sexta-feira, 21 de março de 2025

Entre poetas e poesias

    

Aqueles dois se esbarraram pela primeira vez em uma livraria em Salvador. Júlio, rapazola dos seus 20 anos, folheava Manuel Bandeira. De tão absorvido com a leitura, não percebeu quando Maria Lúcia, mulher já passada dos 70, adentrou no recinto. Ela se dirigiu ao balcão e, voz firme, perguntou sobre novos poetas.

          — Daniel Marchi. Conhece?

          — Não. É italiano?

          — Carioca, mas o sobrenome parece que é italiano. 

          — Hum! Interessante! Da minha terra.

          — A senhora é italiana?

          — Carioca.

          O atendente entregou um exemplar de 'A verdade nos seres' para a cliente, que começou a manuseá-lo com bastante interesse. Foi aí que Júlio notou a presença da senhora, o que comprova a tese de que leitores são atraídos por outros leitores. Seus olhares se cruzaram e um inevitável e quase imperceptível sorriso surgiu nos lábios dos dois.

          — Hum! Tá de Bandeira?

          — Como?

          — Manuel Bandeira.

          — Ah, sim. Gosta?

          — Muito.

          — E a senhora?

          — Marchi. Daniel Marchi. Conhece?

          — Ouvi falar. É bom?

          — Tô descobrindo agora.

          — Então, depois a senhora me conta.

          — Maria Lúcia. E você?

          — Júlio.

          No mês seguinte, aqueles leitores se encontraram novamente na mesma livraria. Ela estava na parte dedicada a novos autores, quando Júlio entrou. Ele buscava por Drummond, mas não descartava levar algo de Vinicius, se bem que andava encantado com Adélia Prado. Na dúvida, o rapaz acabou deixando o carioca de lado e levou um livro de Drummond e outro de Adélia.

            — Hum! Adélia e Drummond são excelentes, Júlio.

            — Sim. E o que você comprou?

            — "O diagnóstico do espelho", da Sarah Munck. Conhece?

            — Hum... Parece que sim. Ela é mineira, né?

            — Sim, de Juiz de Fora.

            — Olha que coincidência, Maria Lúcia.

            — O quê?

            — Hoje decidimos pelos mineiros.

            — É verdade.

            Ao longo do ano, laços se formaram entre a velha e o jovem, como se idades não passassem de meras datações. É verdade que Maria Lúcia era mais vivida, mas Júlio tinha lá suas vivências próprias, muitas nem sonhadas pela amiga. 

           — Meus filhos, todos criados, que poderiam ser seus pais, não me dão tanto trabalho.

             — Qual a idade deles?

              — O mais novo está com 45.

              — Idade da minha mãe. Papai já tem 52. E o seu marido?

              — Ah, um chato. 

              — Hum...

             — Marido dá muito trabalho, estou cansada, esgotada. o Augusto sempre teve uma mulher para escorar. Era a mãe, depois as irmãs, depois em mim.

              — Espero não ser um estorvo pra minha esposa.

              — É casado?

              — Não, ainda não. Nem tenho namorada. Quer dizer, eu tinha, mas ela não quis mais.

              — Amores vão e vêm.

              — É verdade, Maria Lúcia.

              Os dois amigos continuam frequentando a mesma livraria, seja em busca de novos autores, seja remexendo os antigos. Trocam confidências ou, então, tomam café enquanto leem uma poesia. E a vida segue, apesar da maioria parecer mais preocupada com as mensagens, todas urgentes, que chegam pelo celular. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Entre poetas e poesias" foi publicado por Notibras no dia 21/3/2025.
  • https://www.notibras.com/site/entre-poetas-e-poesias-na-velha-e-aconchegante-livraria-de-salvador/

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