— João, o cigarro vai te matar.
Era como se a mulher ainda estivesse ao seu lado na cama.
— Beth, meu amor, todos iremos morrer um dia.
A voz do sujeito saiu carregada de alcatrão, enquanto círculos
de fumaça se desfaziam no ar. Era algo que, ainda muito jovem, aprendera com um
amigo do seu falecido pai.
— João, precisa fazer movimentos ritmados que nem samba dos
bons.
O então rapazola, apesar de nunca ter sido bamba dos pés,
também nunca fora ruim da cabeça. Entendeu aquilo como metáfora e levou tal
ensinamento para a vida. É verdade que impressionou algumas moças, com quem
dividia cigarros e, quando a coisa avançava, beijos e carícias.
João, finalmente, decidiu se levantar. Foi
até o banheiro, lavou o rosto. As olheiras, cada vez mais enegrecidas, acusavam
noites em claro. Pigarreou, mas não teve ânimo de cuspir. Olhou para o lado e
viu a tampa do vaso aberta.
— João, quando é que você vai
aprender?
A falecida quase convenceu o sujeito, mas
este logo desistiu. Afinal, para que ele iria abaixar a tampa, se não precisava
mais encarar a consternada expressão da esposa? Por um instante, João encarou
seu reflexo no espelho, chegou a vislumbrar uma furtiva lágrima e,
instintivamente, passou o dorso da mão direita no olho esquerdo.
Foi à cozinha preparar uma xícara de café
solúvel, já que era o único que se atrevia a fazer. Sentia falta do cheiro de
café de verdade que tomava conta do apartamento todas as manhãs. Beth sabia o
ponto exato da temperatura da água, que não poderia ferver. De tanto vê-la
preparando a iguaria, João acabou aprendendo. Não sabia se sairia com o mesmo
sabor, mesmo porque jamais se atreveu a tentá-lo. Agora, então, seria como se
roubasse mais uma das doces lembranças que insistia em manter.
— João, por que se casou comigo?
— Hum... São tantos motivos, meu amor.
— Bela resposta de mentiroso.
— Não.
— Como não? Se soubesse ao menos um,
diria.
— Seu café!
— Meu café?
— Sim. Você faz café como ninguém.
— E o que mais?
— Tudo!
— Tudo o quê, João?
— Tudo! Seus lábios...
— Meus lábios?
— Adoro a marca do batom que você deixa na
xícara. Sabia que é a última coisa que lavo?
— Sério?
— Sério. Olha que coisa mais linda essa marca
de batom na sua xícara.
Em pé na sacada, João dá o último gole no
café, deposita a xícara sobre a mesa de canto. Acende outro cigarro, faz
círculos de fumaça, que ganham o mundo. Depois da última tragada, amaça a ponta
do cigarro no cinzeiro.
Debaixo do chuveiro, as lágrimas se misturam com a água que cai sobre seu
rosto. Quase desistindo, ele ouve a finada.
— Reage, meu amor! Tudo vai ficar bem.
O viúvo, quase prestes a sair para mais um dia de trabalho,
abaixa-se para amarrar os sapatos. Levanta-se e, antes de ultrapassar a porta
do quarto, olha para trás.
— Ah, João, você não aprende mesmo! Outra vez a toalha molhada sobre a cama.
- Nota de esclarecimento: O conto "O viúvo e a finada" foi publicado por Notibras no dia 5/3/2025.
- https://www.notibras.com/site/velhas-lembrancas-marcam-amor-eterno-de-joao-por-beth-mulher-de-virtudes/
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