Aqueles dois se esbarraram
pela primeira vez em uma livraria em Salvador. Júlio, rapazola dos seus 20
anos, folheava Manuel Bandeira. De tão absorvido com a leitura, não percebeu
quando Maria Lúcia, mulher já passada dos 70, adentrou no recinto. Ela se
dirigiu ao balcão e, voz firme, perguntou sobre novos poetas.
— Daniel Marchi. Conhece?
— Não. É italiano?
— Carioca, mas o
sobrenome parece que é italiano.
— Hum! Interessante! Da
minha terra.
— A senhora é italiana?
— Carioca.
O atendente entregou um
exemplar de 'A verdade nos seres' para a cliente, que começou a manuseá-lo com
bastante interesse. Foi aí que Júlio notou a presença da senhora, o que
comprova a tese de que leitores são atraídos por outros leitores. Seus olhares
se cruzaram e um inevitável e quase imperceptível sorriso surgiu nos lábios dos
dois.
— Hum! Tá de
Bandeira?
— Como?
— Manuel Bandeira.
— Ah, sim. Gosta?
— Muito.
— E a senhora?
— Marchi. Daniel
Marchi. Conhece?
— Ouvi falar. É bom?
— Tô descobrindo
agora.
— Então, depois a
senhora me conta.
— Maria Lúcia. E
você?
— Júlio.
No mês seguinte,
aqueles leitores se encontraram novamente na mesma livraria. Ela estava na
parte dedicada a novos autores, quando Júlio entrou. Ele buscava por Drummond,
mas não descartava levar algo de Vinicius, se bem que andava encantado com
Adélia Prado. Na dúvida, o rapaz acabou deixando o carioca de lado e levou um
livro de Drummond e outro de Adélia.
— Hum! Adélia e Drummond são excelentes,
Júlio.
— Sim. E o que você comprou?
— "O diagnóstico do espelho",
da Sarah Munck. Conhece?
— Hum... Parece que sim. Ela é mineira,
né?
— Sim, de Juiz de Fora.
— Olha que coincidência, Maria Lúcia.
— O quê?
— Hoje decidimos pelos mineiros.
— É verdade.
Ao longo do ano, laços se formaram entre
a velha e o jovem, como se idades não passassem de meras datações. É verdade
que Maria Lúcia era mais vivida, mas Júlio tinha lá suas vivências próprias,
muitas nem sonhadas pela amiga.
— Meus filhos, todos criados,
que poderiam ser seus pais, não me dão tanto trabalho.
— Qual a idade deles?
— O mais novo está com
45.
— Idade da minha mãe.
Papai já tem 52. E o seu marido?
— Ah, um chato.
— Hum...
— Marido dá muito trabalho,
estou cansada, esgotada. o Augusto sempre teve uma mulher para escorar. Era a
mãe, depois as irmãs, depois em mim.
— Espero não ser um
estorvo pra minha esposa.
— É casado?
— Não, ainda não. Nem
tenho namorada. Quer dizer, eu tinha, mas ela não quis mais.
— Amores vão e vêm.
— É verdade, Maria
Lúcia.
Os dois amigos continuam
frequentando a mesma livraria, seja em busca de novos autores, seja remexendo
os antigos. Trocam confidências ou, então, tomam café enquanto leem uma poesia.
E a vida segue, apesar da maioria parecer mais preocupada com as mensagens,
todas urgentes, que chegam pelo celular.
- Nota de esclarecimento: O conto "Entre poetas e poesias" foi publicado por Notibras no dia 21/3/2025.
- https://www.notibras.com/site/entre-poetas-e-poesias-na-velha-e-aconchegante-livraria-de-salvador/
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