadora. Mas ela não parava por aí, pois sempre havia histórias para contar, seja a de amores de alcova, seja de paisagens deslumbrantes, seja de culturas inimagináveis até para nós nascidos num país continental e tão diverso como o Brasil.

        Maria Amélia e Maria Amália, apesar de guardarem diferenças, também possuem lá suas semelhanças. Afinal, são gêmeas. Além do lindo sorriso de dentes desalinhados, gostam de esticar suas cangas diante da praia de Copacabana. E, caso você passe algum dia pelo posto 2, é bem provável que as encontre.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Irmãs gêmeas" foi publicado por Notibras no dia 23/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/amelia-e-amalia-so-pararam-ja-velhas-la-no-posto-2/

A garoupa

     

        Terça-feira era o dia sagrado das pescarias de Anibal e Nilson. A dupla se dirigiu até o Caminho dos Pescadores, localizado na pedra do Leme, quando o sol já não castigava tanto. Nessa terça-feira em particular, uma terça-feira de outubro, o som das cigarras acompanhou boa parte do passatempo dos dois velhos.

          Entre cocorocas e sargos, eis que surgiu uma bela garoupa no anzol de Nilson, o que fez arrancar alguns comentários exaltados dos presentes.

          _ Ganhou o dia, hein, Nilson! – Gilbert, um francês radicado no Brasil desde o final da Segunda Grande Guerra, foi o primeiro a parabenizá-lo pelo feito.

          _ Desse jeito não sobra mais peixe pra gente! – Celso, um velho pescador que morava no Méier, comentou em tom de brincadeira.

          _ Pois é, o meu amigo aqui é o maior pescador desta pedra! – Anibal emendou.

          _ Ih, olha lá a garoupa que o velho pegou! – um rapaz, que nem estava pescando, falou para a roda de amigos, todos na faixa dos 15, 16 anos.

          Diante de tais comentários, Nilson sorriu enquanto retirava o peixe do anzol. Contemplou, com certo ar de serviço cumprido, a pele escura da garoupa de não mais de 40 centímetros. Humilde, falou: "Pura sorte, pura sorte. Além do mais, prefiro um pampo, que é mais saboroso" – olhou mais uma vez o peixe que agonizava em suas mãos, devolveu-o ao mar. 

        Nilson não costumava fazer isso, mas o triste olhar daquela garoupa mexeu de certo modo com seus sentimentos. O gesto foi por puro impulso, pois, se parasse um segundo sequer para refletir, a janta já estaria garantida.

        As primeiras estrelas já despontavam no céu quando Nilson e Anibal resolveram se despedir da pescaria, que teve um saldo de três cocorocas, dois sargos, um sargento, uma garoupa devolvida ao mar e nenhum pampo.

O calçadão estava apinhado de gente correndo para cá e para lá, caminhando em vários ritmos, gente sentada nas mesinhas dos quiosques, gente em pé batendo papo, gente jogando futebol na areia, gente brincando de vôlei, gente simplesmente contemplando o mar ou, então, gente observando pessoas, possivelmente em busca de companhia para mais tarde ou, quem sabe, até para já. Anibal e Nilson, no entanto, passariam praticamente despercebidos, caso não fosse a tralha toda que carregavam.

  • Nota de esclarecimento: O conto "A garoupa" foi publicado por Notibras no dia 20/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/historia-do-rio-e-a-garoupa-devolvida-ao-mar/

domingo, 19 de novembro de 2023

Um mísero dedo

        

             A chuva chegou de repente, pegando Nilson e Anibal de surpresa. Não ficaram correndo como formigas assustadas, como a maioria dos transeuntes, nem se renderam aos apelos dos camelôs com guarda-chuvas a cinco reais. Simplesmente seguiram para um boteco, sem pressa de chegar, mesmo porque suas vestes há muito estavam empapadas: velhos molhados que nem pintos.

          Trataram logo de puxar duas cadeiras. O garçom, certeiro como um carcará, já veio com o bloquinho e a caneta em punho.

          _ Dois chopes?

          _ Dois chopes, por favor – concordou Nilson.

          _ E como aperitivo? – mais uma investida do trabalhador, camisa branca e calça preta, lutando por seu ganha-pão.

          _ Por enquanto é só isso, meu amigo – respondeu Nilson do alto da sua longeva educação. Mas pode deixar o cardápio, por favor.

          Os pingos, cada vez mais grossos, pareciam jamais ter a pretensão de deixar de molhar a terra, ou melhor, o asfalto de Copacabana. Dava para ver os respingos logo após o encontro da água com a rua. Que espetáculo! Mas que espetáculo! Espetáculo mais que fantástico para dois velhos sentados com tulipas praticamente vazias após alguns goles.

          _ Vamos acabar gripados – profetizou Anibal.

          _ Provavelmente – concordou o amigo.

          _ Talvez até peguemos uma baita pneumonia! – Anibal foi mais longe em sua profecia, mas sua voz carregava um certo tom de deboche.

          Nilson, que estava sorvendo o último gole, baixou lentamente a tulipa, encarou o amigo e, percebendo o caçoar, sorriu.

          _ Pois é, provavelmente até mesmo morramos algum dia. Quem sabe por esses dias?! É certo que muita gente já deve ter rezado uma missa pra mim.

          _ ... – Anibal somente encarou o amigo.

          _ Chefe, por favor, mais dois chopes e uma porção de fritas! – Nilson falou em um tom levemente acima do usual, pois o barulho da chuva competia com a sua voz.

          Os velhos ficaram no botequim até sentirem o quão suas pernas conseguiriam suportar o peso de tantas tulipas. Depois decidiram prolongar um pouco mais a conferência, mesmo porque os dois se lembraram que há muito deixaram a necessidade de levantar cedo para trabalhar no dia seguinte. Simplesmente, também, não precisariam de suas pernas naquele dia para retornarem aos seus lares. Bastaria um mísero dedo para chamar um táxi.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Um mísero dedo" foi publicado por Notibras no dia 19/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/velhos-amigos-trocam-profecias-durante-chope/

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Gaúcha, mas filha de nordestina

     

    A mulher, nordestina de nascimento, coração, alma e tudo mais que tivesse direito, foi morar em Porto Alegre. No entanto, não foi por conta do que geralmente o povo do Sul acredita, já que condição é o que não lhe faltava. Isso mesmo! Além de condição, ocupava cargo importantíssimo em órgão pra lá de almejado por concurseiros de plantão. 

    _ Sabia que você nem parece que veio do Nordeste?

    _ Ôxe! Pois está deveras enganada! Se eu saí do meu Nordeste, o meu Nordeste continua aqui dentro bem grudadinho em mim.

    Não que ela fosse orgulhosa por suas origens. Era uma questão inerente ao seu ser, que, desde sempre, hoje e adiante, se perpetuaria como o Sol nasce e se põe infinitamente. Era nordestina e pronto! Não dava e nem havia margem para discussão. 

    _ Mas...

    _ Não tem mais nem menos. Sou o que sou e fim de papo!

    A mulher foi ficando por aquela cidade, adaptando-se à rotina. Provou chimarrão, até gostou, mas nada que a fizesse abandonar o hábito do café. Teve mais afeição pelo churrasco, especialmente da famosa costela vinda do Uruguai. Uma delícia!

    Perambulou por toda a cidade, foi ao Brique da Redenção aos domingos, à Feira Ecológica do Menino Deus aos sábados, ao Centro Histórico, à Orla do Guaíba. Tudo, que antes era novidade, se transformou em hábito. E, de tanto rodar pela cidade, acabou conhecendo um belo rapaz, cujo sotaque lhe chamou a atenção na fila do pão, ali no supermercado mais famoso da cidade. 

    _ Dois pães, por favor.

    Assim que o rapaz tomou a direção do caixa, a moça decidiu segui-lo, pois já estava satisfeita com os itens colocados no carrinho.

    _ Carioca, né?

    _ Sim. Como descobriu?

    _ É que conheço os cariocas pelo jeito de andar.

    A conversa engatou e, já na saída do estabelecimento, o homem a convidou para prosseguirem na cafeteria da esquina. Despachada como ela só, aceitou com aquele sorriso mais lindo do mundo. Do café para o amor, foi um pulo e, alguns meses após, estavam casados e felizes.

    Foi numa segunda-feira de dezembro que a mulher, que havia sonhado com algo há muito desejado, se descobriu grávida. Contou ao marido, que chorou abraçado à esposa. Que felicidade!

    Os meses correram e, finalmente, nasceu uma linda menina de cabelos pretos como os de uma graúna. O sorriso, apesar da flagrante falta de dentes, era todo da mãe. Do pai, talvez o espaço incomum entre o dedão do pé e o segundo. 

    Não tardou, aquela amiga, a mesma amiga que cismava em dizer que a mulher não parecia ser nordestina, foi visitá-la. Beijinhos daqui, beijinhos dali, a amiga não resistiu e soltou uma provocação.

    _ Pois é, querida, a sua filha é gaúcha.

    _ Gaúcha, porém, filha de nordestina. Vai dormir na rede, sim!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Gaúcha, mas filha de nordestina" foi publicado por Notibras no dia 17/11/2023. 
  • https://www.notibras.com/site/chimarrao-e-churrasco-na-mesa-mas-berco-e-rede/

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Às favas

        Às vezes, os olhares inquisidores são extremamente castradores. Se somos jovens, a pressão costuma ser bem maior, mas chega-se a certa idade e, então, olhamos para dentro de nós, buscamos o nosso eu, nos importamos conosco, somos simplesmente nós mesmos. O que é o mundo? O que todo mundo tem a ver com nossos atos? Atos falhos? Bugalhos? Às favas!

As nuvens foram chegando como que não quisessem muita coisa. Uma a uma, todas foram se aglomerando no céu, antes praticamente onde só se via azul, tornando-o cinza, quase negro. Bum! Caiu aquela água toda, pegando muita gente desprevenida. Gente se amontoando sob as marquises para se proteger da chuva, os carros espalhando a água que ia se acumulando ao lado das calçadas. O trânsito já caótico de Copacabana ficou praticamente intransitável. Bi-bi! Fom-fom! Priiiiiiiiiii! O guarda de trânsito tentava, inutilmente, colocar ordem no caos.

          Silva acabara de deixar Elizabeth, sua namorada, em casa, quando se deparou com o espetáculo da natureza afligindo as pessoas nas ruas e avenidas, nas calçadas sob as marquises ou dentro de algum comércio. Ele não estava com pressa, mas não quis se deter como muitos transeuntes. Arriscou-se no temporal.

          O velho foi caminhando, vencendo os metros. Sua bexiga, talvez pela idade avançada, só começou a dar sinais de que estava repleta quando praticamente chegou à rua. Não quis retornar ao apartamento da amada apenas para urinar. Continuou caminhando, logo estaria em casa, pensou.

          Quando alcançou a primeira esquina, suas roupas já estavam mais molhadas do que se estivesse dentro de uma piscina. A bexiga apertava tanto, que incomodava, doía, cada passo era um tormento. Silva pensou em entrar em algum bar e despejar todo aquele líquido amarelo que carregava, mas preferiu continuar. E foi o que fez.

          Segundo quarteirão vencido, a bexiga castigava mais e mais a teimosia do velho. Ele talvez não resistisse por mais alguns metros. Preferiu continuar, a despeito da torrencial enxurrada. Velho teimoso que era, prosseguiu!

          Quando já ia chegando ao terceiro quarteirão, parou diante do sinal de trânsito. Os carros buzinavam, os transeuntes duelavam seus guarda-chuvas na tentativa de não se molharem tanto. O velho parou por um instante. As roupas totalmente molhadas, inteiramente coladas ao corpo. Pensou, pensou. Pensou! Afinal, quem perceberia? Certamente só ele, e, mesmo assim, por causa da diferença de temperaturas. Concentrou-se. Parado ainda, olhava para os lados, enquanto o quentinho seguiu o seu caminho natural. Que alívio!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Às favas" foi publicado por Notibras no dia 16/11/2023. A pedido da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para dar a entender que a história se passa no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/chuva-salva-silva-que-parou-e-deixou-o-xixi-descer/

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Medo da chuva


        O medo é algo intrínseco a todos nós. Sabemos que há os destemidos, todos, aliás, fingidos de uma sociedade hipócrita. Por conta disso, qualquer um de nós poderia afirmar que a fragilidade humana nos aproxima, ao mesmo tempo em que nos afasta. 

     Como somos todos medrosos, isso nos une. Entretanto, nossos medos não são congruentes. Há pessoas que morrem de medo de barata, aranha, cobra e até mesmo de ursos-polares, mesmo vivendo ao Sul da linha do Equador.  Também não podemos deixar de apontar para vários indivíduos receosos de escuro, fantasma, assombração, ou seja, de coisas místicas. 

       Aqueles que acompanham meus escritos sabem que sou casado com a Dona Irene. Pois bem, apesar dela ser flagrantemente muito mais corajosa que eu, minha esposa tem lá alguns pavores. Um deles é de barata, como grande parte da população mundial. Outro, no entanto, é algo mais peculiar: chuva. 

      E lá estávamos nós dois dormindo na fazenda que tivemos em Goiás, quando começou a chover toda a água do Céu. Com certeza, São Pedro havia deixado todas as torneiras abertas, talvez por descuido, talvez até para provocar medo na minha amada. Tudo por implicância!

        Como tenho sono de pedra, não percebi aquele desperdício de água caindo sobre o telhado. Era um temporal, obviamente acompanhado de raios e trovões. A Dona Irene, completamente em pânico, me cutucou até que conseguiu me despertar.

        _ Oi, amor, o que foi?

        _ Dudu, está chovendo.

        _ Hum. Vamos dormir.

        _ Pede pra chuva parar!

        _ Chuva, para.

     Aqueles olhos assustados, quase escorrendo lágrimas, aguardavam ansiosamente por aquele milagre. É claro que o meu pedido não surtiu efeito. Por isso, olhei para a minha mulher e disse: "Não parou".

      Ela me abraçou e assim permanecemos até o amanhecer. O dia estava lindo. A Dona Irene me puxou para fora da casa e fomos passear. Todos os passarinhos pareciam ter feito o mesmo, pois eram nítidos os sons daquela orquestra. Quanto ao São Pedro, creio que ele iria ter um treco, pois a conta d'água seria alta naquele mês.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Medo da chuva" foi publicada por Notibras no dia 18/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/torneira-aberta-dobra-conta-dagua-de-s-pedro/

    

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Tudo por conta de uma anágua

    

    Não foi muito antes de contemplar meus primeiros pelos debaixo do nariz. Talvez, pelo longo espaço temporal, eu esteja cometendo uma pequena falha de meses ou, pode até ser, alguns anos. Na verdade, tais detalhes são irrelevantes. Certamente, não havia chegado aos 20. Ou não.

    Lá estava diante da porta da casa da Matilda, já uma velha naquela época. Hoje, bem sei, ela está há pelo menos 30 anos deitada no São João Batista, endereço eterno de tantos famosos, além de um número infinito de meros mortais. Seja como for, a soberba de alguns parece ter sido em vão, já que todos, no final, se igualaram. 

    Provavelmente, você, que aqui me lê, deve estar agoniado diante de tanta enrolação. Que seja! Vou desembuchar, antes que perca mais um leitor, que, até onde consta, não são muitos. Estava ali por conta de uma encomenda. Digo, uma anágua. 

    Dei dois toques sutis na carcomida porta de madeira, o suficiente para me fazer anunciado. Não demorou, Matilda veio me atender. Fui recebido com um largo sorriso. A idosa, que há pouco havia trocado a dentadura, andava sorridente. Motivo outro, diziam à boca pequena, era por causa de um primo do falecido marido. Como não entendia dessas coisas naqueles idos ou, então, meu olhar estava mais preocupado com as pernas torneadas da Sandrinha, não posso dizer que sim ou que não. 

    A velha me convidou para entrar. Havia duas outras senhoras na ampla sala. A gordinha, eu conhecia. Não me recordo do seu nome. Elaine ou Eliane ou algo assim. Elisa? Pode ser. Não importa. A outra, uma mulher de aparência elegante, nunca havia visto. Bem que poderia ser capa de alguma revista de artistas. Exagero ou realidade, não posso afirmar, mas é como me recordo dos seus traços. 

    _ Um instante, Betinho. 

    Matilda foi até um cômodo da casa, enquanto a fiquei aguardando em pé. A gorda e a artista me fitavam de cima a baixo, como se estivessem escolhendo o próximo modelito. Meu rosto começou a pegar fogo, com certeza completamente vermelho, como ainda acontece sempre que fico envergonhado por algo. 

    Não sei quanto tempo depois a velha voltou com um pacote. No entanto, pareceu-me uma eternidade. A minha vontade era sair correndo dali. Mas a bonitona, que continuava me encarando com aqueles olhos enormes, quis saber quem eu era.

    _ É o Betinho, filho da Mariana, que mora no final da rua. 

    Se eu disse alguma coisa, não me lembro, mas bem sei que ela não tirava aqueles olhos de mim. O rosto, frio como o de uma loira platinada de Hitchcock, começou a me provocar calafrios. E, antes que eu pudesse fazer algo, eis que alguém deu dois toques na porta, o suficiente para que Matilda fosse ver quem era. 

    Solange, antiga moradora do bairro, entrou toda sorridente. Matilda me entregou o pacote com a anágua da minha mãe, enquanto aproveitei a porta aberta e saí, mas não antes de escutar o seguinte interlúdio, que ainda hoje me corrói de curiosidade.

    _ Solange, vou passar um cafezinho. 

    _ Não precisa, Matilda. Vim aqui apenas para lhe deixar esse vestido para ajustar.

    _ Mas você aceita uma fofoca?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Tudo por conta de uma anágua" faz parte da Coletânea de Contistas Contemporâneos 2023 - Volume I da editora Persona. 
  • O conto "Tudo por uma anágua foi publicado por Notibras no dia 13/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/clima-de-suspense-por-conta-de-uma-anagua/
  • O conto "Tudo por uma anágua faz parte da 42ª edição da Revista LiteraLivre, 2023.
  • https://drive.google.com/file/d/17eHuCBSfBm8MdceDc5oZApqQZcN-tIMv/view

domingo, 12 de novembro de 2023

Tião, o caloteiro

    Sebastião fora chamado pelo nome de batismo apenas pela professora na época de escola ou, então, quando a mãe queria lhe aplicar um corretivo, tão costumeiro em tempos idos. Desde pequeno, todos o conheciam por Tião. E sempre foi assim, inclusive nos anos seguintes nos diversos empregos por onde  havia passado.

    Não que fosse mal funcionário, certamente diria sua avó, que sempre o protegia. Mas também não se pode afirmar que Tião se destacasse entre os demais. Talvez fosse simplesmente a falta de sorte ou, então, o excesso de azar que perambulava pela vida daquele homem. 

    Seja como for, a coisa não andava muito boa para o lado do Tião, que vivia deveras requisitado pelos credores do bairro. A situação ficou ainda mais drástica quando a Doralice mandou o namorado, o Elismando, cobrar o caloteiro. Não que o Tião fosse covarde, mas evitar encarar o Elismando era questão de sobrevivência. É que o amado da Doralice era o que se pode chamar de armário dois por dois.   

    Tião fugiu o quanto pode. Mandou dizer que na semana seguinte pagava o que devia, anunciou aos quatro cantos que a mãe estava acamada, mesmo que esta esbanjasse saúde nos bailes do clube da esquina, arranjou uma bengala e um par de óculos escuros e se fez de cego por quase um mês. As mentiras eram tantas, que acabou sendo pego quando teve a brilhante ideia de engessar a perna. Engessou a direita num dia, mas não aguentou a coceira provocada pelo gesso, que acabou arrancando aquilo tudo. Não tardou, engessou novamente a perna, só que a esquerda. 

    Elismando ficou tão furioso com as artimanhas do Tião, que foi tomar satisfação. Chegou esbaforido na casa do devedor. Tocou a campainha, mas esta estava quebrada. Tentou manter a calma e, então, deu três leves toques na porta. Nada! Cheio de cólera, esmurrou a porta, que quase veio ao chão. 

    Finalmente, uma voz bem fraca veio lá de dentro da casa.  Era o Tião, que parecia doente. Elismando, todavia, estava decidido a não cair em mais uma mentira do pilantra. Percebeu que a porta estava destrancada e, sem pedir licença, entrou. 

    O brutamontes queria porque queria esmurrar a face deslavada do Tião. Procura daqui, procura dali, ele acabou encontrando-o deitado na cama. Estava quase disposto a arrancá-lo daquele berço esplêndido, quando percebeu um pratinho nas mãos trêmulas do gajo. Alguns grãos de ração, que eram levados, um a um, para a boca tristonha do Tião. Elismando, talvez envergonhado por ir cobrar a dívida daquele pobre coitado, quis saber o porquê dele estar comendo comida de cachorro. E, diante da resposta que recebeu, até ofereceu mais dinheiro para o caloteiro.

    _ Meu querido, na guerra, urubu é frango. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Tião, o caloteiro" foi publicado por Notibras no dia 12/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/elismando-irado-sente-pena-do-tiao-moribundo/
  • O conto "Tião, o caloteiro" faz parte da Antologia de Contos - Mentirinha do Grupo Qub1tis, 2023.



sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Kriska, a menina e o cemitério

    Kriska, apesar de não ser nome de registro, era como aquela mulher era conhecida por todos. E, para não restar dúvida de quem se tratava, caso aparecesse outra, deram-lhe logo um sobrenome, que combinava com seus modos ardidos desde os tempos de menina. Por conta de tal probabilidade, mesmo que mínima, ficou Kriska Pimentinha.  

    Com aquele seu jeito malagueta de ser, Kriska esbanjava simpatia, ainda mais quando sorria aquele sorriso que lhe era tão característico. Aos olhos de qualquer dentista, aquele espaço entre os dois dentes superiores da frente seria um diastema. Para outros, uma falha. Falha? Que nada! Aquilo era puro charme! 

    Outra qualidade daquela mulher era seu amor pelas crianças. De tanto amá-las, acabou por ter quatro. Sim, isso mesmo! Quatro! Não resta dúvida de que Kriska sabia e, melhor, gostava de amar! E como amava!

    Por falar nesse carisma que Kriska possuía, vale aqui uma história, que, dizem, aconteceu no último Finados. Aliás, Dia dos Finados ocorrido no local mais propício para causos desse tipo, apesar da aversão total daquela mulher a qualquer acontecimento do além. Mas aconteceu! Fazer o quê?

    Pois lá estava a nossa heroína no cemitério, para onde havia ido fazer uma visita aos túmulos dos seus parentes. Medrosa que só, não conseguiu deixar de notar uma menininha sentada num banco. Uma linda menininha, por sinal, que nem aquela que, um dia, Kriska havia sido.

    Curiosa, a mulher tomou coragem e foi puxar conversa com a tal garotinha. Mal se aproximou, percebeu aqueles olhos enormes e lindos, de um tom castanho aconchegante. Kriska se abaixou e segurou uma das mãos da menina.

    _ Que olhos tão lindos!

    _ Obrigada.

    _ Cadê os seus pais?

    _ Não vieram.

    _ Mas você não tem medo de ficar aqui sozinha?

    _ Quando eu era viva, sim.

    Logo em seguida, as duas riram bastante. No entanto, Kriska Pimentinha, de tão nervosa, acabou fazendo xixi na calça. A mulher, toda trêmula de medo, saiu correndo, enquanto o líquido amarelo e quentinho escorria pelas suas pernas. Correu tanto e, somente já perto da saída do cemitério, teve coragem de olhar para trás. A menina, todavia, não estava mais lá.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Kriska, a menina e o cemitério" foi publicado por Notibras no dia 10/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/kriska-vive-sonho-fantasmagorico-em-cemiterio/