quinta-feira, 20 de março de 2025

O juiz, a síndica e o novo morador

Juiz de direito, Amâncio tinha apreço pelo ofício, ainda mais porque era, a todo instante, chamado de Vossa Excelência. Pois é, além de Vossa, havia também Excelência, o que não dava a menor margem para dúvidas sobre sua eficiência e eficácia. Sentia-se amálgama de Muhammad Ali e Bruce Lee na música 'Um índio', de Caetano Veloso.

          Impávido, tranquilo e infalível. Ninguém podia com Amâncio. Todos o respeitavam. Melhor, temiam o sujeito, sem contar algumas figuras que chegavam a venerá-lo, como se entidade fosse. Tanto é que, a menor pendenga que surgisse, o magistrado era consultado. E foi justamente por conta de imbróglio envolvendo novo morador que a síndica, dona Maricota, foi ter um dedo de prosa com o mais ilustre residente do condomínio.

          — Dr. Amâncio, desculpe incomodá-lo no conforto do seu lar, mas é que surgiu cizânia inadiável.

          — Pois não precisa se desculpar, dona Maricota, pois o trabalho de um juiz de direito nunca termina. 

          — Sim, é verdade, seu juiz.

          — Juiz de direito, não esses juízes de paz.

          — Sim, de direito, seu doutor.

          — Mas qual o motivo da consulta?

          — Consulta?

          — É, dona Maricota. Qual a razão da sua vinda?

          — Ah, tá! É que o novo morador do 306 descumpriu uma norma do condomínio.

          — Que afronta! Mal chegou e já está infringindo norma que foi decidida em ata.

          — Pois é, pra o senhor ver como são as coisas.

          — Hum! E qual foi a norma quebrada pelo réu?

           — Ele trouxe um animal.

           — Um animal? Pois qual bicho seria? Aposto que é um desses cachorros que passam o dia inteiro latindo. 

           — Não.

          — Não? Hum! Seria então um gato?

           — Não.

           — Não? Seria uma araponga?

           — Não, doutor.

           — Não é possível que esse doidivanas trouxe pra cá um tigre ou um elefante?

            — Um peixe.

            — O quê?

            — Um peixe, seu juiz.

            — Que seja um peixe, então, dona Maricota. Esse morador quebrou a lei! Ninguém está acima da lei! Imagine um país sem lei? Onde estaríamos?

             — O senhor tem razão.

             — Pois vamos agora mesmo resolver essa questão, dona Maricota. 

             Não tardou, lá estavam a síndica e Amâncio diante da porta do transgressor. Coube ao juiz tocar a campainha. Nada. Novo toque, mas nada do morador atender. Teria saído? Impaciente, a mulher olhou para a autoridade e posicionou o indicador no botão da campainha, mas eis que a porta, milagrosamente, se abriu.

              — Bom dia, dona Maricota.

              — Bom dia, seu Gilmar.

              — O que desejam a esta hora?

              — Este é o juiz Amâncio.

              — Juiz?

              — Sim, isso mesmo, seu Gilmar, juiz!

              — Juiz de direito, por favor. 

              — Oh, me desculpe, doutor. Juiz de direito!

              — Tá! Mas e daí?

             — Daí que o senhor está infrigindo uma das mais importantes normais deste condomínio.

              — Eu?

              — Sim, o senhor mesmo, seu Gilmar!

              — Que norma é essa, seu juiz de direito?

              — Foi-me reportado que o senhor possui um animal de estimação.

              — O Aurélio?

              — Aurélio? Quem é Aurélio?

              — Não é mais, dona Maricota.

              — O que não é mais, seu Gilmar?

              — O Aurélio.

              — Como assim, seu Gilmar?

              — Não soube?

              — O que eu não soube, seu Gilmar?

              — Do Aurélio.

              — Meu senhor, por favor! Afinal, quem é esse tal Aurélio?

              — Senhor juiz de direito, dobre a língua quando falar do meu Aurélio. Ele não era qualquer um.

              — Senhor Gilmar, por favor, o senhor sabe com quem está falando?

              — O senhor não é juiz de direito?

              — Sou, sim, senhor!

              — Então...

              — Então, o quê, seu Gilmar?

              — Então que o Aurélio já não é.

              — E quem é esse Aurélio que já não é?

              — Meu peixe.

              — Morreu?

              Gilmar não conseguiu evitar que as lágrimas escorressem pelo seu rosto. Dona Maricota e Amâncio, consternados com o novo vizinho, não tiveram escolha. Abraçaram o sujeito, que caiu em prantos. 

               Mais alguns minutos, lá estavam os três sentados à mesa da cozinha, tomando café e degustando bolinhos de chuva. No centro, um belo vaso com violetas. Gilmar, com aqueles grandes olhos castanhos, fitava a planta. Perspicaz como ele só, Amâncio parecia ter desvendado o mistério.

               — Seu Gilmar, o Aurélio está enterrado nesse vaso?

           — Não, seu juiz de direito. Pouco antes de vocês chegarem, joguei o Aurélio na privada. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O juiz, a síndica e o novo morador" foi publicado por Notibras no dia 20/3/2025.
  • https://www.notibras.com/site/confusao-por-animal-em-condominio-acaba-em-cafe-e-biscoitinhos-doces/

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