sábado, 31 de dezembro de 2022

Carmen, a varredora

    Carmen varreu tanto chão na vida, que não seria exagero afirmar que toda poeira que ela tinha retirado das casas por onde havia passado, caso fosse possível juntá-la, daria para construir um outro Pão de Açúcar. E lá estava a dita cuja carregando aqueles calos nas mãos, o suor escorrendo da testa, quando finalmente catou o último pó do dia. 

   Nem sentiu alívio, pois sabia que a rotina continuaria no dia seguinte, fosse segunda, terça, sábado, domingo ou qualquer feriado. Não dava para sonhar com o luxo de se espreguiçar numa rede suspensa por dois coqueiros em uma praia de areia macia. Definitivamente não! Pelo menos não naquela vida miserável que se arrastava há anos.

   Já na calçada, caminhava grudada às suas varizes que, de tão grossas, poderiam ser dissecadas facilmente por um médico em uma futura necropsia. Nem sabia se sentia dor. Devia estar acostumada ou, então, nem se lembrava dessa sensação de vida.

  Tentou pegar o primeiro ônibus, mas, de tão cheio, as portas nem se fechavam, como se fossem um gorducho tentando, inutilmente, fechar o zíper depois de uma feijoada. Tarimbada, decidiu aguardar pelo próximo, que chegou quase duas horas depois. E, apesar do cansaço da longa espera, pareceu que havia valido a pena. O caixote veio praticamente vazio. Carmen poderia se sentar e tirar um cochilo até perto de casa.

   Acomodou-se em uma das cadeiras mais ao fundo. Esparramou-se, já que não havia viva alma no assento ao lado. Adormeceu como há muito não o fazia. Tudo parecia como num sonho bem sonhado, desses que não queremos despertar. Todavia, não demorou muito, Carmen começou a sentir os solavancos do ônibus. 

    A suspensão, de tão gasta, parecia não suportar nem mesmo o menor defeito da pista. Mal saía de um tremelique, o coletivo começava outro, numa infinidade de convulsões. Revoltada, Carmen não se conteve e gritou: "Ô, motorista, eu paguei a passagem de ônibus, não foi a entrada pro baile!" 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Carmen, a varredora" foi publicada pelo Notibras no dia 17/7/2023.
  • https://www.notibras.com/site/solavanco-de-onibus-transporta-para-baile-funk/

Elvis em Porto Alegre


  Lá estava eu na agência Central dos Correios, em Porto Alegre, onde havia ido buscar uma correspondência enviada pelo meu tio. De lá, teria que ir até o cartório da 4ª Zona, que fica bem próximo ao Brique da Redenção. 

    Saquei o aparelho celular do bolso e chamei um Uber. Enquanto isso, fiquei olhando o movimento ao meu redor e, então, me deparei com um enorme outdoor. Nele havia uma propaganda do filme "Elvis", estrelado pelo ator Austin Butler. 

   Olhei por alguns instantes aquele cartaz e, em seguida, volto os olhos para a tela do meu celular. Tomei um susto! Fiquei sem saber o que significava aquilo, até que me dei conta do que estava acontecendo: o motorista se chamava Elvis.

    O Uber chegou, entrei e, como de costume, puxei conversa com o motorista. Enquanto isso, fiquei imaginando uma maneira de como poderia passar aquilo tudo pro papel, pois era uma das situações mais hilárias que já havia passado. 

    Seja como for, deixei essa história de lado, até que a contei para o Marcio Petracco quando o conheci no cachorródromo do Tesourinha. É que ele deu o desfecho que eu tanto procurava para o texto. 
    
_ Que susto, Marcio! 

_ Pois é, Dudu, sempre ouvi que o Elvis não morreu, mas não sabia que ele também estava a caminho.
  • Nota de esclarecimento: A crônica "Elvis em Porto Alegre" foi publicada pelo Notibras no dia 25/07/2023. Por uma solicitação do jornal, foi feita uma pequena alteração no texto original para que Brasília entrasse na história.
  • https://www.notibras.com/site/elvis-em-porto-alegre-so-faltou-usar-bombacha/

 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Gratidão, respeito e Resistência


   Foram 580 dias de vigília diante da sede da Polícia Federal em Curitiba, uma verdadeira prova de resistência. Enquanto o preso político Luiz Inácio Lula da Silva cumpria sua pena imposta por um emaranhado de artimanhas maquiavelicamente arquitetadas pela tal República de Curitiba, milhares de pessoas dividiam espaço com uma personagem no mínimo curiosa: uma vira-lata de pelos arrepiados e olhos tão meigos e visionários.    

   Resistência! Foi justamente esse o nome que a Janja escolheu para a tal simpática cadelinha. Não demorou muito, a então namorada do Lula a abrigou em seu lar, onde também já vivia outra vira-lata, a doce Paris. 

   Resistência de milhões de brasileiros maltratados, humilhados, vítimas de um governo que flertou com o fascismo durante quatro cruéis anos. Aos sobreviventes, ares de esperança começaram a soprar na noite do dia 30/10/2022 com a confirmação do resultado das eleições presidenciais. 

   Resistência das pessoas em conceder espaço para os animais é algo tão comum no Brasil, já que a permanência deles em vários ambientes é terminantemente proibida. Além disso, não são raras as caras de nojo das pessoas quando olham um cachorro ou um gato em situação de rua. Aliás, essas criaturas de Deus são enxotadas até de igrejas, como no clássico "O Pagador de Promessas", do saudoso Dias Gomes.

  Gratidão! Palavra usada tantas vezes de maneira leviana, não poderia ser mais adequada quando se trata da fidelidade canina. E Lula, como um homem que sabe como poucos o valor dessa qualidade, soube demonstrar esse nobre sentimento pela Resistência.    

  Respeito pelos animais foi o motivo crucial que para que alguns protocolos sejam deixados de lado durante a posse do próximo presidente eleito democraticamente. Nada de fogos de artifício e os 21 tiros de canhão, que tantos traumas causam especialmente aos cães e gatos, que possuem ouvidos muito mais sensíveis que os nossos.  

   Há um antigo ditado que diz que "Deus fez o cão para que protegesse o homem enquanto caminhasse pelas trevas". Por isso, nada mais justo que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois de passar pelo calvário em Curitiba, suba a rampa do Planalto acompanhado da sua amiga Resistência. Esse pequeno gesto do único homem eleito por três vezes para sentar na cadeira do maior posto do Poder Executivo brasileiro abre caminho para que outros cães também possam ser recebidos com amor e carinho em todos os ambientes no Brasil.

  • Nota de esclarecimento: o texto "Gratidão, respeito e Resistência" foi publicado pelo Notibras no dia 29/12/2022.
  • https://www.notibras.com/site/resistencia-vira-sinonimo-de-gratidao-e-respeito/

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Camilo, o almoço e a sogra

  Camilo, mal pôs os pés no chão gelado do quarto, logo se lembrou que a esposa não estaria em casa naquele dia. Ela havia viajado na noite anterior a trabalho e iria permanecer fora por alguns dias. Arrastou o corpanzil até a cozinha e soltou um bocejo que despertou o gato, que deu aquela esticada preguiçosa antes de tomar coragem e sair do cesto acolchoado para as necessidades. 

  O homem, que não suportava cozinhar, teria que fazer o almoço. Nada de comida sofisticada, mas crescera aos pés da mãe, que tudo fazia. Cresceu um tanto mais e se casou com Aurora, a quem conheceu ali mesmo naquela rua. Chegaram até a brincar de queimada, garrafão e outras peraltices antes do primeiro beijo, que só aconteceu porque ela tomou a iniciativa. 

   Tiveram um par de filhos, que hoje não chegam a dez anos. Viviam até bem, caso não fosse pela rigidez de Serafina, a rigorosa mãe de Aurora. Sempre atenta a todos os detalhes, não poupava Camilo de uma bronca aqui, uma chamada de atenção ou até mesmo um puxão de orelha por qualquer descompostura.

    Maria Luíza e Pedro tiveram que ser quase empurrados da cama, que parecia acolhê-los muito melhor que a escola. Pelo menos era o que os filhos do Camilo insistiam em sonhar, apesar do berro do pai 

    _ Vamos que vamos sair dessa cama!

    _ Ah, pai, só mais cinco minutinhos.

    _ Anda, anda e não me aperreie! Hoje tô que tô uma pilha!

    Depois do café da manhã preparado e devorado quase sem gosto, os rebentos rumaram para a escola, logo ali na esquina. Enquanto isso, Camilo foi até o quintal da casa, onde tragou dois cigarros baratos. Voltou para a cozinha e tratou de descascar algumas batatas. Olhou para o lado e viu o gato esparramado no cesto, cabeça tombada, nariz quase encostado na cerâmica carcomida pelo tempo. 

    _ Folgado!

  Batatas depiladas, foi jogar as cascas ao pé da mangueira. Aproveitou e sacou mais um cigarro e tragou até a alma. O amargor na garganta o despertou para o horário. Quase meio-dia! Correu para a cozinha, tirou as panelas de arroz e de feijão da geladeira, quase ao mesmo tempo em que pegou a frigideira com óleo de uma semana ou mais. Fritou as batatas, requentou o punhado de arroz e feijão. 

    Sacudiu os farelos de pão da toalha da mesa, derramou os pratos e talheres. Não demorou, Maria Luíza e Pedro, esbaforidos, entraram em casa. Jogaram as mochilas sobre o sofá e correram para a cozinha. Famintos, mal conseguiram esperar que o pai os servisse. 

    Enquanto o homem despejava mais uma colherada de feijão no prato de Maria Luíza, eis que surge Serafina. Com o nariz apontado para o alto como um perdigueiro, a sogra de Camilo tentou farejar o aroma do ambiente. Enquanto isso, os netos e o genro, quase estáticos,  a observavam. A velha afanou uma batata do prato de Pedro e a colocou na boca. Mastiga daqui, mastiga dali, encarou os três e, finalmente, a engoliu. Camilo, com a voz quase muda, arriscou uma pergunta.

    _ Gostou?

    _ É, até que ficou uma comida honesta. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Camilo, o almoço e a sogra" foi publicada pelo Notibras no dia 02/07/2023. Foi feita uma pequena alteração no texto, a pedido da redação do jornal, para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/camilo-mestre-cuca-ruim-faz-batata-em-oleo-velho/












sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Marcio Petracco, Cacau e Coco

    Lá estávamos a Dona Irene, o Clei e eu no cachorródromo do Tesourinha, em Porto Alegre, quando surgiu um magrelo em sua bicicleta acompanhado de dois belos cães da nobre raça vira-lata. Não demorou muito, as nossas buldogues, Bebel e Clarinha, foram dar as boas vindas àqueles dois lindos cachorros, que logo soubemos se chamarem Cacau e Coco. 

    Enquanto as quatro crianças corriam para cá e para lá, chegando ao fundo, voltando para mais perto, eis que o tal rapaz da bici (alcunha gaúcha para bicicleta) se aproximou e começamos uma conversa, no início meio tímida, mas que logo se encheu de sorrisos e até algumas gargalhadas. "Nem precisa perguntar quem é o Coco e quem é o Cacau", disse Marcio, fazendo menção às cores dos seus pupilos.

    Conversa vai, conversa vem, faço uma pergunta que, provavelmente, tenha causado certo espanto aos outros donos de cachorros que estavam próximos. 

    _ Marcio, o que você faz da vida?

    _ Dudu, eu sou músico há mais de 40 anos.

  Pois é, eu estava diante do famoso Marcio Petracco, mas como autêntico forasteiro nem percebi o tamanho da minha gafe. Seja como for, ele não pareceu ter ficado chateado comigo, já que a nossa conversa se descambou para a música, onde percebemos algumas afinidades. Marcio me disse que iria fazer um show no Queen's, famoso bar da cidade, no dia seguinte, 18 de dezembro de 2022. Seria uma apresentação com músicas dos Rolling Stones, justamente na data do aniversário de 79 anos do Keith Richards, lendário guitarrista.

  Fomos uns dos primeiros a chegar ao Beco do Queen's, quando as nuvens acinzentavam o céu da capital gaúcha. Típico dia de primavera! Um efusivo Marcio nos recebeu, enquanto fazia os últimos reparos no palco. 

    _ Fio do bigode! Vocês vieram mesmo! 

    Demos os parabéns pelo aniversário do Marcio, já que ele iria fazer as vezes do Keith. Aliás, diria até que o Marcio estava mais parecido com o Keith Richards do que o guitarrista dos Stones poderia parecer consigo mesmo. Não demorou muito, o ambiente começou a lotar, apesar da chuva, que logo começou a derramar um monte de água. Abrigados, bebericamos e degustamos, enquanto nossos olhos e ouvidos se encantavam com a apresentação da banda. Tanto é que até arriscamos alguns passinhos ao lado da mesa.

    O tempo pareceu voar, como geralmente acontece quando estamos nos divertindo. Logo chegou a derradeira "Satisfaction", o que é o prelúdio do término do show da famosa banda inglesa. Todavia, assim que o último acorde desse clássico do rock and roll se esvaiu pelo ambiente, eis que o Marcio anuncia ao microfone: "A gente vai fazer uma pausa de cinco minutos e daqui a meia hora a gente volta".

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Marcio Petracco, Cacau e Coco" foi publicada pelo Notibras no dia 17/08/2023. Por solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que houvesse alguma referência sobre o Distrito Federal na história. 
  • https://www.notibras.com/site/banda-do-petracco-e-cinco-minutos-de-meia-hora/

     

domingo, 11 de dezembro de 2022

A insanidade do ser humano

  Provavelmente você não se recorde do longínquo final de dezembro de 1992, quando dois fatos marcaram os noticiários brasileiros: O impeachment do então presidente Fernando Affonso Collor de Mello e o brutal assassinato da atriz Daniella Perez.  Nessa época, talvez pela minha total ignorância em relação às novelas, nunca havia ouvido falar da artista, muito menos que ela era filha de uma escritora de teledramaturgia. Seja como for, não foi esse fato que me causou certo espanto, mas sim como nos comportamos diante de certas situações.

    Calma!!! Vou explicar! Longe de mim querer negar a importância jornalística de um crime tão cruel cometido por um ator (que eu também não fazia a menor ideia de quem era) contra sua companheira de cena. Todavia, não há como negar que o impeachment do Collor era muito mais importante para o país, já que se tratava de algo que iria mexer com todos nós. Mas só se falava no então homicídio, tanto é que eu, um completo ser alheio ao mundo das tramas novelescas, acabei por me informar de praticamente tudo por osmose.

     Avancemos para dezembro de 1998 e mudemos de país, agora os Estados Unidos da América. Pois é, nessa época, o pessoal de lá queria porque queria arrancar o traseiro do Bill Clinton da Casa Branca. Nunca na história daquele país um sexo oral havia abalado tanto a estrutura de uma nação. Sim, isso mesmo!!! Por causa dessa esdrúxula situação, todos estavam com os olhos voltados para os lábios da então estagiária Monica Lewinsky e o órgão sexual presidencial. 

   Mas onde eu quero chegar, talvez você esteja questionando? Pois bem, o ser humano parece se preocupar com coisas que, na verdade, não o afetam diretamente. A barbárie ocorrida com a Daniella Perez, por mais desumana que fosse, jamais deveria ter ofuscado o impeachment do Collor. Por sua vez, um ato sexual tão comum como, por exemplo, chupar picolé, também não deveria ganhar proporções gigantescas, ainda que tenha sido praticado por alguém aos pés do homem mais poderoso do planeta. 

  Somos humanos!!! Somos curiosos!!! Preferimos coisas escabrosas, cruéis e não desejamos nos preocuparmos com algo talvez chato. Queremos crer em mamadeira de piroca, kit gay, banheiro unissex nas escolas, já que encarar os reais problemas do país (miséria, fome, racismo, machismo, abismo socioeconômico) deva ser mesmo muito enfadonho. Afinal, a nossa bandeira jamais será vermelha!!! Talvez o nosso maior problema esteja aí, haja vista Brasil significar, literalmente, vermelho como brasa.

  • Nota de esclarecimento: O texto "A insanidade do ser humano" foi publicado pelo Notibras no dia 11/12/2022.
  • https://www.notibras.com/site/corrupcao-sexo-e-brasil-vermelho-como-brasa-eterna/?fbclid=IwAR04JlxCYB4s1KWAmyz2Ik6e1hFHIfnYGd0Wm-Re6GyuEcR0oDja5MEzNr0

Arthur Claro, o comunista

    Arthur nasceu Claro, sobrenome de família. Mas desde cedo buscou caminhos e trilhas tão diversos, às vezes obscuros, mas todos carregados de paixão. Alguns poderiam acusá-lo de ser cabeça-dura. Que seja!!! Para enfrentar tanta pancada da vida, não pode ter a moringa de bexiga. 

   Os que o conhecem dizem que ele parece uma coruja, pois sempre está de olho em tudo, como se tentasse entender, ou melhor, captar a essência e, assim, fazer a sua arte. Esta, aliás, pode soar estranha, às vezes até lúgubre, mas digo-lhe que não. Basta dar uma olhadela no blog do Arthur para você sentir que está no DeLorean do Marty McFly indo direto para os conturbados anos 1970, quando os fanzines eram armas contra a cruel Ditadura Militar. 

    O blog do Arthur Claro é uma colcha de retalhos, onde cada detalhe é importante para a formação do todo. No entanto, não se engane, caso esteja imaginando que essa verdadeira feira livre está pronta e acabada. Não!!! Esse artista, um verdadeiro bicho-carpinteiro, não cansa de se reinventar e buscar novas trajetórias nessa saga.

    Esse rapaz paulista, que ostenta um belo bigode à Salvador Dalí, também tem lá as suas contradições. A maior delas, a meu ver, descobri quando constatei que ele é torcedor de um certo time, que não é conhecido por engajamentos sociais. Pois bem, lá estávamos os dois trocando algumas ideias, quando surgiu esse pequeno interlúdio.

    _ Dudu, eu faço arte alternativa porque sou comunista.

    _ Mas, Arthur, você torce pro São Paulo!

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Arthur Claro, o comunista" foi publicada pelo Notibras no dia 22/09/2023.
  • https://www.notibras.com/site/verdades-numa-colcha-de-palavras-retalhadas/

       

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Adeus, namorico!

 

    Aprígio, com seus quase 70, acordava sempre cedo, mais cedo até que o próprio despertador, que, talvez cansado de ter a corda apertada há anos, de vez em quando se fazia de mudo. Seja como for, o velho parecia não se importar com tal comportamento desse seu segundo companheiro de quarto. Sim, o segundo! É que também havia a temperamental Filó, a não muito simpática cadelinha caramelo. 

    Cara de poucos amigos, a companheira de Aprígio colecionava desafetos na quadra 312 da Asa Norte, Brasília-DF. Algumas tentativas frustradas de mordidas aqui, outras tantas acolá, inúmeros latidos estridentes por todos os lugares. Não perdoava ninguém!!! Até mesmo o Aprígio carregava algumas cicatrizes, lembranças de mordidelas sem grandes consequências, a não ser aquelas que ferem a parte mais valorizada por um homem como ele: a honra.

    Aprígio, assim como Filó, também não era muito afeito a conversas sem um sentido prático. Por isso, não era do tipo que dizia "Bom dia!", "Boa tarde!" ou "Boa noite!", nem mesmo para Francisco, o antigo porteiro do prédio. Homem direto, sem tempo para sentimentalismo, até que, por um desses acasos da vida, eis que Aprígio percebeu que do outro lado da calçada havia um enorme cachorro. De tão gigantesco, o velho chegou a duvidar de que se tratava mesmo de um cão. Talvez fosse um cavalo ou qualquer desses bichos da roça. 

   Não demorou, o velho constatou que Filó mantinha o olhar fixo naquele cachorrão. Apesar de azulados pela catarata avançada, os olhos da cadelinha pareciam apaixonados. Nenhum latido!!! Apenas ganidos de quem queria porque queria algo. No caso, esse algo estava há poucos metros, preso a uma guia que se estendia até as mãos graciosas de Eufrásia, que também carregava uma recente viuvez. 

   O defunto, apesar de fresco, carregou o resquício de lamúrias da viúva, além de lhe deixar uma polpuda pensão. Livre do estorvo e com dinheiro mais do que suficiente para as despesas, Eufrásia se sentiu livre como jamais havia sido. Queria mais é se divertir!

    _ Desculpe, não sei o que houve com a minha cachorra!

    _ Ah, não se preocupe! Acho que o Sultão também gostou dela. 

    Não tardou muito, Aprígio, Filó, Eufrásia e Sultão passaram a se encontrar algumas vezes por dia, como se tivessem combinado. Na verdade, Aprígio ficava de olho na janela do seu apartamento para ver quando a velha e o enorme cachorro apareciam na calçada lá embaixo. Então, mais ligeiro que barata fugindo quando se acende as luzes, lá ia o Aprígio carregando uma também apaixonada Filó. 

    A conversa, por mais frugal que fosse, parecia bem recebida por Eufrásia. Todavia, caminhava para um eterno destino sem futuro, até que a velha tomou a iniciativa e convidou Aprígio para um lanche logo mais à tarde. Obviamente que ele aceitou! Tomou aquele banho caprichado uma hora antes do horário marcado. Borrifou pelo corpo maltratado o perfume que havia ganho num dos seus aniversários, não sabia qual. Retirou a naftalina de dentro do sapato e o calçou. 

   De tão entusiasmado, arriscou até uma leve corridinha, olhando para aquele céu azul de Brasília. Sorria, sorria, sorria!!! De tanta felicidade, imaginou que a calçada estava mais macia do que de costume. Era o amor saltitando no velho coração enrugado!!!

    Mal se postou diante da porta da amada, essa lhe sorriu aquele sorriso esperançoso de que algo mais pudesse vir a acontecer. Logo estavam sentados à mesa. Suquinhos, biscoitinhos, chazinhos, até mesmo um providencial cafezinho gourmet para agradar os paladares mais aguçados. Entretanto, Eufrásia pareceu se incomodar com um cheiro não muito agradável. Ela abriu a ampla janela da sala, mas aquele fedor parecia cada vez mais impregnado no ambiente. 

    _ Você não está sentindo, Aprígio?

    _ O quê?

    _ Essa catinga horrível.

    O velho, como se fosse um perdigueiro, começou a buscar o tal fedor, até que resolveu olhar para a sola do sapato. Não demorou muito, constatou que havia uma boa explicação para a tal maciez da calçada.

    _ Que merda!!!

  • Nota de esclarecimento: "Adeus namorico!" foi publicado no Notibras no dia 16/12/2022. 
  • https://www.notibras.com/site/cuidar-do-coco-do-pet-evita-frustracao-como-a-de-aprigio/

    

    

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Almeidinha e o truco

    Já contei sobre o meu amigo Almeidinha, que tem um temperamento intempestivo, mas um grande coração. Se bem que há gente que duvide que ele possua o famoso órgão que bombeia o sangue pelo corpo. Mas deixemos um pouco de lado tal implicância com o gajo, pois hoje é dia de relembrar uma das situações mais esdrúxulas que vivi durante meus tempos de estudante de medicina veterinária lá na Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

    Apesar de conviver com muitos aficionados por carteado, nunca me interessei por esse passatempo. Na verdade, nunca levei muito a sério, apesar de na infância acompanhar a minha avó nas intermináveis batalhas de paciência. Mas não aquelas tão comuns em jogos de computador. Minha avó só jogava uma em que se formavam oito colunas, quatro de um lado, quatro do outro, cinco cartas em cada. Tanto é que, quando alguém me fala em paciência, sempre me vem à mente justamente esse tipo, apesar que ninguém parece conhecê-lo.  

    Todavia, deixemos a paciência de lado, mesmo porque o tipo de carteado que vou falar é outro. Pois bem, lá estava eu degustando o meu jantar no bandejão, quando o Almeidinha, todo eufórico, veio me contar a última, como se eu fosse a pessoa mais interessada nesse assunto, o tal truco.

    _ Dudu, sabe aqueles caras do alojamento C?

    _ Que caras?

    _ Os que ganharam o último campeonato de truco.

    _ Almeidinha, nem sei do que você tá falando. 

    _ Dudu, em qual mundo você vive?

    O meu amigo me olhou com cara de espanto, como se eu tivesse que saber quem eram esses tais caras. Aliás, nem sabia que existia um campeonato de truco, ainda mais na Rural. Não dava a mínima para aquilo. No entanto, o Almeidinha continuou com aquela ladainha até que, não entendo isso até hoje, conseguiu me convencer a formar uma dupla com ele para enfrentar os tais campeões do alojamento C. Pois é, acredite ou não, essa tal batalha seria naquela mesma noite.

  Rapidamente o Almeidinha me jogou um monte de regras, como se eu fosse um computador recebendo vários dados, que deveriam ser prontamente processados. Isso depois que eu havia acabado de encher o bucho no bandejão. Seja como for, aceitei o desafio apenas para agradar o meu amigo. Não que eu levasse aquilo a sério, muito menos imaginava que isso tivesse tamanha relevância para o Almeidinha. Isto é, até que, depois de tomarmos aquele vareio dos caras do alojamento C, o meu amigo, espumando pela boca mais que touro diante do balançar de um pano vermelho, começou a esbravejar.

    _ Dudu, você fez a gente perder!

    _ Deixa isso pra lá, Almeidinha! Isso é apenas um jogo.

    _ Dudu, isso não é um jogo! Isso é truco!!! 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Almeidinha e o truco" foi publicada pelo Notibras no dia 29/08/2023.
  • https://www.notibras.com/site/jogar-e-para-ganhar-nem-que-seja-no-palitinho/