quarta-feira, 5 de março de 2025

O viúvo e a finada

O homem acordou, não sabia as horas, não fez questão de sabê-las, apesar da escuridão quase completa, caso não fosse por uma nesga na cortina que permitia a entrada da luz de um poste lá embaixo na calçada. Esticou a mão e pegou o maço e o isqueiro na cabeceira. Sabia que não haveria problema, poderia acender um cigarro, já que a esposa falecera há quase dois meses. 

          — João, o cigarro vai te matar.

          Era como se a mulher ainda estivesse ao seu lado na cama. 

          — Beth, meu amor, todos iremos morrer um dia.

          A voz do sujeito saiu carregada de alcatrão, enquanto círculos de fumaça se desfaziam no ar. Era algo que, ainda muito jovem, aprendera com um amigo do seu falecido pai.

          — João, precisa fazer movimentos ritmados que nem samba dos bons.

          O então rapazola, apesar de nunca ter sido bamba dos pés, também nunca fora ruim da cabeça. Entendeu aquilo como metáfora e levou tal ensinamento para a vida. É verdade que impressionou algumas moças, com quem dividia cigarros e, quando a coisa avançava, beijos e carícias. 

          João, finalmente, decidiu se levantar. Foi até o banheiro, lavou o rosto. As olheiras, cada vez mais enegrecidas, acusavam noites em claro. Pigarreou, mas não teve ânimo de cuspir. Olhou para o lado e viu a tampa do vaso aberta.

          — João, quando é que você vai aprender? 

          A falecida quase convenceu o sujeito, mas este logo desistiu. Afinal, para que ele iria abaixar a tampa, se não precisava mais encarar a consternada expressão da esposa? Por um instante, João encarou seu reflexo no espelho, chegou a vislumbrar uma furtiva lágrima e, instintivamente, passou o dorso da mão direita no olho esquerdo.  

          Foi à cozinha preparar uma xícara de café solúvel, já que era o único que se atrevia a fazer. Sentia falta do cheiro de café de verdade que tomava conta do apartamento todas as manhãs. Beth sabia o ponto exato da temperatura da água, que não poderia ferver. De tanto vê-la preparando a iguaria, João acabou aprendendo. Não sabia se sairia com o mesmo sabor, mesmo porque jamais se atreveu a tentá-lo. Agora, então, seria como se roubasse mais uma das doces lembranças que insistia em manter. 

          — João, por que se casou comigo?

          — Hum... São tantos motivos, meu amor.

          — Bela resposta de mentiroso.

          — Não. 

          — Como não? Se soubesse ao menos um, diria. 

          — Seu café! 

          — Meu café?

          — Sim. Você faz café como ninguém.

          — E o que mais?

          — Tudo!

          — Tudo o quê, João?

          — Tudo! Seus lábios...

          — Meus lábios?

          — Adoro a marca do batom que você deixa na xícara. Sabia que é a última coisa que lavo?

          — Sério?

          — Sério. Olha que coisa mais linda essa marca de batom na sua xícara.

          Em pé na sacada, João dá o último gole no café, deposita a xícara sobre a mesa de canto. Acende outro cigarro, faz círculos de fumaça, que ganham o mundo. Depois da última tragada, amaça a ponta do cigarro no cinzeiro.

          Debaixo do chuveiro, as lágrimas se misturam com a água que cai sobre seu rosto. Quase desistindo, ele ouve a finada.

          — Reage, meu amor! Tudo vai ficar bem. 

          O viúvo, quase prestes a sair para mais um dia de trabalho, abaixa-se para amarrar os sapatos. Levanta-se e, antes de ultrapassar a porta do quarto, olha para trás.

          — Ah, João, você não aprende mesmo! Outra vez a toalha molhada sobre a cama.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O viúvo e a finada" foi publicado por Notibras no dia 5/3/2025.
  • https://www.notibras.com/site/velhas-lembrancas-marcam-amor-eterno-de-joao-por-beth-mulher-de-virtudes/

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