sábado, 29 de janeiro de 2022

Perigo em São Januário

    Aqueles que me conhecem sabem que a minha esposa, a Irene, é uma torcedora voraz do Palmeiras. E essa intensidade de sentimentos pelo Palestra Itália quase nos fez apanhar no dia 25 de novembro de 2018 em pleno estádio de São Januário. Penúltima rodada do Campeonato Brasileiro, que poderia dar o título para o Verdão, as arquibancadas lotadas de vascaínos, muitos exaltados com a situação crítica do time.

   Lá estávamos nós dois infiltrados naquela multidão, tentando não parecer que éramos inimigos, como dois espiões em plena Guerra Fria entre a antiga União Soviética e os Estados Unidos. Definitivamente, não é uma situação confortável, ainda mais porque estávamos no meio daquela multidão vascaína, mas também bem próximos da pequena, mas muito barulhenta, torcida palmeirense. Isso fazia com que a minha esposa ficasse olhando e sorrindo para os seus aliados, inclusive acompanhando, mesmo que baixinho, os seus cantos. Para disfarçar, eu soltava um "Vai, Vasco!" de vez em quando. Inclusive alguns torcedores ao redor trocavam algumas opiniões comigo, que falava que tínhamos que apoiar o time, mesmo que a maior referência fosse o Pikachu. Não que ele fosse ruim, mas era muito pouco para a grandiosa história cruzmaltina. 

    O primeiro tempo acabou e havíamos sobrevivido. Mas ainda restava a etapa final, e o Palmeiras parecia um pouco melhor. Isso fez com que a minha mulher desse aqueles pulinhos e colocasse as duas mãos no rosto quando surgia um  "quase gol" a cada ataque do Verdão. Eu, obviamente, gritava ainda mais alto "Vasco! Vasco!", pois precisava garantir a nossa sobrevivência entre aqueles caras enormes. Não sei se eles eram realmente grandes e fortes, talvez seja mesmo o medo que nos faz sentir bem pequenos diante da iminência de tomar uma surra. E lá ia eu me tornando quase um torcedor histérico do Vasco da Gama. 

    O tempo ia passando, o empate dava o título para o Palmeiras. Na verdade, esse resultado era até bom para o Vasco também. Mas eis que aos 26 minutos acontece um gol do atacante alviverde Deyverson. A Irene talvez tenha se esquecido que estávamos naquele campo minado de apaixonados pelo Vasco e, então, grita "Gooooollll!!!" Todos ao nosso redor nos encaram como se dissessem "Que porra é essa?". Eu, fingindo ficar com raiva, falo bem alto para que todos ouçam: "Para!!! Não foi gol do Vascão!". A Irene, que pareceu voltar ao planeta Terra nesse momento, fingiu ficar emburrada e solta um "Droga!!!" Tento fazer com que aqueles vascaínos ali pertinho ficassem realmente convencidos de que éramos aliados e volto  entonar "Vasco!!! Vasco!!!". Alguns me acompanham e logo outros fazem com que todo o estádio volte a apoiar o time de São Januário. 

    O jogo terminou, algumas pessoas perto de onde estávamos vieram nos cumprimentar, crentes que éramos mesmo vascaínos. Falamos aquelas trivialidades de que o time havia se esforçado, que o elenco não era dos melhores, mas que a torcida precisava continuar apoiando. Eu queria sair logo dali, pois o espírito de Porco da Irene estava ressurgindo e, com certeza, correríamos sério risco. Caminhamos um bom pedaço até conseguirmos embarcar em uma lotação até a estação do metrô, de onde rumamos para Copacabana, pois havíamos combinado de nos encontrar com nossos amigos Antonio Manoel, Lindy e Sonia Clair. No bar, a Irene pode finalmente comemorar o título do seu amado time. O Antonio Manoel, que é vascaíno, até achou divertido aquela alegria da minha amada. Seja como for, o dia havia sido extremamente tenso! Mas sobrevivemos!


sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Despido de ilusões (Texto original do romance escrito em 2003 e publicado em 2004)



Introdução

            Você acredita em que as coisas não acontecem por acaso? Não, não sou espírita ou algo parecido. Confesso que sou até meio descrente dessas coisas. No entanto, há mais de quatro anos minha vida tomou um rumo inesperado, bem diferente daquilo que eu havia planejado...

            Meu nome é Carlos Cesario (certamente você já deve ter ouvido falar de mim ou, até mesmo, visto minha fotografia em algum jornal), 32 anos, casado, duas filhas, médico veterinário e... foragido! Mas antes de você me condenar, deixe-me contar a minha história.

 

O sonho

            Nascido e criado em Copacabana, órfão de pai aos 15 anos, sempre fui uma criança meio tímida. E antes que algum psicólogo de plantão tente encontrar algum desvio de comportamento decorrente da minha infância, já vou lhe adiantar que fui tímido, aliás, reconheço que ainda sofro desse mal (se é que se pode chamar timidez de mal), mas sempre fui muito feliz, sem grandes traumas, mesmo durante minha adolescência, época já conturbada por natureza, quando perdi meu pai, vítima de um ataque cardíaco aos 42 anos.

            Minha mãe, professora primária, talvez tenha sentido mais a falta de meu pai, que, afinal, era um bom marido, sempre carinhoso, contador de piadas e muito gentil. Depois de alguns anos, ela acabou se casando novamente. O eleito foi um senhor goiano, viúvo, que veio para o Rio no início dos anos 70, logo após o Brasil ganhar o lendário tricampeonato mundial de futebol no México. No começo tive ciúme do relacionamento dos dois, mas acabei me acostumando e, com o tempo, até gostando do seu Francisco. Passamos até a ir ao Maracanã ver o nosso time do coração – o Botafogo – jogar.

* * * * *

Quando chegou a época do vestibular, não tive dúvida: medicina veterinária na Rural (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)! Não encontrei muita resistência em casa, apesar da minha mãe sempre ter sonhado com o seu único filho dentista. Então, fiz as provas, passei e, dentro de alguns meses, segui meu destino. Fui estudar em Seropédica, que ainda era distrito de Itaguaí – RJ. E como era muito distante do Rio, só retornava para casa nos finais de semana. Lá na Rural consegui vaga no alojamento, onde fiquei de 1988 até 1993, quando me formei. Bons tempos: muito estudo, muita festa, algumas namoradas, pouca grana.

* * * * *

            Antes mesmo de me formar, já vinha fazendo alguns estágios: nos finais de semana não saía da clínica do Dr. Paulo Lima Rosa, em Ipanema. Lá na Rural, sempre que tinha tempo, corria para os hospitais veterinários para tentar aprender alguma coisa. Também fiz estágio na suinocultura, onde aprendi muito com o Airton e o Beto, dois irmãos que tratavam dos porcos. Com toda essa prática, não foi difícil arrumar emprego. Fazia plantões em algumas clínicas e, também, passei a fazer atendimento em domicílio. Como não tinha grandes despesas, já que continuava morando com minha mãe, em pouco mais de um ano já tinha comprado um carro, um Passat ano 79, e juntado uma boa grana. Eu tinha conta numa agência do Banco do Brasil em Copacabana mesmo. Foi lá que acabei conhecendo aquela que viria a ser minha esposa.

            Elaine era, ou melhor, ainda é uma mulher linda! Morena, 50 quilos bem distribuídos em não mais que 1,56m de altura, cabelos encaracolados, olhos de um castanho profundo, sorriso de marfim com direito a lindas covinhas enfeitando sua face. Ela é, realmente, uma mulher muito bonita! Assim que a vi caí de quatro! Não foi fácil conquistá-la, mas, enfim, depois de muita luta, ela reparou em mim. E, então, tudo foi tão rápido... Logo estávamos procurando apartamento. Casamos oito meses após o nosso primeiro beijo!

            Em janeiro de 1994 nasceu nossa primeira filha, Patrícia. Morena como a mãe, grandes olhos escuros, linda (corujice?), sem covinhas.

* * * * *

               Bernardo, um colega da Rural, me propôs sociedade numa clínica veterinária que ele estava montando em Botafogo, na rua Bambina. Eu precisava arrumar R$ 8.000,00! Tinha R$ 3.400,00 em aplicações. Meu padrasto me emprestou R$ 2.000,00. O restante a Elaine conseguiu através de um empréstimo do Banco do Brasil. Fiquei todo endividado!

            Em outubro de 1994 as portas da Clínica Veterinária Santa Ignez foram abertas. A nossa clínica logo ficou conhecida não só no bairro, mas em toda a Zona Sul, graças aos dotes publicitários do meu sócio. E seis meses após termos iniciado nossas atividades, eu já estava quitando minha última dívida. Falando dessa forma até pode parecer fácil, que eu estava nadando em dinheiro. Não foi bem assim, pois trabalhei de segunda a segunda, sem direito a um dia sequer de descanso. Aliás, ser médico veterinário é estar de plantão 24 horas por dia, todos os dias, pois sempre temos de contar com o inesperado.

            Os próximos anos foram ainda melhores, conseguimos ampliar a clínica, montamos um pet shop e, em 1997, construímos um hotel para animais, com direito a adestramento opcional. Tudo corria tão bem que Elaine e eu decidimos ter outro bebê. Em junho de 1997 a menstruação não veio... Minha mulher carregava no ventre mais um fruto do nosso amor. Nossa felicidade estava a mil!!!

            Até aqui, tudo bem. Logo depois minha vida começou a dar uma guinada de 180 graus...

O pesadelo

            Num desses domingos chuvosos de julho, quando a Cidade Maravilhosa ganha a aura paulistana, cheguei em casa por volta das 14h. Elaine e Patrícia já estavam arrumadas, me esperando para almoçarmos fora. Tomei um banho a jato, me vesti e logo estávamos a caminho da pizzaria Bella Blú, na rua Siqueira Campos, em Copacabana. Pedimos uma pizza grande, meia calabresa, meia frango com catupiri – Elaine adora -, dois sucos de laranja e uma Coca-Cola para mim.

            Patrícia estava animada com a gravidez de Elaine. Vivia perguntando se poderia tomar conta do bebê, que se chamaria Carla, caso fosse menina. Não havíamos entrado em consenso quanto ao nome de um possível menino. E enquanto conversávamos, a pizza ia se evaporando entre uma garfada e outra. E antes de pedirmos a conta, Patrícia quis tomar sorvete de chocolate. Eu fui de soverte de morango, Elaine matou seu desejo de comer pudim de leite.

            No caminho de volta passei numa banca e comprei jornal. Logo chegamos em casa, onde fomos “recebidos” por dois homens de mais ou menos 20 anos: um branco e outro moreno, este armado com um revólver. Um deles, não me lembro bem qual, foi logo nos intimidando:

            _ Nada de pânico! Isto é um assalto! Não façam besteira e nada acontecerá a vocês!

            Perguntaram onde escondíamos os dólares, as joias. Não temos o costume de guardar grandes somas de dinheiro em casa, também nunca possuímos dólares ou joias, a não ser nossas alianças e um cordão de ouro que dei a Elaine no nosso primeiro aniversário de casamento. E em cada negativa, os bandidos iam ficando mais nervosos. Ameaçaram nos matar caso não colaborássemos. Tentei dialogar, mas só o que consegui foi um tapa na cara. Eles estavam transtornados. Os dois, então, trancaram minha filha e eu no banheiro e levaram minha esposa para o nosso quarto. Comecei a pensar no pior!

            Eu tinha de sair daquele banheiro. Tentei forçar a porta, enquanto ouvia o choro desesperado de minha mulher, prestes a ser violentada por aqueles perturbados. Olhei para Patrícia, que também chorava, suplicando através daqueles dois grandes olhos assustados para que eu fizesse alguma coisa, para salvar a sua mãe. Puxa, você nem imagina como é desesperador a impotência diante daqueles olhos tão inocentes! Olhei o basculante do banheiro, que dava para a lateral externa do prédio. Enrolei a toalha de rosto na mão e soquei o vidro do basculante. Com dificuldade, não me importando com mais coisa alguma, até me cortei nos cacos de vidro, consegui sair do banheiro, ficando a mais de 10 metros de altura da calçada. Em pé no parapeito de menos de 20 centímetros, tentando não olhar para baixo, escorado na parede para não perder o equilíbrio, fui rumo à janela mais próxima, a da sala. Seis metros me afastavam do meu objetivo. Algumas pessoas me olhavam lá embaixo, enquanto eu prosseguia a passos de tartaruga tentando transpor os seis metros mais longos de toda a minha vida. De vez em quando eu parava, respirava um pouco, tentava colocar as ideias em ordem. Não sei quanto tempo levei nessa jornada. Por vezes tentei voltar atrás, mas não conseguiria encarar os olhos da minha filha outra vez. E a minha mulher continuava nas mãos daqueles dois cretinos. Ao alcançar a janela da sala, constatei que estava apenas encostada, a cortina totalmente fechada, entrei em meu apartamento, voltando a ouvir o choro de Elaine, que implorava pelo amor de Deus para que eles parassem. Peguei uma pequena estátua de um cachorro, que servia de enfeite na estante, e, com toda a fúria que jamais suspeitei ter, avancei contra aqueles dois facínoras, sem pensar que eles estavam armados, que poderiam nos matar. Consegui acertar o sujeito branco, que estava consumando o ato, na cabeça. Este pareceu desmaiar, rolou para o chão do quarto. O outro canalha atirou em minha direção, mas por sorte ou sei lá o quê a bala não me acertou, indo de encontro à parede. Segurei em sua mão, a que portava o revólver, e desferi-lhe um soco no meio da cara. O revólver caiu de sua mão. A minha raiva era tamanha que o arremessei, não sei com que força, pela janela do quarto. O seu corpo atravessou o vidro, indo parar na calçada, que recebeu seu sangue e miolos. Voltei os olhos para o ladrão que tinha recebido o golpe da estatueta. O marginal estava meio grogue, tentou se levantar. A arma estava entre mim e ele, que tentou pegá-la. Pisei com tanta força na sua mão. Depois chutei sua cabeça, que balançou como um pêndulo. Peguei a arma e disparei não sei quantas vezes naquele odiento ser que acabara de estuprar minha mulher. Depois fiquei sabendo que foram cinco tiros.

            Minha mulher chorava e soluçava como uma criança. Abracei-a com carinho e, também, comecei a chorar. Levantei-me e fui ao banheiro, onde minha filha estava toda encolhida dentro do box. Tomei-a no colo e a levei para o seu quarto. Voltei ao meu quarto para pegar minha mulher, a cobri com meu roupão e, então, a escorei até o quarto de Patrícia. Liguei para a polícia. Algum tempo depois, talvez 20 minutos, entraram dois policiais, Arruda e Gomes. Logo atrás veio aquele que, graças aos seus esforços, se tornaria meu grande aliado: o detetive Celso Machado.

            Ficamos sabendo que os marginais forçaram a porta da área de serviço para invadir nosso apartamento. Só não soubemos como eles teriam entrado no edifício, pois domingo é o dia de folga do seu José, único porteiro. Provavelmente devem ter aproveitado a oportunidade quando um morador estava entrando ou saindo.

            Depois de todos os procedimentos no local do crime, o detetive Celso nos informou que teríamos de acompanhá-lo até a delegacia. Minha mulher também teria de fazer exame de corpo de delito. Chamei meu padrasto, que se encaminhou até o local para buscar Patrícia, que ficaria no apartamento da minha mãe, ali mesmo em Copacabana.

            Na delegacia fui aconselhado a procurar um advogado, pois havia assassinado duas pessoas. Achei graça. Por que eu, que tive a casa invadida, a mulher violentada por dois marginais, teria de arrumar um advogado? Mas essa era a mais pura verdade!

Estado de choque

            Depois do depoimento e do exame de corpo de delito, Elaine e eu fomos para o apartamento da minha mãe com dona Ruth e seu Álvaro, pais de minha mulher. Havia alguns repórteres na saída da delegacia, que tentaram nos entrevistar, em vão, e bateram algumas fotos. Passamos a noite com minha mãe. Os pais de Elaine também dormiram lá. Minha mulher precisaria muito do apoio de todos, pois foi a que mais sofreu. E também estava grávida de dois meses...

            Segunda-feira!

            Alguns jornais comentavam o ocorrido na véspera. Ficamos sabendo, por exemplo, a idade de um dos marginais, o moreno: 15 anos! Este era identificado como R.C.S., morador do morro Dona Marta, em Botafogo, foragido da Febem e “avião” – aquele que leva a droga da boca de fumo ao viciado. O outro ainda não havia sido identificado pela polícia.

            Elaine teve várias crises de choro durante o dia. Tentei confortá-la, todos tentamos, mas quando achávamos que ela estava melhorando, nova crise nervosa a possuía. Era desesperador ver minha mulher, a pessoa mais importante da minha vida, sofrendo por causa da bestialidade de dois cretinos. A minha vontade era de matá-los quantas vezes mais fossem necessárias. A revolta me tomava por completo!

            Patrícia, minha pequena Patrícia, com apenas três anos de idade, tendo de passar por tudo aquilo. Eu a abraçava, chorava com ela, que não entendia muito bem o que havíamos passado. Eu me perguntava se ela ficaria com algum trauma. Puxa, mas como não ficar?

            Minha mulher ficou de licença do Banco do Brasil, Patrícia voltou à escola na quarta-feira seguinte ao ocorrido. Retornei à clínica na quinta-feira. Precisava retomar meu trabalho, precisava ocupar minha mente. Mas ligava de meia em meia hora para Elaine. Ela continuava assustada, não queria sair de casa, parecia se culpar de algo que todos sabíamos não ter culpa. Tentávamos consolá-la de todas as formas. Pensamos até em fazer uma viagem para o sítio de uma tida dela, que morava em Itaipava – Petrópolis – RJ. Mas minha Elaine nem dizia sim, nem dizia não.

            Elaine e Patrícia começaram a freqüentar o consultório de uma psicóloga, Dra. Marlene. Patrícia foi a 10 sessões e, aparentemente, havia superado o trauma. Elaine, no entanto, foi paciente da Dra. Marlene por um longo período.

Cadeia

            No sábado caiu mais uma bomba nas nossas vidas: três viaturas da polícia pararam em frente à minha clínica. Não sei quantos policiais me algemaram no exato momento em que eu operava o tumor de mama de uma cadela da raça Boxer. Fui jogado como um saco de batata dentro de um camburão e levado para a delegacia, onde me informaram que responderia pelos dois assassinatos, sendo uma das vítimas Márcio Sampaio Pessoa de Alcântara, 22 anos, universitário, filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara; o outro, Roberto Carlos dos Santos, 15 anos, estudante. Também estava sendo acusado de tráfico de entorpecentes e formação de quadrilha, entre outros crimes. Tentei falar com o detetive Celso, mas este fora afastado do caso. O novo encarregado seria, a partir daquele momento, o detetive Plínio Silva. O que havia sido um conselho, passou a ser gênero de primeira necessidade: precisava urgentemente de um advogado!!!

            A imprensa caiu em cima de mim! O filho do senador era apontado como amante de minha mulher. O outro marginal era, segundo as “investigações”, membro da minha quadrilha. Deixava, naquele exato momento, de ser um cidadão de bem. Agora era conhecido como “Doutor”, um perigoso traficante de drogas. Fiquei perplexo com toda essa história, ou melhor, estória, já que não havia qualquer fundamento. Isso tudo parecia uma piada de muito mau gosto, e que, a qualquer momento, alguém iria aparecer e falar que tudo não passava de uma “pegadinha”, uma brincadeira. Comecei a viver meu maior pesadelo até então e, pior, não estava dormindo, era tudo realidade.

* * * * *

            Antes mesmo de eu ter a chance de telefonar para alguém, minha mãe, seu Francisco e meu sogro chegaram à delegacia, já que Bernardo os avisara assim que os policiais me prenderam na clínica. Minha mãe estava muito nervosa, veio me ver e me abraçou. Isso me confortou de uma maneira que não sei descrever, me senti como se estivesse dentro de seu ventre.

            _ O que estão fazendo com você, meu filho?

            _ Não se preocupe, mamãe, tudo vai se esclarecer.

            Na verdade, eu não tinha tanta certeza disso, pois logo percebi que havia mexido em casa de marimbondo. Matar um filho de senador da República não é algo que a gente faça e fique impune, mesmo que ele invada a sua casa, ameace a sua família e estupre a sua mulher. Fiquei realmente com medo, não só por mim, mas pela minha família. Eles estariam correndo perigo de vida?

* * * * *

            Meu sogro contatou um velho conhecido, Dr. José Basílio da Silva Júnior, que, a partir daquele momento, passou a ser meu advogado. Ele é um homem alto, mais de 1,80m, uns 90 quilos, cabelos grisalhos, olhos claros, voz grave, uns 70 anos.

            Dr. Basílio foi bem honesto comigo, não me escondeu que o meu caso seria uma batalha muito difícil, pois estaríamos enfrentando pessoas realmente influentes. Teríamos de remontar toda a história, parte a parte, não podendo deixar o mínimo detalhe de fora. Testemunhas seriam pontos-chave. Testemunhas! Quem me viu naquele domingo? Alguns clientes, meu sócio, os funcionários da clínica, o garçom do Bella Blú... Essas foram as pessoas que me viram no dia do crime que, volto a dizer, não foi cometido por mim, mas sim por aqueles dois salafrários. Teve também o cara da banca de jornal, mas talvez nem se lembrasse de mim.

* * * * *

            Segundo a perícia policial, não houve arrombamento, e o laudo do médico legista não apontava estupro, mas sim de uma relação consensual. Tudo não passou de mais um caso de marido traído, que matou o amante da mulher e, para tentar incriminar a vítima, matou seu comparsa de tráfico de drogas, o tal Roberto Carlos dos Santos. Mas que perícia? Que laudo do IML? E o laudo feito no dia do crime, o que foi feito dele? E o laudo do IML, onde foi parar? E quem era esse tal Joaquim Pedreira, que assinou o novo laudo? Ele nem fazia parte da equipe presente no meu apartamento naquele fatídico dia. De onde ele tirou essa conclusão? E o laudo médico que comprovava o estupro sofrido pela minha mulher, que fim levou? No lugar dele havia um outro laudo, assinado por um tal Ivan Valadares, que nunca havia visto a minha mulher. E o detetive Celso Machado, que fim levou? Por que o caso estava sendo conduzido pelo detetive Plínio Silva? E por que a polícia demorou tanto tempo para identificar o filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara? Será que eles não sabiam mesmo... Ou, então, estavam tentando ganhar tempo até inventarem uma história ou, repito, estória?

            Meu advogado solicitou um habeas corpus, que foi negado. Eu teria de esperar pelo julgamento na cadeia. Como tenho curso superior, fiquei em uma cela individual. Pois é, meu consolo era saber que teria exatos 12 metros quadrados só para mim.

            Minha mulher veio me ver à tardinha. Conversamos por mais ou menos meia hora. Falei para ela manter a calma, que sairíamos daquela confusão toda. Disse que comemoraríamos com uma viagem pelo nordeste assim que as coisas ficassem esclarecidas. Ela chorou, nos abraçamos, nos beijamos e fizemos juras de amor eterno.

Testemunhas

            Quando completei três dias preso, seu José, o porteiro do meu edifício, veio depor. Ele disse que nunca havia visto o filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara nem sabia de envolvimento algum dele com Elaine. Disse que eu era um ótimo morador, nunca ouviu qualquer briga entre minha esposa e mim, muito pelo contrário, éramos o casal mais apaixonado de todo o prédio. Em todos os pontos do interrogatório, seu José me foi extremamente favorável, já que não faltou com a verdade. E olha que o delegado, Antônio Carlos Pires Resende, lembrou-se de que falso testemunho era crime. Seu José depois veio me ver. Contou que o delegado lhe havia dito pelo menos umas cinco vezes que falso testemunho dava cadeia, numa clara tentativa de intimidação.

            No mesmo dia, dona Solange, nossa vizinha, também se apresentou para depor. Disse que só ouviu os tiros, não ouviu discussão alguma, o que só veio reforçar a verdade. Contou que não era nossa amiga, mas que também nunca teve qualquer motivo de discórdia conosco. Não pode garantir que vivíamos bem, mas jamais testemunhara qualquer briga entre Elaine e mim. Mais um testemunho a meu favor! Comecei a ter pensamentos positivos, ninguém conseguiria distorcer a verdade, mesmo usando a força da máquina político-econômica.

            Vieram seu Ernesto e dona Felícia, casal que morava no sétimo andar, o mesmo que o meu. Eles foram bem mais generosos comigo. Falaram que eu era um excelente vizinho, muito prestativo – certa vez atendi o poodle deles, já de madrugada, quando estava vomitando e tendo diarreia, consequência de um pedaço de mortadela que ele comera. Também disseram que Elaine e eu formávamos um lindo casal, sempre sorridente. Cada vez eu ia ficando mais otimista.

            Bernardo também foi chamado a depor, depois veio me visitar. Ele me disse que o delegado chegou a coagi-lo a dar um depoimento desfavorável a mim. “Você pode se complicar, meu rapaz”, o delegado teria dito. Meu sócio, no entanto, não se deixou abater por essas ameaças, só falando coisas altamente favoráveis a mim.

Uma testemunha se cala

            Já fazia quase um mês que eu estava confinado na minha “suíte” de 12 metros quadrados. Dr. Basílio, que vinha me ver quase diariamente, trouxe uma notícia triste: seu José havia falecido! Atropelado na av. Brasil na madrugada de sábado para domingo. Fiquei abalado, pois tinha certa estima por aquele homem, sempre prestativo, sempre com um sorriso no largo rosto de origem indígena. Era paraibano, estava no Rio há mais de 15 anos, sendo oito trabalhando no meu edifício. Pensei quase que instantaneamente na dona Mara, sua esposa. Como deveria estar aquela pobre mulher, agora sem o homem que fora seu companheiro por tantos anos?

            _ Perdemos uma das nossas melhores testemunhas, talvez a melhor.

            _ O que o senhor está falando? Seu José acaba de morrer, e o senhor vem me falar em testemunha?

            _ Carlos, sinto muito pelo seu José. Já estive com a senhora Mara e lhe dei meus mais sinceros pêsames. Ela está reagindo bem, dentro do possível, levando-se em conta que acabou de perder o marido. Mas, Carlos, como seu advogado, não posso deixar de pensar em como a perda do seu José poderá afetar a nossa defesa.

            Dr. Basílio estava certo! Seu José era um grande trunfo... Àquela noite, no entanto, meus pensamentos foram dedicados à memória daquele homem simples, daquele paraibano incapaz de fazer mal a uma mosca, contrariando todos os ditos populares sobre as pessoas daquele estado nordestino, cuja capital é João Pessoa. Seu José não era de João Pessoa, mas de Campina Grande!

 

 

Leitura

            Bernardo também me visitava com certa frequência. Trazia notícias da clínica. Disse que os clientes estavam ao meu lado, isto é, em sua maioria, já que alguns até falavam que eu tinha cara de traficante, marido traído etc. Também não os culpo, tamanha era a campanha da imprensa contra mim. Por isso mesmo, passei a não ler os jornais. Comecei a me dedicar à leitura de livros. Li vários: Estrela Solitária, de Ruy Castro; Assim falava Zaratrusta, de Friedrich Wilhelm Nistzsche; alguns clássicos de Machado de Assis como Esaú e Jacó, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurrocom certeza o mais famoso de todos – e Quincas Borba, que é o meu favorito, com a insinuante Sofia.

Depoimento de Elaine

            Minha mulher veio depor numa terça-feira. O delegado tentou intimidá-la, da mesma forma que havia feito com Bernardo e o falecido seu José, mas ela estava bem amparada pelo Dr. Basílio. Não seria com minha esposa que a polícia arrancaria um depoimento desfavorável a mim. Eles teriam que se esforçar mais para encontrar alguém que pudesse dar um testemunho contra mim, se é que isso fosse possível.

            O delegado perguntou há quanto tempo ela estava saindo com o filho do senador. Ela foi taxativa: _ Doutor, nunca em minha vida havia visto esse canalha! Sou uma mulher casada, amo meu marido e nunca o traí. Esse tal filho do senador invadiu meu apartamento e me violentou. O senhor bem sabe disso, mas continua com esse joguinho não sei por quê.

            Depois de depor, minha mulher e meu advogado vieram conversar comigo. Eles me contaram que havia um clima muito desfavorável, mesmo não existindo sequer uma prova contundente contra mim.

            _ Não posso garantir, Carlos, mas há algo estranho no ar. Posso até sentir o cheiro de podre – disse Dr. Basílio.

O médico e o monstro

            A imprensa tentava de todas as formas me entrevistar, mas sempre havia uma barreira policial impedindo o contato. Eu queria falar, tinha de me defender. Dr. Basílio não era contrário, mas temia que a minha inexperiência perante a imprensa pudesse pôr tudo a perder. Mas eu precisava falar, tinha de começar a combater todas as mentiras que estavam sendo ditas a meu respeito. As matérias mais amenas me chamavam de Dr. Jekyll, numa clara alusão ao clássico da literatura O Médico e o Monstro – Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson. E eu ali, sem poder me defender disso tudo, trancafiado naquela cela de exatos 12 metros quadrados.

Patrícia

            Saudade de Patrícia! Nunca havia ficado mais de dois dias sem vê-la. E, agora, essa situação me obrigava a ficar longe da minha menina de olhos tão grandes. Minha esposa havia dito para nossa filha que eu estava viajando. Quando isso tudo terminaria?, eu me perguntava a cada minuto, se é que algum dia retornaria dessa longa viagem.

            Sei de julho de 1997, quando minha vida tomou um rumo bem diferente daquele que eu esperava. Sem querer parodiar o poeta, tudo eram flores. Lamentações não me faltaram quando eu ficava sozinho nos dias que passei trancafiado naqueles malditos 12 metros quadrados.

Libélula

            Já corria o mês de setembro, quando Elaine foi l evada às pressas para o hospital Casa São José, no Humaitá. Estava com sério risco de perder nosso bebê. O médico que estava fazendo o pré-natal, Dr. Marcius Batista, depois de examiná-la, recomendou repouso absoluto por duas semanas. Elaine estava com deslocamento de placenta, com possibilidade de aborto. Após esse período, Dr. Marcius faria nova ultra-sonografia e, se  fosse o caso, a liberaria para pequenas atividades.

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            Poucos dias após o susto do risco de aborto, um tal Antônio Costa, vulgo Libélula, veio depor. Segundo ele, que cumpria pena por tráfico de entorpecentes em Bangu I, eu era o chefe da boca de fumo do Morro Dona Marta, em Botafogo. Libélula também disse que eu o estava ameaçando de morte há vários meses e, por isso, resolveu abrir o bico. Libélula, quem era esse tal de Libélula? Eu nunca o havia visto. Por que, então, ele estava dando um falso testemunho contra mim? A troco de quê? De qualquer forma, a polícia, os homens da política, não sabia quem, começavam a ganhar terreno. Era a tal coisa podre que o Dr. Basílio havia pressentido que começava a feder.

            No dia seguinte, outro detento, também de Bangu I, veio depor. Seu nome era José Carlos da Silva, vulgo Preto, também condenado por tráfico de drogas. Seu depoimento não foi muito diferente do seu colega de presídio. Aliás, até parecia que tinham ensaiado juntos. Se, por acaso, houvesse a modalidade “Depoimento sincronizado” nas Olimpíadas, com certeza os dois ganhariam a medalha de ouro. Preto só acrescentou que me ouvira falar que mais dia, menos dia, eu mataria o amante de minha mulher. As pessoas por trás de toda essa farsa marcavam outro ponto com mais esse falso testemunho.

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            Novo pedido de habeas corpus – já era o quarto em menos de dois meses. Nova negativa! Se quisesse sair da minha “suíte”, teria de conseguir isso através da minha absolvição no julgamento, que seria em abril ou maio de 1998. Mas do jeito que as coisas estavam caminhando, comecei a ficar desacreditado.

* * * * *

            Elaine, depois de duas semanas em repouso absoluto (ela presa na cama; eu, na minha “suíte”, ironia do destino), já que sua mãe montara guarda 24 horas por dia, foi à clínica do Dr. Marcius, que fica em Ipanema, na rua Barão da Torre. Nosso bebê estava bem, mas o médico não a liberou totalmente. Ela poderia fazer algumas coisas, mas nada de esforço muito grande. E isso a deixava cada dia mais estressada.

            _ Carlos, não aguento mais! Por que você deixou que tudo isso acontecesse com a gente?

            _ Meu amor, tudo vai acabar bem...

            _ Acabar bem? Como você pode garantir que essa droga vai acabar algum dia?

            Elaine começava a chorar, me abraçava em busca de conforto, de apoio. Ela estava muito sensível, o que já é próprio de uma mulher grávida. E ainda tinha de passar por toda essa bagunça que nossas vidas havia se transformado.

* * * * *

            Dois dias depois dessa crise nervosa de Elaine, houve uma tentativa de fuga na delegacia. Dois presos foram baleados. Soube mais tarde que um deles morreu a caminho do hospital. O outro chegou em estado grave, falecendo de madrugada. Os presos que participaram da tentativa frustrada de fuga foram levados, um a um, para a sala no fundo da delegacia, de onde se ouviam gritos de dor e desespero. Uma coisa é saber que existe tortura através da imprensa. Outra, completamente diferente, é você testemunhá-la.

* * * * *

            As horas foram se transformando em dias, os dias em semanas, as semanas em meses... Já estávamos em dezembro! A imprensa continuava com a campanha contra mim. As últimas notícias falavam que “a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro é famosa por suas festas regadas a drogas”. Palavras de certos veículos de comunicação, que não se preocupavam em atacar uma instituição de ensino superior de renome internacional só para tentar justificar o “assassinato de um respeitável membro de nossa sociedade”.

Detentos

            Véspera de Natal! Minha família, com exceção de minha sogra – que ficara tomando conta da Patrícia –, e meu amigo Bernardo vieram me ver. Trouxeram um verdadeiro banquete, que acabei dividindo com os outros presos. A grande maioria deles sequer recebeu uma única visita em todo o período que passei ali. Eles ficaram muito agradecidos. Depois de alguns meses convivendo com aqueles homens, muitos bandidos de segunda categoria, ou seja, protagonistas de pequenos furtos, acabei por me aproximar. Não posso dizer que éramos amigos, mas devido ao convívio diário, 24 horas por dia, acabamos por formar certos laços. Minha “suíte” ficava de frente à cela deles, que era do mesmo tamanho. A diferença é que ali ficavam aglomerados no mínimo oito detentos, desde o dia em que cheguei.

            Sempre que alguém vinha me visitar, pedia para que trouxesse um ou dois maços de cigarros para os “meus amigos do quarto de frente”. Não era fumante, mas a maioria dos detentos o era, talvez pela necessidade de passar o tempo de alguma forma. Um minuto dentro de uma cela é uma eternidade! Alguns já estavam presos há mais de um ano. Canela era um desses. Magro como um palito, muito agitado, não parava quieto, andava de um lado para outro da cela. Aguardava julgamento por tentativa de assalto à mão armada, mesmo tendo usado um revólver de brinquedo. Outro “das antigas” era o Curió, mais preto que a própria escuridão, adorava cantar, principalmente as músicas do Tim Maia. Dizia que havia conhecido o famoso cantor em uma festa. “O Tim é sangue bão”, Curió comentava. Já o Seleção, goiano de Anápolis, um sujeito mirradinho, sempre com a escalação dos escretes brasileiros vitoriosos nas Copas do Mundo de 1958, 1962, 1970 e 1994 na ponta da língua. “Garrincha e Pelé não tem igual, mas o Baixinho (Romário) joga fácil no meu time”, Seleção parecia até que estava narrando uma partida, o momento do gol, quando falava. Ele e Curió eram batedores de carteira (eu nem sabia que ainda havia esse tipo de ladrão), foram presos juntos na Cinelândia, no centro do Rio. Como se pode notar, há muitos criminosos desastrados na Cidade Maravilhosa.

* * * * *

            _ Estrupador na área! – anunciavam os policias de plantão.

            Não tinha mais de 30 anos, estatura mediana, uns 80 quilos. Foi atirado na mesma cela dos “meus amigos”, onde passou pelas mais bárbaras situações...

            Minha mulher foi estuprada, eu matei o desgraçado... E o mataria quantas e quantas vezes fossem necessárias! No entanto, nunca entendi direito essa lógica dos criminosos, que toleram todo tipo de crime, menos estupro. Estuprador, para eles, não tem perdão! Fiquei até com pena do mulato, talvez por não estar envolvido emocionalmente. Certamente foi por causa disso! Quando misturamos sentimento com razão, deixamos de lado a imparcialidade. Mas como deixar de misturar quando a vítima é alguém que a gente ama?

Uma voz

            Em janeiro de 1998 recebi um exemplar do jornal A Justiça, onde constava o seguinte artigo:

            “Esse homem é inocente!

            Há meses estamos vendo, ouvindo e lendo a campanha mais sórdida contra um homem, o médico veterinário Carlos Cesario. Mas do que o estão acusando? Qual o crime que esse homem cometeu? Ele roubou? Ele estuprou? Não, nada disso! Nada disso, eu repito! O Dr. Carlos Cesario apenas defendeu a sua família, defendeu a honra de sua mulher, que estava sendo brutalmente violentada por um viciado, um marginal, um filho de senador da República.

            Estamos cansados de ouvir que o filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara era amante da esposa do Dr. Carlos Cesario. Estamos cansados de ouvir que o Dr. Carlos Cesario é um dos maiores traficantes de drogas do país. Já estamos cansados de tantas mentiras. O Dr. Carlos Cesario é um respeitável membro de nossa sociedade.

            A senhora Elaine, esposa do Dr. Carlos Cesario, nunca foi amante desse marginal, desse filho de senador da República, desse tal Márcio Sampaio Pessoa de Alcântara. Essa respeitável senhora NUNCA disse uma só palavra que sequer insinuasse qualquer envolvimento com o filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara. A senhora Elaine ama seu marido, o Dr. Carlos Cesario.

            E, apenas para finalizar, não foi o Dr. Carlos Cesario que disparou contra o marginal Márcio Sampaio Pessoa de Alcântara, o tal filho de senador da República. Não, repito, não foi o Dr. Carlos Cesario! Então, quem deu aqueles tiros? Caro leitor, fomos todos nós, cidadãos decentes, quem demos aqueles tiros. Mas por quê? Simplesmente porque estamos cansados, fartos de sermos violentados diariamente por toda essa corja de marginais, que invadem nossos lares, roubam o fruto do nosso árduo trabalho, estupram nossas mulheres e filhas. Esses marginais estão nas esquinas, à espreita, esperando a próxima vítima passar. E, caro leitor, essa próxima vítima pode ser você!”

            O autor desse artigo foi o senhor Raimundo Pacheco, que escreve uma coluna (O Amigo da Verdade) no jornal A Justiça, com tiragem de 35.000 exemplares. Não o conhecia, nunca havia lido uma linha dele, mas, afinal, era uma voz a meu favor. O senhor Raimundo é amigo do pai de Bernardo, jogam sinuca juntos há mais de 20 anos.

Uma segunda voz

            No dia seguinte à publicação do artigo do senhor Raimundo Pacheco, meu advogado veio me contar que o jornalista João Alves de Matos, do jornal televisivo Rio 24 Horas (ele também escreve no jornal A Cidade), queria me entrevistar. A semente plantada pelo senhor Raimundo Pacheco começava a germinar...

            O Dr. Basílio e eu concordamos que era a hora de falar. A entrevista foi marcada para o dia 25 de janeiro de 1998, aniversário da minha filha Patrícia, que estava completando quatro anos.

            João é um cara muito carismático, desses que entram em qualquer ambiente e são logo notados, apesar de não ter mais que 1,60 metro de altura e, no máximo 55 quilos. Eles nasceu em Formosa do Rio Preto, interior da Bahia, quase Piauí, em 1963.

            Depois das apresentações formais, Dr. Basílio, João e eu nos sentamos ao redor da mesa que fora colocada especialmente para a ocasião. Conversamos por mais ou menos uma hora antes da câmara ser ligada, pois João queria saber qual caminho seguir durante a entrevista. Ele ficou pasmo com a minha história. A matéria foi ao ar no mesmo dia. Nas semanas seguintes também, mas em pequenas edições.

            Não era a primeira vez que alguém me defendia publicamente, mas, sem dúvida, era a mais convincente. A matéria era de uma clareza profunda, discorria sobre o fato de não haver qualquer testemunha confiável contra mim, pois, até então, somente dois condenados por tráfico de drogas tinham deposto desfavoravelmente. Minha prisão era uma arbitrariedade, com claras intenções políticas, já que o senador Camilo Pessoa de Alcântara era um forte candidato à reeleição, além de apoiar vários candidatos a cargos menores. Ter um filho viciado já era um prato cheio para os adversários, mas se alguém descobrisse que também era estuprador, as chances do senador à reeleição seriam menores do que as do Olaria ganhar o Campeonato Brasileiro de futebol. Estávamos quase entrando em fevereiro, e as eleições seriam em outubro. E com toda a pressão política contra mim, sabia que a batalha judicial seria difícil, mesmo a promotoria não tendo uma única prova no mínimo aceitável.

            O senador Camilo Pessoa de Alcântara conseguiu o direito de resposta contra a matéria do jornalista João Alves de Matos. As pesquisas eleitorais acusavam uma queda de 7% para o senador. Ele tinha de conseguir reverter esse quadro. Acusou o jornalista João de “leviano e subversivo em busca de promoção pessoal às custas do assassinato brutal de um jovem promissor”. Só se esqueceu de dizer em que Márcio Sampaio Pessoa de Alcântara era promissor: a marginalidade!

Detetive Celso

            Dr. Basílio veio me ver. Senti que tinha algo importante para me contar.

            _ Carlos, precisamos conversar!

            _ O que houve, doutor? Algo com minha família?

            _ Não, não... Acabei de receber um bilhete, que foi deixado na caixinha do correio da minha casa. É um bilhete do detetive Celso Machado. Ele quer me encontrar na hora do almoço. Talvez tenha muito a dizer.

            _ Puxa, o detetive Celso? Onde será o encontro?

            _ Na estação do metrô Uruguaiana às 13h. Estarei lá. Só passei aqui para lhe informar, pois estava ansioso para isso. Mais tarde passarei aqui para lhe contar tudo.

            Eram 10h37! O Dr. Basílio não demorou muito, estava realmente louco para saber o que o detetive Celso tinha a dizer. Pela primeira vez vi meu advogado sem o seu característico ar de aristocrata europeu. Ele estava parecendo um rapazola que havia ganhado o primeiro beijo da namorada, tamanha a sua excitação.

* * * * *

            Fiquei tão ou mais ansioso que o Dr. Basílio. Sabia que o detetive Celso tinha algo para contar. Mas como ele poderia nos ajudar? Se ele fora afastado do meu caso, com certeza era contra toda essa farsa que estavam armando contra mim. Estaria ele correndo risco de vida? Minha mente não parava de tentar adivinhar o que o detetive diria ao meu advogado. Pensei tanto que mal toquei no meu almoço. À tarde recebi a visita de Elaine, que me trouxe pizza de calabresa. Pizza de calabresa, foi isso que comi naquele seis de julho de 1997, pensei. Foi naquele dia que acabei conhecendo o detetive Celso Machado. E depois de tanto tempo sem notícias dele, naquele dia comi pizza de calabresa outra vez...

            Elaine me visitava umas três vezes por semana, mas aquela visita era para me contar algo especial: o sexo do nosso bebê! Era outra menina! Fiquei muito feliz, dei-lhe um beijo tão gostoso, que até me esqueci dos meus vizinhos da cela da cela em frente. O nome seria Carla, como já havíamos escolhido. O parto seria por volta do dia 20 de fevereiro, dali a duas semanas. Lanchamos.

            Não contei para Elaine sobre o reaparecimento do detetive Celso. Preferi falar tudo depois, quando já soubesse o conteúdo da conversa dele com o Dr. Basílio. Não queria deixar minha mulher mais apreensiva ainda. Antes das 18h ela foi embora. Como estava barriguda a minha Elaine! E continuava tão bela!

* * * * *

            Quase 20h! Dr. Basílio chega à delegacia com uma fisionomia digna de um garoto que acabou de vencer um torneio de jogo de botão. E antes mesmo de me cumprimentar, joga uma piscadela de olho, num claro sinal de que trazia boas novas.

            O meu advogado contou que foi à estação do metrô como combinado. Já que ele não conhecia o detetive Celso, ficou atento a qualquer estranho que se aproximasse. Acabou se confundindo por duas vezes, mas às 13h15 alguém o abordou. Era um homem alto, mais alto até que o meu advogado, branco, olhos claros, muito forte. Esse homem disse que o levaria até o detetive Celso. Entraram na estação, pegaram o metrô em direção à estação Estácio, que é o ponto de transferência da linha 1 para a linha 2. Pegaram o metrô na linha 2 e desceram na Pavuna, subúrbio do Rio. Tomaram uma lotação (Kombi) para o Parque Colúmbia, um bairro dentro da Pavuna. Desceram próximo a um campo de futebol, andaram uns 100 metros, dobraram numa rua sem saída, entraram numa casa caindo aos pedaços.

            _ Detetive Celso?

            _ Sim, Dr. Basílio. É um imenso prazer em conhecê-lo.

            O detetive Celso Machado disse que foi afastado do caso por decisão do delegado João Jorge Leite. Acabou sendo transferido para Vaz Lobo, subúrbio do Rio. Na mesma época, os policiais Arruda e Gomes também foram transferidos para Magé, município do estado do Rio de Janeiro. Em agosto de 1997, pouco mais de um mês após a invasão dos dois marginais ao  meu apartamento, esses policiais foram mortos durante uma operação policial. Na mesma semana, o detetive Celso sofreu um atentado, escapando ileso “pelas mãos de Deus”, segundo suas próprias palavras.

            Depois do atentado fracassado, o detetive recebeu alguns telefonemas anônimos ameaçando não só a sua vida, mas a de seus familiares – ele tem mulher e um casal de filhos adolescentes. Com medo, o detetive pegou a família, raspou até o último centavo de sua conta no banco e, durante a madrugada, rumou para Guarapari, litoral do Espírito Santo, onde possui alguns parentes. Deixou a família naquela cidade e, duas semanas depois, retornou ao Rio.

            _ Não adianta tentar me esconder. Se eu tivesse muito dinheiro, fugiria do país, mas não tenho. Então, tenho de enfrentar a situação, tenho um emprego, estou em final de carreira também. Ainda tenho amigos na polícia, gente honesta, gente de bem, bons policiais. Muita gente pensa que policial é tudo corrupto, mas não é bem assim – desabafou o policial com o Dr. Basílio.

            O detetive Celso corria perigo de vida, como imaginei. Ele é um homem decidido, tão honesto que chega a ser Caxias, desses policiais incorruptíveis que vemos em filmes americanos.

            A mais surpreendente revelação do detetive Celso, no entanto, foi em relação à morte do seu José, porteiro do meu edifício. De acordo com o laudo do Instituto Médico Legal (IML) a causa mortis foi esmagamento torácico em virtude de atropelamento. No entanto, segundo um colega do detetive Celso que trabalha no IML, havia duas perfurações no crânio do seu José, causadas por projéteis de arma de fogo. Em outras palavras, o porteiro fora assassinado, não atropelado. Mas por que mataram o seu José? Na certa tentaram convencê-lo a depor contra mim. Como não conseguiram, assassinaram-no e, então, forjaram o atropelamento. Pobre seu José... Havia muita gente envolvida, não só da polícia, que era apenas um braço de alguém muito mais forte... Talvez o promotor estivesse envolvido. Possivelmente os jurados... E até mesmo o próprio juiz responsável pelo meu julgamento, que se aproximava a galopes dignos de um cavalo vencedor do Grande Prêmio do Brasil, conduzido pelo famoso jóquei Juvenal (“Lá vem o Juvenal! Lá vem o Juvenal!”). Tanta gente envolvida, tantos interesses em jogo, minha vida descendo pelo ralo. Quem mais estaria na lista de pagamento do senador Camilo Pessoa de Alcântara? Quem não estaria, em quem eu poderia confiar?

Carlinha

            Onze de fevereiro de 1998! Elaine acorda com as coxas molhadas: a bolsa estourou! Minha sogra, que há duas semanas vinha dormindo no nosso apartamento, liga imediatamente para o Dr. Marcius. Depois telefona para o meu sogro e minha mãe. Todos seguem para a Casa de Saúde São José, no Humaitá. Às 12h25 nasce Carla, 2,75 quilos, 47 centímetros, cabelos escuros, pele clara. Houve complicações, Dr. Marcius optou pelo parto cesárea. Todos falaram que Carlinha é a minha cara, talvez como forma de me consolarem, afinal, estava confinado nos meus 12 metros quadrados.

            Fico feliz pelo nascimento da minha Carlinha, da minha garotinha caçula. Fico angustiado por não poder pegá-la no colo, não poder abraçá-la. Entro numa depressão tão grande, nem toquei no almoço e no lanche da tarde, que minha mão trouxe. Ela tirou algumas fotos da minha garotinha. Não sei se ela é a minha cara, talvez pareça um pouco, não dá para ver direito.

            _ Meu filho, a Carlinha já nasceu fazendo xixi e cocô!

            Acho graça das “façanhas” da minha filha. Quando eu iria vê-la? Quando eu iria pegá-la no colo, trocar fralda, dar banho? Minha mãe sente minha depressão, quer me consolar. Tento disfarçar, mas ela percebe que não estou no meu melhor. Puxa, mas como eu deveria estar? Minha filha acabara de nascer e eu estava preso por motivos forjados. Ódio, angústia, depressão, tudo misturado na minha cabeça. Meu estômago começou a doer, resultado do meu jejum, do estresse. Acabei comendo uns biscoitos de água e sal que minha mãe trouxera. Bebi um pouco de iogurte.

Aos inimigos, bala

            Dr. Basílio veio me visitar.

            _ Carlos, o julgamento foi marcado! Dia 26 de maio, uma terça-feira. Há muito tempo não vejo um julgamento ser marcado tão rapidamente.

            _ E o que o senhor acha disso?

            _ Bem, não vou mentir pra você... Eles querem a sua cabeça. Estamos em ano de eleição, o senador Camilo Pessoa é um homem muito influente. Caso você seja absolvido, ele terá muito a perder. Vamos ter de usar bastante cautela. A promotoria não tem provas contundentes, mas estamos mexendo em um vespeiro.

            _ Mas e a justiça, onde fica a justiça? A justiça não é cega?

            _ Carlos, essa gente costuma usar o seguinte lema: “aos amigos tudo, aos inimigos apenas o rigor da lei”. Só que no seu caso eles não querem apenas o rigor da lei... Querem bala!

            Esse comentário do Dr. Basílio me causou um frio na espinha. Sabia que meu advogado não queria me impressionar, não era o caso de se perdêssemos foi por ser muito difícil. Realmente o senador Camilo Pessoa de Alcântara e os outros interessados estavam apostando muito alto. E não seria um simples desconhecido que poria sua reeleição para escanteio.

            Poderíamos usar o testemunho do detetive Celso? Ele sabia de toda a farsa que o senador Camilo Pessoa havia armado contra mim. Mas o detetive teria provas? Na certa o matariam antes mesmo dele abrir a boca, mesmo que lhe garantissem proteção policial Mas ele dissera que havia gente honesta na polícia, gente que não se corrompia. Por outro lado, também não faltam verdadeiros marginais com seus lustrosos distintivos.

            E se eu fosse considerado culpado? O que seria da minha família? O que seria de mim? A quantos anos seria condenado? Dez anos? Vinte? Trinta? Condenado por um crime que não cometi? Seria isso possível? Já ouvira falar que todo preso se diz inocente, injustiçado... Alguém acreditaria que eu era realmente inocente?

            Os dias foram passando, minha angústia foi aumentando até o ponto de eu não ligar mais para o que pudesse acontecer comigo. Já não ligava se eu fosse condenado, já não me importava com a opinião das pessoas. Se eu fosse condenado, talvez fugiria. Mas como? Para onde? Viveria fugindo? Preferi considerar a única possibilidade digna, a única maneira justa dessa farsa toda acabar: eu ser considerado inocente, o senador Camilo Pessoa de Alcântara e todos os seus cúmplices sendo desmascarados. Justiça!!!

O julgamento

            Dia 26 de maior de 1998! Às 10h23 teve início o meu julgamento. Testemunhas, jurados, plateia, o promotor, meu advogado, o juiz, tudo como a gente vê nos filmes estava lá.

            O promotor, Frederico Aires, foi tão convincente, que até eu cheguei, por um instante, a acreditar em suas palavras. As testemunhas de acusação foram bem adestradas, chegaram a me cumprimentar como se fôssemos velhos conhecidos. Já os que testemunharam a meu favor, talvez impressionados pela convicção demonstrada pela promotoria, vacilaram em alguns pontos. Meu advogado tentou de todas as formas provar minha inocência, usou fatos concretos, mas estávamos disputando um jogo de cartas marcadas. O juiz, Nicolau Santos Gouveia, após seis horas de julgamento, incluída a hora e meia para o almoço, proferiu a decisão dos jurados: _ Culpado!!!

            Fui condenado a 87 anos de prisão pelas mortes do filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara e do menor Roberto Carlos dos Santos, além de participação no comando do tráfico de entorpecentes, formação de quadrilha e outras acusações. Teria de cumprir pelo menos a sexta parte da pena em regime fechado. Meu advogado protestou veemente contra a decisão. Depois se virou para mim e disse:

            _ Carlos, vou fazer o possível e o impossível para provar a sua inocência. Sei que você inocente. Você vai ter de ser forte, mais forte do que jamais foi em toda a sua vida. Sempre estarei ao seu lado, não por ser seu advogado, mas por ser seu amigo.

            Fiquei emocionado com as palavras do Dr. Basílio. Advogados não são pessoas frias, que só pensam em dinheiro. Pelo menos o meu advogado não é assim. Pelo contrário, sempre se portou como um verdadeiro cavalheiro em todos os sentidos.

            Não fui algemado, eu já estava com “minhas pulseiras especiais”. Dois policiais me levaram para uma sala. Dali fui encaminhado à penitenciária Desembargador Hélio Bueno Brandão, no Estácio.

Presídio

            Minha cela era a 17. Dezessete é o grupo do macaco no jogo do bicho. Macaco! Do mesmo tamanho da que havia passado os últimos meses, com duas camas, um vaso sanitário, uma pia, uma pequena estante com alguns livros e revistas, uma mesa com filtro de água, uma cadeira, um rádio, uma pequena televisão. Não era uma cela exclusiva, agora tinha um colega de “quarto”: Nery Tomaim, 45 anos, formado em economia, branco como uma vela, calvo e de bigode cheio. Meu colega fora condenado por ter assassinado a mulher, que estava de caso com um vizinho. Nery ainda guardava os recortes de jornais com as matérias sobre o seu crime, cometido há três anos. Ele costumava se referir à mulher como “a piranha” ou “a vagabunda”. Não tiveram filhos juntos, mas Nery tinha um de outro relacionamento.

            _ Meu amigo, você sabe o que é pegar a própria mulher dando pra outro cara? O filho da puta conseguiu fugir antes de eu apanhar meu revólver. A piranha não teve a mesma sorte, ficou parecendo uma peneira. Jorrou sangue pra todo lado. A vagabunda tentou fugir, peladona, com tudo de fora, implorando pra eu não matá-la, pedindo perdão... Aquela piranha de uma figa acabou com a minha vida, mas não viveu pra contar a história... Fui corno, mas estou vivo!

            Nery ficava transtornado quando relembrava esse ocorrido. Não sou eu que irei julgá-lo, não pretendo entrar no mérito da questão. Certo ou errado, ele estava pagando pelo que fez.

* * * * *

            Tínhamos duas horas de banho de sol, podíamos jogar vôlei, futebol, dominó, pingue-pongue. A maioria dos prisioneiros, no entanto, fazia caminhadas em dupla ou pequenos grupos. Muitos estavam ali por crime do colarinho branco. As penas variavam de seis meses até cinco, seis anos, dificilmente indo além disso. As maiores penas eram justamente a do meu colega de cela – 25 anos – e a minha.

            Acabei fazendo amizade com um ex-funcionário do Banco Central do Brasil, Murilo Krauser, que estava preso por causa de um desvio de mais de R$ 40.000.000,00. Pegou seis anos, estava preso há seis meses. O que nos aproximou foi o interesse de Murilo por cães, especialmente os da raça Bull Terrier, da qual era criador.

            _ Tenho dois machos e seis fêmeas, todos premiados em exposição. Poderíamos fazer uma sociedade, Carlos.

            _ Creio que isso vai ser meio difícil...

            Ninguém ficava falando dos seus crimes. Os principais assuntos eram política e futebol. Estávamos em época de Copa do Mundo e, em outubro, haveria eleições, inclusive para Presidente da República. Os principais candidatos eram o então Presidente Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio “Lula” da Silva. Minha mente, no entanto, estava voltada para outras coisas: minha família, minha vida... Ainda tinha esperanças de um novo julgamento. Talvez depois das eleições conseguisse, mas não era certo. Uma absolvição sacramentaria o fim da carreira política do senador Camilo Pessoa de Alcântara. Mesmo assim, continuava esperançoso.

            As visitas agora não eram tão frequentes, apenas uma vez por semana, conforme as normas do presídio. Se bem que alguns detentos recebiam visitas quase diariamente. Havia também alguns quartos especiais para visitas íntimas.

            Minha mãe, seu Francisco, minha sogra e meu sogro vinham me ver quase toda semana. Nunca mais havia visto Patrícia, nunca havia visto Carlinha, a não ser através de fotografias. Elaine e eu preferimos assim, pelo menos por enquanto. Minha mulher não faltava um dia sequer de visita.

            A primeira vez que tivemos nossos momentos nas salas de visitas íntimas foi um pouco diferente. Já não fazíamos amor há quase um ano, desde o dia anterior ao fato que mudou nossas vidas. O local estranho, o longo período sem fazer amor, era como se estivéssemos tendo nosso primeiro encontro. Certamente não foi a nossa melhor performance, mas, afinal, estávamos juntos outra vez, mesmo que na prisão.

            Nery era um dos mais assíduos frequentadores das salas de visitas íntimas. Pelo menos três vezes por semana vinha uma mulher diferente lhe fazer companhia. Às vezes duas mulheres e, em uma ocasião, três mulheres de uma só vez. Eram prostitutas, algumas muito bonitas, outras nem tanto.

            _ Meu amigo, nunca mais quero saber de romance. Não vale a penas. A gente acaba sendo traído. Mulher é tudo igual, mais cedo ou mais tarde acaba dando pra outro. Por isso só quero saber de prostitutas. A gente paga, elas fazem o serviço e pronto. Não precisamos dar presente, não precisamos fazê-las gozar. É tudo mais verdadeiro, sem falar que sai muito mais barato.

            _ Mas e o sentimento, Nery? Onde fica o sentimento, o amor?

            _ Ah, meu caro Carlos, você ainda é muito jovem. Ainda não viveu suficientemente pra saber das coisas. Escute este seu amigo, pois sei do que estou falando. Mulher é tudo igual!

            Apesar de discordar do meu colega de cela, não entrava em grandes discussões. Preferia manter as boas relações, já que estávamos dividindo a mesma “suíte”. E, no fundo, Nery era até divertido, geralmente mantinha o bom humor, a não ser quanto falava da sua ex-mulher, a tal “vagabunda”.

Copa da França

            Aos trancos e barrancos a Seleção Brasileira ia passando pelos seus adversários na Copa do Mundo de 1998, na França. Nós, os prisioneiros, assistíamos às partidas no salão de jogos, onde havia uma televisão de 29 polegadas. Alguns preferiam outras atividades como leitura, caminhadas ou, então, ficavam em suas celas. A algazarra era total quando o time brasileiro marcava um gol. Eu assistia aos jogos sem muito interesse, mesmo adorando futebol desde os tempos do lateral esquerdo Marinho Chagas, o Bruxa, no meu Glorioso Botafogo. Minha vida estava toda bagunçada, não conseguia pensar em outra coisa além da minha possível absolvição num remoto julgamento. Meu advogado estava tentando encontrar um novo elemento que justificasse a reabertura do meu processo. Corriam por fora também o detetive Celso Machado e o jornalista João Alves de Matos.

            O jornalista João continuava atacando o senador Camilo Pessoa de Alcântara. Não havia um dia sequer que não saísse pelo menos uma pequena nota de ataque a esse político, que era acusado de usar sua influência para incriminar uma vítima de seu filho. “Um notório vagabundo que ganhou asas de anjo depois de ser exterminado por uma de suas vítimas”, segundo João. Ele veio me visitar algumas vezes, me entrevistou duas vezes na prisão. Estava totalmente ao meu lado, sabia da veracidade da minha história. No entanto, tinha consciência de que minha batalha seria a de um Davi contra um Golias. Com um detalhe: esse Davi, no caso eu, não estava com sua famosa funda; e Golias estava armado com um rifle AR-15!

            Usando seus contatos na polícia e no IML, o detetive Celso tentava avançar alguns passos em sua investigação. Já havia descoberto várias coisas, mas precisava encontrar provas concretas... E de alguém com autoridade e coragem para depor a meu favor. Mas quem? Quem seria capaz de expor a própria vida só para salvar a pele de um desconhecido?

* * * * *

            A Copa do Mundo terminou, os brasileiros não teriam o que comemorar. A nossa Seleção tomou um dos maiores banhos da sua história no último jogo, com destaque especial para o craque francês Zinedine Zidade: França 3x0 Brasil. Não fora dessa vez que nós seríamos campeões do mundo outra vez. Muitos culparam o técnico Zagallo e o supervisor Zico pela não convocação de Romário, herói da Copa anterior. Outros acusaram o jogador Ronaldo de ter amarelado na final. Essa derrota do futebol brasileiro resultou até numa CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito). Histórias, histórias, histórias... Quanto a mim, continuava na prisão!

Minhas filhas

            O mês de setembro já corria quando pedi para minha mulher trazer nossas filhas. Fazia mais de um ano que não me encontrava com Patrícia. Só conhecia Carlinha através de fotografias. No dia 19, mais um domingo de visitas, reencontrei Patrícia... E segurei pela primeira vez no colo minha pequena Carla, que contava com apenas sete meses. É estranho a gente não ter contato com uma filha até tanto tempo depois de ter nascido. Só sei que foi muito bom poder pegar minha filha no colo, beijá-la, dar mamadeira e trocar a fralda. Puxa, como é bom!

            Patrícia havia crescido bastante desde a última vez que a vi. Pronunciava as palavras com clareza, perdera aquela fala inteligível de criancinha. Seus cabelos estavam maiores, caídos em cachos. Ela me abraçou, disse que sentia saudade, perguntou quando eu voltaria para casa... Resposta difícil, tentei distraí-la com caretas. Ela soltou uma gargalhada por causa das minhas palhaçadas. Minha mulher me abraçou e disse que todo esse tormento logo acabaria, que estaríamos em casa quando menos se esperasse. Palavras confortantes, palavras otimistas. Talvez otimistas demais.

            Foi maravilhoso ver minhas duas princesinhas! A visita durou cerca de duas horas, período muito curto para tentar compensar tanto tempo longe. A hora da despedida foi dura demais. É desesperador saber que não podemos ficar o tempo que quisermos com nossa família. Voltei para minha “suíte”. Nery estava lendo uma revista, olhou para mim e me perguntou como havia sido o encontro. Nem me lembro do que respondi, talvez não tenha dito coisa alguma. Fiquei olhando para o nada, pensando em como tudo havia começado. Uma fúria tomou conta de mim. Dei alguns berros e socos na parede. Era como e minha mão fosse uma marreta, não sentia dor. Acho que Nery nem se mexeu, talvez nem tenha dito uma única palavra, deve ter continuado a sua leitura. Somente depois, quando me acalmei, senti os ossos doendo. Minha mão parecia uma grande massa disforme, rubra. Pedi gelo a um dos carcereiros. No dia seguinte fui levado à enfermaria, onde foi batida uma radiografia. O quarto metacarpo esquerdo estava fraturado. Fiquei com gesso adornando a minha mão por um mês, tempo mais do que suficiente para saber que nunca devemos esmurrar paredes.

Eleições

            Fernando Henrique Cardoso foi reeleito Presidente da República. Camilo Pessoa de Alcântara conseguiu seu terceiro mandato de senador. Meu inimigo número um comemorava sua vitória nas urnas:

            _ Dedico mais este triunfo ao meu filho Márcio, brutalmente assassinado por um traficante. A justiça dos homens já puniu o assassino do meu filho, mas isso ainda é pouco para esse facínora tão covarde. A justiça de Deus também o punirá, sem piedade, sem clemência!

            Continuei sendo o alvo preferido do senador Camilo Pessoa de Alcântara. Ele chegou a lamentar a inexistência da pena de morte no Brasil. Tive de engolir tudo isso calado. Minha revolta era tamanha, que a gastrite voltou a atacar.

            Por que tudo isso estava acontecendo comigo? Que mal eu havia cometido? Era co mo se todo mundo estivesse cego. Parecia que todos estavam sofrendo de alienação, uma alienação generalizada, como uma grande massa que vai sendo modelada de acordo com os interesses alheios. Alheios? Não!!! Interesses do senador Camilo Pessoa de Alcântara!

Ceia na prisão

            Natal de 1998! Pois é, eu estava passando meu segundo Natal na cadeia, o primeiro na condição de condenado. Meus familiares vieram me visitar e novamente trouxeram um verdadeiro banquete. Meu amigo Bernardo também veio. Conversamos sobre os negócios. Ele havia contratado dois médicos veterinários para suprir a minha falta. Os negócios estavam crescendo. Apesar da minha condenação, a nossa clínica não teve a imagem arruinada, pois meu sócio é um verdadeiro homem do marketing. Ele soube desvincular meu nome dos nossos negócios.

            Elaine me presenteou com um bonito relógio de bolso. Eu, que quase nunca andava de relógio, agora tinha um de bolso. Quem ainda usa relógio de bolso? Em todo o caso, adorei, pois quando a gente abre a tampa que protege o vidro do relógio, se vê uma fotografia da minha mulher com minhas duas filhas. Também ganhei outros presentes: duas camisas, um baralho, uma caneta com meu nome gravado e um livro: A Arte da Guerra, de Tzu Sun.

            Dr. Basílio veio me visitar também. Trouxe uma caixa de bombom. Conversamos por mais de uma hora sobre a reabertura do meu caso. As pressões contra mim continuavam em proporções gigantescas, não havia expectativa da data de um novo julgamento, se é que haveria outro. Não era o melhor presente de Natal, mas é melhor ouvir a verdade do que ficar imaginando algo que não existe. Meu advogado foi bastante claro comigo, disse que o meu processo estava cheio de provas forjadas. No entanto, eu havia cometido um crime imperdoável: matei o filho de um político importantíssimo! Meu caso não era uma questão de fatos, mas de interesses.

* * * * *

            Recebi algumas cartas e cartões postais. Algumas pessoas, gente que eu nunca havia visto em toda a minha vida, escreviam coisas boas, más ou até mesmo divertidas. Gente escrevendo que era uma injustiça eu estar preso, pois não acreditavam nas histórias (ou estórias) que os veículos de comunicação contavam sobre mim; outras cartas continham frases me maldizendo; mulheres escreviam querendo se casar comigo... Isso me surpreendeu, pois não tinha ideia de que condenados tinhas “fã clube”. Nery me deu uma explicação até aceitável ou, no mínimo, engraçada:

            _ Meu amigo, as mulheres adoram presidiários porque sempre sabem onde o seu homem vai estar!

O bilhete

            Na véspera do ano novo recebi a visita do jornalista João Alves. Ele continuava a me tratar em suas matérias como “a maior vítima da politicagem dos últimos 20 anos”. Veio me entrevistar para o jornal A Cidade.

            A entrevista durou cerca de uma hora. Ele acreditava na minha inocência, mas não por causa dos meus lindos olhos azuis. João há muito vinha acompanhando a vida do senador Camilo Pessoa de Alcântara. Sabia das falcatruas do senador, sabia que Márcio Sampaio Pessoa de Alcântara era viciado em drogas pesadas (cocaína e heroína), sabia de muitas coisas. Só que precisava de provas mais contundentes, da mesma forma que o detetive Celso, da mesma forma que meu advogado...

            _ Carlos, não dá pra enfrentar um senador sem provas concretas. Se com elas já é uma batalha dura, sem elas vira suicídio!

            Quando João apertou a minha mão para se despedir, me passou um bilhete:

            “C

             Seja forte! A luta continua!

             C.M.”

            Parecia até mensagem de guerrilheiro. O bilhete era do detetive Celso Machado, dizendo que continuava nas investigações. Fiquei animado! Conservei o bilhete por alguns dias, depois achei mais prudente destruí-lo. Queimei-o!

Feliz Ano Novo?

            A queima de fogos na praia de Copacabana não deixou de acontecer pela minha ausência. Adeus1998, feliz 1999! Feliz? Minha vida havia se transformado num mar de lamúrias. Como comemorar a chegada de mais um ano atrás das grades?

            Tentava me concentrar em coisas boas, coisas positivas. Depois achava que agindo assim era como se eu estivesse me conformando com a situação. Então, me vinha a ideia de vingança. Desejava me encontrar com o responsável pela minha desgraça, um encontro onde apenas estaríamos eu e o cretino do senador Camilo Pessoa de Alcântara. Tinha vontade de enchê-lo de socos e pontapés. Não iria me importar com a idade avançada dele – uns 65-70 anos. Afinal, os canalhas também envelhecem, dizia para mim mesmo. Tinha medo que senador morresse antes do nosso encontro. Queria acabar com a raça daquele desgraçado filho da mãe!

Os três mosqueteiros

            Em fevereiro de 1999, meu advogado teve novo encontro com o detetive Celso. Só que agora havia um terceiro integrante: o jornalista João Alves de Matos. Os três possuíam motivos de sobra para desejarem minha inocência. Dr. Basílio, como meu advogado, estava defendendo seu cliente; João há muito vinha tentando desmascarar o senador Camilo Pessoa de Alcântara, que ele considerava um marginal de colarinho branco; e o detetive Celso, talvez o maior interessado, defendia a própria vida, que passou a correr risco a partir do momento que a polícia descobriu a identidade do estuprador de minha mulher.

             Desde o último encontro com meu advogado, Celso havia conseguido algumas informações importantes: o juiz do meu caso, Nicolau Santos Gouveia, mantinha relações no mínimo suspeitas com Sábato Maria, banqueiro do jogo do bicho. Dos sete jurados, pelo menos cinco recebiam ajuda financeira do partido do senador Camilo Pessoa de Alcântara. João mantinha um dossiê das ações desonestas do senador como, por exemplo, a liberação de mais de U$ 10.000.000,00, que ele havia conseguido do Governo Federal para a construção de centros educacionais que nunca saíram do papel. Onde foi parar todo esse dinheiro? Numa conta na Suíça? Dr. Basílio também estava fazendo um belo trabalho de investigação. Segundo informações de seu amigo e promotor público Tadeu Bittencourt Dantas, o promotor do meu caso, Frederico Aires, havia passado 15 dias na Europa, ficando hospedado em hotéis caríssimos, assim que saiu a minha condenação. E logo que voltou ao Brasil comprou dois carros zero quilômetro: um Vectra e... uma BMW! Pagou tudo à vista! Teria o promotor público tantos recursos assim? Ou teria recebido uma pequena ajuda de custos do senador Camilo Pessoa de Alcântara?

            _ Meus senhores, não conheço o Dr. Frederico Aires profundamente, mas sei que ele é de família abastada. No entanto, segundo meu amigo particular Tadeu Bittencourt Dantas, o Dr. Frederico sempre foi um sujeito totalmente avesso a gastos soberbos. Em outras palavras, o Dr. Frederico Aires é um notório mão-de-vaca!

            Meu advogado estava certo quanto à mudança de hábito de Frederico Aires. Mas como provar que o dinheiro gasto na viagem e na compra dos dois carrões viera do senador Camilo Pessoa de Alcântara ou, então, de alguém ligado a ele? Quebra de sigilo bancário? Difícil! A menos que alguém tivesse acesso às contas desse promotor. Mas quem? Elaine era bancária, funcionária do Banco do Brasil. Ela teria acesso a essas contas? E se alguém descobrisse? Ela seria despedida? Com certeza que sim! E por justa causa! Os três mosqueteiros acharam mais prudente não expor minha mulher a esse risco. Encontrariam outra forma de ter acesso às contas do promotor Frederico Aires.

Atentado a um jornalista

            A chuva caía forte, parecendo querer inundar toda a cidade do Rio de Janeiro. O trânsito estava lento, os motoristas mal conseguiam visualizar o que estava à sua frente. Pedestres tentavam se proteger embaixo das marquises dos prédios. Outros se aventuravam com seus frágeis guarda-chuvas. Chuva de verão! Chuva de verão no final da tarde... No final do expediente.

            Depois de escrever sua coluna, o homem se encaminhou à mesinha do café, que ficava ao lado da mesa do editor-chefe do jornal. Enquanto pegava dois cafezinhos – tinha essa mania de tomar dois cafés por vez –, trocou algumas palavras com o colega, que já estava de saída.

            _ E aí, Portella, vai tomar um chope com a rapaziada?

            _ Com esse dilúvio aí fora, é o melhor a se fazer, João. Vou esperar a chuva passar ou o trânsito melhorar.

            João telefonou para a sua casa. Sua esposa atendeu, trocaram algumas palavras carinhosas. João lhe disse que chegaria mais tarde, iria fazer hora até que as condições melhorassem, para encarar o trânsito até o Méier – bairro da Zona Norte –, onde moravam. Mais algumas palavras amorosas (estavam casados há dois meses) e se despediram.

            Chamou dois colegas, o fotógrafo Chicão e o redator Pacheco. Os três desceram os lances da escada que os separavam da av. Rio Branco, centro do Rio. Andaram até a Cinelândia, tentando se proteger ao máximo da forte chuva, e adentraram no Verdinho (situado na esquina da Cinelândia, próximo à praça Mahatma Gandhi), onde pediram três chopes e uma porção de batata frita.

            O papo girou em torno de vários assuntos (mulheres, a recém vida de casado de João, futebol...) até Pacheco levantar outro assunto.

            _ João, você acha mesmo que aquele veterinário é inocente?

            _ Eu não acho... Tenho certeza absoluta! O que esse filho da puta do Camilo Pessoa está fazendo com o Carlos Cesario é uma safadeza sem tamanho. Todo mundo sabe que o filho do senador sempre foi um viciado, sempre aprontou mil e uma coisas... Mas, de repente, do nada, o cara vira um santo.

            _ Mas esse veterinário não matou o filho do senador?

            _ Matou. Mas quem não mataria o desgraçado que estivesse estuprando sua mulher? Quem? Me responda, Pacheco, quem? Até aqueles escrotos dos direitos humanos matariam o filho da puta!

            _ É... Mas e esse negócio do tráfico de drogas?

            _ Tudo armação. Revirei toda a vida do Carlos Cesario. O máximo que o cara fez foi extrapolar um pouco no álcool quando estudava na Rural. Nada que um universitário, ou mesmo qualquer um de nós, não faça de vez em quando. O cara é completamente limpo. Ele só teve o azar de ter a mulher violentada por alguém que é filho de alguém importante.

            _ Alguém que é filho de alguém importante... É, o cara tá ferrado!

            _ Por enquanto, meu amigo, por enquanto...

            A chuva foi passando, as pessoas nas ruas já não eram tantas, a escuridão da noite já vinha dar a sua graça. Hora de retornar ao lar, doce lar.

            João se despediu de seus colegas e rumou para o local onde havia deixado seu carro, um Fiat Uno cinza metálico. No caminho parou numa banca de camelô e comprou uma barra de chocolate branco para Vitória, sua mulher. Já no carro, colocou uma fita cassete do seu cantor preferido (Raul Seixas) e seguiu caminho.

            Já na av. Presidente Vargas, foi fechado por dois carros! Atiraram em sua direção! Todos os vidros laterais do seu Fiat Uno estilhaçaram! Os dois carros fugiram em disparada!

            João, abaixado no fundo do carro, palpava cada parte de seu corpo em busca certa de um ferimento. Estava tenso, suando frio. Já havia recebido ameaças de morte, mas nunca passara por uma situação parecida. “Agora era pra valer”, pensou! Apenas um pequeno corte na mão esquerda, nada que uma pomada qualquer não resolvesse. Pegou seu celular e ligou para a redação do jornal. Portella, o editor-chefe, ainda estava lá. Contou-lhe o ocorrido. Logo uma viatura do jornal A Cidade estava no local do atentado. A polícia também chegou.

            João telefonou para Vitória, disse que chegaria um pouco mais tarde, preferiu não mencionar o ocorrido. Só depois, já em casa, contou-lhe o atentado sofrido.

            _ Meu amor, graças a Deus você está bem! Graças a Deus nada aconteceu a você!

            Não foi difícil imaginar quem era o mentor do atentado sofrido por João. A polícia, no entanto, descartou a tentativa de atentado contra a vida do jornalista. Preferiu a hipótese absurda de discussão no trânsito seguida de disparos de armas de fogo por um dos motoristas envolvidos.

Marasmo na prisão

            Os dias foram se arrastando lentamente... bem lentamente. O tédio era total, a esperança de uma possível melhora na minha situação estava quase esgotada. Comecei a andar de um lado para o outro na minha “suíte”, como aquelas feras enjauladas no zoológico. Zoológico! De um lado para outro, de um lado para outro... de um lado para outro. Peguei uma folha de papel e escrevi em letras garrafais: “Homo sapiens – espécie altamente perigosa que vive espalhada por todo o planeta, caça por prazer, polui rios e devasta florestas. Cuidado!!! Não se aproxime!” Prendi a folha na grade da minha cela.

* * * * *

            Estávamos em julho e para não dizer que nada acontecia no presídio, vou contar o único fato que destoou da rotina. Murilo Krauser, o tal ex-funcionário do Banco Central do Brasil, começou a andar com um novo presidiário: Amauri Cunha, médico condenado a seis por molestar sexualmente uma paciente. Ficaram tão próximos que pediram ao diretor do presídio, Darci Campos, para dividirem a mesma cela.

            Os amigos conversavam intensamente, a qualquer hora do dia dava para escutar a falação dos dois, já que minha cela ficava ao lado da deles. Todos os assuntos eram bem vindos naquela fonte inesgotável de palavras: mulheres, política, religião, comida, viagens, cinema, teatro, literatura, pintura. A comunhão era tamanha que os outros prisioneiros mal chegavam para conversar com Murilo e Amauri, pois ninguém queria atrapalhar. Passávamos pelos dois durante a nossa recreação e apenas os cumprimentávamos, quando muito. Nas poucas vezes que tive a oportunidade de trocar algumas palavras com Murilo, este me contou que nunca havia encontrado alguém tão inteligente quanto Amauri.

            _ Carlos, se o Amauri fosse mulher, seria meu par ideal. É pena ele ser homem... e seu ser heterossexual.

            Todos os assuntos, todos os assuntos... Com exceção de um: futebol! Amauri era vascaíno; Murilo, tricolor! Parecia que os dois estavam evitando falar de futebol, talvez por medo de descobrirem que não torciam para o mesmo time. Não sei se o motivo era esse... Mas o que importa agora? O fato é que um dia aconteceu.

            Um grupo de prisioneiros estava discutindo futebol, quando Amauri e Murilo passaram. Então, alguém perguntou ao Amauri por qual time ele torcia. Dizem até que ele ficou sem fala, olhou para Murilo procurando ajuda, mas nenhuma palavra saiu da boca do amigo.

            _ Vas... co.

            A voz saiu quase muda, mas foi o suficiente para puxar uma discussão sobre futebol entre Murilo e Amauri. O tom começou  amigável, até se tornar digno de briga em feira. Os dois nunca mais trocaram uma única palavra. Amauri foi para outra cela no mesmo dia. E na primeira oportunidade que estive com Murilo, este me confidenciou:

            _ Carlos, meu amigo, nunca vi alguém mais burro que aquele Amauri. O cara é uma verdadeira besta! Ô, sujeitinho burro!

Aposentadoria de um policial

            Quarenta a nove anos! Essa era a idade do detetive Celso em outubro de 1999, quando se aposentou depois de 30 anos na Polícia Civil do Rio de Janeiro. Descanso mais que merecido para um homem que durante todo esse tempo lutou contra a criminalidade. Hora de vestir um roupão e calçar um par de chinelo. Não para o detetive Celso, que estava envolvido até o último fio de cabelo na busca da solução do meu caso.

            Celso vendeu o imóvel que tinha na rua Conde de Bonfim, na Tijuca (bairro da Zona Norte do Rio). Com o dinheiro, comprou um apartamento em Guarapari, onde sua família estava morando desde o atentado que sofrera. Ele continuou no Rio, mas sem endereço fixo. Sempre estava se mudando para proteger a própria vida.

            Dois dias depois de se aposentar, o detetive Celso se encontrou com Dr. Basílio e o jornalista João.

            _ Meus amigos, agora terei mais tempo para me dedicar ao caso do Carlos Cesario. Não vou me mudar pra Guarapari, onde estão os meus. Não posso expô-los a tal risco. Além do mais, não conseguiria viver longe do Rio.

            _ Mas e a sua esposa... os filhos?

            _ João, meu casamento está em crise há algum tempo. Sinto falta das crianças, mas meu casamento acabou.

            _ Sinto muito.

            _ Não... Estou bem. Não estou brigado com a mãe dos meus filhos. Eu e a Solange ainda somos amigos, mas não nos amamos mais. É só isso.

            O detetive Celso vinha empurrando o casamento com a barriga há algum tempo. No entanto, era muito ligado aos filhos (Nelson e Márcia Regina). A ausência deles o machucava de tal maneira, que seus olhos marejavam toda vez que eles o mencionava.

* * * * *

            Os três mosqueteiros avançavam nas investigações. Dr. Basílio ficou sabendo que o juiz Nicolau Santos Gouveia havia viajado para os Estados Unidos. Na mesma época, o senador Camilo Pessoa também viajou para lá. O detetive Celso soube por um colega da Polícia Federal, Daniel Marchi, que investigava a vida do bicheiro Sábato Maria, que este viajou para Nova Iorque no mesmo dia que o juiz Nicolau. Coincidência? Desculpe, mas não sou muito chegado a coincidências... e há muito deixei de escrever cartinhas para o Papai Noel.

Um fio de esperança

            Nos últimos dias de outubro de 1999 recebi uma notícia do Dr. Basílio que encheu meu coração de esperança.

            _ Carlos, hoje conversei com o juiz Álvaro de Oliveira Pinto. Ele me garantiu que vai analisar o seu caso com carinho e, se verificar alguma irregularidade, pedirá a reabertura do processo.

            _ Pulei de alegria! Finalmente as coisas começavam a andar!

            _ E quando ele ficou de dar uma resposta?

            _ Bem, o Dr. Álvaro é um homem extremamente ocupado... Mas acredito que em no máximo duas semanas ele já terá um parecer.

            _ E o senhor acha o quê?

            _ Estou confiante, Carlos. Penso que o parecer nos será favorável. Mas não vamos contar com a vitória antes do tempo.

            _ Claro... O senhor tem razão. Já estou cansado de esperar por alguma coisa, qualquer coisa, que me ponha pra fora daqui.

            _ Não vou dizer que sei como você se sente, pois nunca passei por algo parecido. Apenas imagino, apenas imagino... Mas, Carlos, você tem de ser forte! Pense na sua esposa, nas suas filhas... Você tem de cuidar delas... Não vá fazer besteira!

            _ É duro pagar por uma coisa que a gente não fez, doutor.

            _ Força, Carlos! Força!!!

* * * * *

            Um novo julgamento! Dessa vez tudo seria diferente, pensei. Se o juiz Álvaro de Oliveira Pinto achasse que meu caso devesse ser aberto, tudo seria diferente. Eu, Carlos Cesario, seria declarado inocente de todas as acusações! O senador Camilo Pessoa de Alcântara seria desmascarado! Justiça!!!

            O meu humor mudou a cada instante por exatos 17 dias. Esse foi o tempo que o juiz Álvaro levou para dar o seu parecer a respeito do meu processo. Dr. Basílio veio me contar.

            _ Carlos, o Dr. Álvaro analisou o seu caso e eu parecer favorável. Favorável em parte.

            _ Favorável em parte? Mas o que significa favorável em parte?

            _ Bem, ele vai pedir a reabertura do seu processo na questão do tráfico de entorpecentes. Quanto à questão do filho do senador Camilo Pessoa de Alcântara... Bem, ele disse que não podia fazer coisa alguma.

            _ Nada? Aquele filho da puta estupra a minha mulher, e esse juiz vem com essa história de não pode fazer coisa alguma?!

            _ Carlos, vamos nos concentrar no que nós conseguimos. Depois nos concentrar no que nós conseguimos. Depois vamos tentar nova reabertura do caso do filho do senador. Além do mais, o detetive Celso e o jornalista João estão fazendo o possível para nos ajudar. Vamos tentar manter a calma.

            Por mais que o meu advogado tentasse me convencer de que tínhamos dado um passo importante, eu não me conformava com a decisão do juiz Álvaro de Oliveira Pinto. Seja como for, esse juiz pediu a reabertura do meu processo na questão do tráfico de drogas na semana seguinte.

Um quarto mosqueteiro

            A história de Daniel Marchi talvez seja muito diferente da de outros tiras. Fã de filmes policiais, sua figura me faz lembrar a de um detetive muito famoso para os que curtiram o seriado de televisão Columbus nos anos 70.

            Columbus fazia o típico policial meio burro, técnica que deixava os criminosos despreocupados com a sua presença. Pensavam os bandidos: “Columbus é tão estúpido que não consegue enxergar um elefante pintado de vermelho com bolinhas azuis a um metro de distância”. Ledo engano, pois ele era mais esperto que uma raposa velha! Na Polícia Federal desde 1990, quando ainda contava com 20 anos, Daniel logo se destacou entre os calouros, ganhando a confiança, admiração e o respeito dos policiais mais tarimbados.

            Durante a Eco-92 (evento que reuniu líderes de diversas nações na cidade do Rio de Janeiro), conheceu o detetive Celso, do qual se tornou grande amigo. Juntos, apesar de serem corporações diferentes (Celso era da Polícia Civil do Rio de Janeiro; Daniel, da Polícia Federal), desvendaram alguns crimes e efetuaram prisões importantes como, por exemplo, a do terrorista internacional Jan Pablo Martínez, procurado pela Interpol (Organização Internacional de Polícia Criminal) desde a década de 70. Martínez estava passando uma temporada em Arraial do Cabo (município do estado do Rio de Janeiro famoso por suas belas praias). Graças à ação conjunta de Celso e Daniel, o terrorista agora está passando uma longa temporada atrás das grades.

            Daniel soube do meu caso através de Celso. A partir daí, passou a perseguir qualquer pita que pudesse levar à minha liberdade. Segundo suas investigações, muitos interesses estavam em jogo com a minha condenação. Interesses muito maiores do que Dr. Basílio e eu havíamos cogitado.

            Apesar de até então não ter feito parte das reuniões dos três mosqueteiros, Daniel, com certeza, já era considerado uma espécie de Dartangnan. Estava a par de tudo que ocorria nos encontros de Celso, João e Dr. Basílio. E a cada dia estava mais envolvido com o meu caso, sem mesmo nunca termos nos encontrado até aquele momento. Só mais tarde isso viria a acontecer.

 

 

 

Mais que um fio de esperança

            O calor estava insuportável naquele dia de abril de 2000. Dr. Basílio veio me dizer que o juiz Álvaro havia conseguido a reabertura do meu processo. O novo julgamento deveria ser marcado para o segundo semestre.

            _ Carlos, em se tratando de justiça, temos de levantar as mãos pro céu, pois tudo está indo numa velocidade admirável.

            _ Dr. Basílio, não quero parecer irônico, mas não acho que essa velocidade seja satisfatória. O tempo aqui demora muito a passar. Um dia aqui dentro leva uma eternidade.

            _ Entendo... Mas como lhe disse, Carlos... Você tem de ser forte, não pode se deixar abater. Nunca lhe disse que as coisas seriam fáceis.

            _ Eu sei disso, doutor, mas...

            _ E as coisas poderiam estar muito piores. E se você não tivesse curso superior? Imagine você tendo de dividir uma cela com 20, 30 detentos... E olha que você já foi condenado, ou seja, pela lei você deveria estar em uma penitenciária comum. A sorte é que estou conseguindo mantê-lo aqui com a alegação de que você correria perigo de vida em outro local, já que seu caso ganhou notoriedade nacional.

            _ Já pensei nisso, doutor...

            _ Vamos ter paciência. Tudo vai ser resolvido. Temos amigos que estão nos ajudando. Inclusive, estamos contando com a colaboração de um jovem da Polícia Federal. É um rapaz brilhante, amigo do detetive Celso.

            _ E no que ele pode ajudar?

            _ Bem, os policiais gostam de manter em sigilo suas investigações... Penso que o amigo do detetive Celso esteja atrás de fatos mais contundentes pra, então, expô-los.

            _ E enquanto isso fico apodrecendo nesta cela.

            _ Calma, meu rapaz! Tenha calma! Tudo ao seu tempo, tudo ao seu tempo.

            _ Sei...

            Já ouvi alguns jogadores de futebol dizendo que ficam mais tensos quando, por algum motivo, não estão dentro de campo para ajudar o time. Era mais ou menos assim que me sentia na prisão. Dá a impressão de que as coisas só funcionam com a gente em ação. E o tempo demora uma eternidade para passar! Eu precisava fazer algo!

Um senador americano em solo brasileiro

            Harvey Grooters desembarcou no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, o Galeão, em julho de 2000. Foi recebido com honras de chefe de Estado. Afinal, não é todo dia que um país recebe a visita de um senador dos Estados Unidos da América.

            O senador americano havia sido convidado pelo senador Camilo Pessoa de Alcântara a fim de ministrar uma palestra sobre direitos humanos, que seria realizada no hotel Copacabana Palace. Grooters não domina a nossa língua, mas fala fluentemente o espanhol. Entretanto, a palestra teria tradução simultânea.

Novo julgamento

            Minha mulher veio me trazer o jornal. Estampada na primeira página estava uma foto minha ladeada com uma do senador Camilo Pessoa de Alcântara. “Este país não é sério! Como alguém pode permitir que esse delinquente que assassinou a sangue frio meu filho Márcio vá a novo julgamento? Querem dar uma nova chance a um traficante de drogas. Drogas que matam milhões de jovens em todo o mundo! Absurdo! Infame!”, eram as palavras do senador estampadas na chamada da matéria. O novo julgamento havia sido marcado para o dia 5 de outubro de 2000, uma quinta-feira. Meu advogado chegou um pouco antes de Elaine se despedir de mim.

            _ Carlos, não há prova que justifique a sua condenação. No entanto, devo lembrá-lo de que estamos enfrentando gente poderosa.

            _ Sei disso tudo, doutor. Mas e as nossas chances? São boas?

            _ Bem, existe uma grande pressão política para a confirmação do veredicto. Também tem a pressão popular... Diria que as nossas chances são bem razoáveis se o tribunal se ativer apenas aos fatos do processo.

            _ O senhor está me falando que todos, juiz, promotor... Todos sabem que sou inocente, mas estão com medo de me absolver?

            _ A situação é mais ou menos essa. Ninguém quer se comprometer num caso tão delicado. Inclusive soube pelo meu colega Tadeu Bittencourt Dantas que dois promotores e um juiz se negaram a trabalhar no seu julgamento.

            _ Em outras palavras: tá todo mundo tirando o seu da reta!

            _ É por aí.

* * * * *

            O julgamento foi totalmente diferente do primeiro. Ou quase...

            Meu advogado esteve brilhante. Não deixou, por um minuto sequer, a peteca cair. O advogado de acusação, por sua vez, parecia mais perdido que cego em tiroteio. Felipe Augusto Gurgel, há dois anos como promotor público, não dizia coisa com coisa. Tentava se prender às matérias jornalísticas que trataram do meu caso. Dr. Basílio, perfeito em sua ironia, perguntou se ele também havia tido tempo de ler os autos do processo, pois, pelo que estava parecendo, ficara muito tempo lendo jornal. Talvez até soubesse de cor e salteado alguma tirinha de quadrinhos interessante para contar para os presentes. Claramente nervoso, Gurgel gaguejava a cada ataque do Dr. Basílio. A plateia presente chegou a esboçar uma gargalhada, mas logo foi contida pelo severo martelo do juiz Décio Magalhães.

            _ Silêncio no tribunal!!! Se houver mais alguma manifestação, o julgamento será fechado ao público!

            O silêncio foi instantâneo. Dava até para ouvir o zumbido de uma mosca que teimava em assistir àquele circo.

            Não havia prova alguma contra mim. O que a defesa tinha era a palavra de um traficante de drogas condenado a 18 anos de prisão: Antonio Costa, vulgo Libélula. Ele havia testemunhado contra mim no julgamento anterior. A outra testemunha do primeiro julgamento não participou. E o motivo era justificável: José Carlos da Silva, vulgo Preto, fora assassinado em Bangu I dois meses antes.

            O julgamento foi muito mais longo que o primeiro. Levou mais de 15 horas, entre intervalos para almoço, lanche etc e tal. Ao final, o juiz Décio Magalhães bateu seu martelo e disse:

            _ Em vista dos autos, o réu Carlos Cesario foi considerado culpado. A sentença, no entanto, foi reduzida para 13 anos e 11 meses. Tendo o réu já cumprido parte da pena, cumprirá o restante em regime fechado...

            Minha condenação anterior havia sido de 30 anos pelos assassinatos do senador Camilo Pessoa de Alcântara e do menor Roberto Carlos dos Santos, 15 anos pelo tráfico de drogas, além de vários outros crimes, o que dava uma soma de 87 anos de prisão. Agora, no entanto, eu teria a pena reduzida em um ano e um mês. Era uma piada! Aliás, mais uma piada que o sistema sob o comando do senador Camilo Pessoa de Alcântara estava pregando em mim. Minha revolta foi tamanha que chamei o juiz e o promotor de covardes, capachos do senador Camilo Pessoa de Alcântara. Minha indignação não era tanto pelo mísero tempo que reduziram de minha pena. Que diferença faz ser condenado a 87 anos ou 85 anos e 11 meses? Que fossem 500 ou 1000 anos! Não haveria diferença alguma. Estava revoltado com a falta de hombridade de um bando de capachos do poder político e econômico. Capachos que não pensaram no mal que estavam fazendo a um homem inocente, mesmo não tendo uma única prova que fosse para condená-lo. Capachos!!! Mil vezes capachos!!!

De volta à realidade

            Cheguei ao presídio menos de uma hora após o juiz ter proferido a sentença. Meu colega de cela estava me aguardando, queria saber como havia sido meu julgamento. Contei-lhe tudo.

            Voltar à minha cela não foi o pior. Eu já sabia que iria voltar, pois, mesmo se fosse considerado inocente da acusação de tráfico de drogas, ainda havia a questão das condenações pelos assassinatos daqueles dois canalhas. O pior de tudo foi ter a certeza de que não seria através de um novo julgamento que todo esse pesadelo acabaria. Não, não seria com essa justiça que eu conseguiria voltar a ser um homem livre. Tive nojo de todo o sistema judiciário, de todos cretinos engravatados que jogam com a vida do povo. Pela primeira vez na vida eu me sentia realmente do povo. Eu, Carlos Cesario, que sempre me considerei um privilegiado por nunca ter passado fome neste país, nunca ter tido grandes problemas financeiros, ter tido a oportunidade de estudar em boas escolas, ter chegado a me formar numa universidade pública, agora me sentia realmente do povo. Sim, eu finalmente percebi que também fazia parte do povo. Povo! Era apenas uma peça manipulável e, pior, descartável de um jogo sujo de interesses.

* * * * *

            No dia seguinte à minha nova condenação, recebi a visita do Dr. Basílio.

            _ Como você está, Carlos?

            _ ...

            Eu estava com raiva, muita raiva. Não era raiva do meu advogado, que havia realizado um excelente trabalho. Só que eu continuava preso, condenado pela segunda vez por um crime que não havia cometido. Traficante de drogas! Era nisso que a sociedade acreditava. Acreditava mesmo? Lixo, era isso que eu era para essa mesma sociedade. E lixo tem de ser jogado na lixeira. O presídio é a grande lixeira da sociedade! Lixo!!!

            _ Acabou!

            _ O que acabou, Carlos?

            _ Tudo! Nada mais importa! Não dá pra jogar sem roubar. Estamos num jogo de cartas marcadas.

            _ Não estou entendendo...

            _ ... Agora não é mais com o senhor. Tenho de tomar as rédeas da situação!

            _ O que você está pensando em fazer, Carlos?

            _ Doutor, eu só tenho a lhe agradecer pelo que o senhor tem feito por mim. Só que agora a situação é outra. Sei que não terei a chance de ter a minha vida de volta. Por mais que o senhor tente, sempre bateremos com a cara no muro... no muro da injustiça, da corrupção.

            _ Carlos, não pense em fazer besteira!

            _ Besteira? Que besteira? Eles me tiraram tudo o que eu tinha... Minhas filhas mal me conhecem, mas vejo minha mulher. Que vida eu tenho tido nesses últimos três anos?

            _ Meu filho, peço apenas um pouco mais de tempo pra...

            _ Tempo? Mais quanto tempo? Três anos? Trinta anos? É, tempo é o que não me falta! Tenho 80 anos pra cumprir! Oitenta anos por defender a minha família de dois filhos das putas! Oitenta anos!

            Doutor Basílio apenas me olhava enquanto eu descarregava toda a minha raiva. A impotência em seu olhar só aumentava a minha dor, pois era o mesmo olhar que minha pequena Patrícia tinha quando estávamos presos no banheiro do meu apartamento, enquanto aqueles dois canalhas estupravam minha mulher. E eu sabia que nem o melhor advogado do mundo conseguiria me tirar daquela situação.

Minha mulher

            Elaine veio me visitar...

            _ Meu amor, o Dr. Basílio está preocupado com você. O que está havendo?

            _ Elaine, já estou preso há mais de três anos. Se houver outro julgamento, o que acho difícil, será daqui a muito tempo. Talvez dois, três anos... Não sei... Talvez nunca haja outro julgamento. Não aguento mais ficar preso! Se eu ficar aqui mais tempo vou enlouquecer!

            _ Carlos, temos de pensar nas nossas filhas...

            _ Não penso em outra coisa! Mas o que adianta eu ficar aqui preso, vendo-as a cada sete dias por uma hora? E quando elas descobrirem que o pai delas é um presidiário, um condenado? O que elas irão dizer?

            _ Elas vão acreditar em você! Elas são nosso tesouro! Você tem de ser forte, meu amor!

            _ Elaine... eu vou fugir!

            _ Fugir? Fugir pra onde? Você está arrumando motivo pra ser morto?

            _ Você pode falar o que quiser. Não vou mudar de opinião. Se me matarem, pelo menos estarei buscando minha liberdade!

            _ Isso é loucura!

            _ Loucura? Loucura é eu ficar aqui sentado esperando que a justiça se encarregue do meu destino. Loucura é eu ainda querer acreditar que existe justiça neste país. Loucura é eu perder os melhores anos da minha vida atrás das grades.

            _ Carlos, eu te amo!

            _ Eu também te amo, meu amor! Nunca duvidei disso... Mas não dá mais pra viver neste inferno.

            _ E pra onde você pensa em ir, caso consiga escapar?

            _ Ainda não pensei nisso. Talvez pro Paraguai. Não sei, não entendo de fugas. Mas qualquer lugar é melhor do que aqui.

            _ E Patrícia, e Carlinha... e nós?

            _ Eu darei um jeito.

            _ Que jeito?

            _ Não sei... Primeiro tenho de escapar deste inferno! Depois... Depois vejo um jeito de ver vocês. Não sei, Elaine... Não sei! Preciso pensar primeiro num plano de fuga!

            _ Meu amor, tenho tanto medo!

            _ Eu também...

            Elaine me abraçou e chorou. Chorou como há muito não chorava. Depois se despediu. Durante esses últimos três anos ela tinha sido extremamente forte. Nunca pensei que minha mulher fosse tão forte assim. Quem a vê não imagina que por trás dessa mulher de aparência frágil se esconde uma verdadeira fortaleza.

 

 

 

Plano de fuga

            Minha mente estava totalmente voltada para a fuga. Mas como escapara de um presídio? Era uma situação totalmente nova para mim. Já havia visto a alguns filmes onde os detentos escapavam... No entanto, filme é uma coisa, a realidade é completamente diferente.

            Meu plano teria de incluir não só transpor os muros do presídio. Deveria conter um roteiro de fuga. Não poderia deixar de pensar num plano B e, também, num C. Talvez até mesmo num D. Isso para o caso do plano A falhar. Caso eu fosse pego, minha pena poderia aumentar? Mas e daí? Qual a diferença de ser condenado a 80, 90, 100, 1000 anos? Com certeza a vigilância também passaria a ser muito mais rigorosa. Não me importava com isso. Será que iriam me colocar na solitária? Seria torturado? Já havia presenciado tortura durante o meu período na delegacia. Todas essas coisas inundavam minha mente.

            Quais os obstáculos que eu deveria transpor? Havia grades... As grades da minha cela, depois as grades do galpão... Como transpor isso? Além disso teria a guarda. Os guardas sempre andavam armados. Eu seria um alvo fácil para eles. Depois teria o muro de mais de seis metros de altura... além dos rolos de arame farpado encima dele. Nos filmes tudo parece tão mais fácil!

            Um túnel!!! Por que não construir um túnel??? Não, eu estava só nessa empreitada. Ninguém se arriscaria a fugir comigo. A pena mais longa depois da minha era a do meu colega de cela, Nery. Ele poderia ficar em liberdade condicional dentro de três anos, já que teria cumprido um sexto da pena. Não, eu realmente estava só! Ninguém poderia saber do meu plano. Ninguém! O túnel foi descartado! Levaria 80 anos até terminar um túnel que me colocasse além dos muros do presídio.

            Precisava simplificar as coisas... Pular etapas... Se a fuga se desse durante as duas horas de recreação, não teria de me preocupar com as grades. Duas etapas a menos para transpor. Mas também não teria a vantagem da escuridão da noite. As fugas das prisões nos filmes sempre ocorrem à noite! Filmes, vida real... Decidi que fugiria durante o horário da recreação. Mas como fugir à luz do dia? Tanta gente olhando, vigiando... Não era a mesma coisa que sair de uma festa à francesa.

            Éramos 287 detentos, 18 guardas divididos em três turnos, o chefe da guarda e seu suplente, além do diretor do presídio. Trezentos e oito pessoas! Durante o período de recreação, havia seis guardas, o chefe da guarda ou o seu suplente e o diretor do presídio, que quase nunca saía da sua sala. Duzentas e noventa e cinco pessoas! Duzentas e noventa e quatro, já que não estaria contando comigo. Eu teria de me preocupar apenas com os guardas e o chefe. Sete pessoas! Sim, sete pessoas andavam armadas durante as duas horas de recreação. Sete é número de mentiroso! Sete! Sete é o número da camisa mais famosa do meu time do coração, o Botafogo. É a camisa de Garrincha, o anjo das pernas tortas, o demônio da Copa de 62! Sete! Sete são as cores do arco-íris! Sete! Sete são os pecados capitais! Sete! Deus fez o mundo em sete dias... Ou melhor, em seis... No sétimo Ele descansou.

            E se eu subornasse alguém? Mas quem? Como eu saberia se a pessoa seria confiável? Em todo caso, passei a conversar mais com os guardas. Perguntava sobre a vida deles, onde moravam, se eram casados... Fiquei atento a qualquer gesto ou palavra dos guardas. Algum deles poderia me dar um sinal de que estaria disposto a querer me ajudar em troca de uma gratificação. Quanto seria necessário para subornar um carcereiro? Mil reais? Dois mil? Cinco mil? Bastaria subornar um guarda? E se eu fosse direto ao chefe da guarda? Foi o que comecei a fazer no início de 2000. No entanto, logo percebi que seria muito difícil corrompê-lo. Então, passei a sondar o seu suplente, Djalma Coelho.

* * * * *

            Natural de Campina Grande – PB, mesma cidade do finado seu José, ex-porteiro do meu edifício, Djalma é um moreno de uns 40 anos, quase 1,80m de altura, uns 100 quilos. Ele mora no morro Chapéu Mangueira, no Leme, bairro da Zona Sul carioca, casado pela segunda vez e tem quatro filhos, todos pequenos. A esposa não trabalha fora, pois tem de ficar tomando conta da sogra, mãe de Djalma, que vive presa a uma cama por causa de problemas de saúde. Ela perdeu uma das vistas e mal consegue enxergar com a outra, além de ter tido uma das pernas amputada, tudo consequência da diabete. O salário de Djalma mal dá para o sustento da família. Por isso, ele sempre fez uns bicos para sobreviver. Eu havia achado a pessoa ideal para tentar subornar. Subornar é uma palavra muito forte. Prefiro usar ajuda de custo em troca do meu passaporte para a liberdade.

            Não foi difícil me aproximar de Djalma. Ele é um sujeito bastante comunicativo, apesar da aparência de poucos amigos. Gosta muito de músicas de dor de cotovelo, sendo o cantor Bartô Galeno seu artista preferido. Comprei-lhe até um disco desse cantor, um long play – LP – que contém um grande sucesso que é mais ou menos assim: “No toca-fita do meu carro uma canção me faz lembrar você, acendo logo um cigarro e procuro te esquecer...”. Não me lembro do resto, mesmo porque nunca fui muito ligado à música. Minha mulher, por outro lado, adora, principalmente as músicas do cantor Zé Geraldo. Sua canção favorita é Senhorita (“Minha meiga senhorita, eu nunca pude lhe dizer, você jamais me perguntou de onde eu venho e pra onde eu vou...”).

            _ A sua mãe piorou, Djalma?

            _ Ah, o doutor disse que ela tem que tomar uns remédios... Mas tá tudo caro! Pobre num pode ficar doente.

            _ E quanto custa esses remédios?

            _ Ah, é muito caro, Carlos. Não vai dar pra comprar...

            _ Quanto é, homem?

            _ Cento e oitenta reais...

            _ Não se preocupe, meu amigo. Amanhã você terá esse dinheiro.

            Telefonei para Elaine e lhe pedi que me trouxesse R$ 200,00. E assim fui conquistando a amizade do Djalma. Só lhe pedi que essas coisas ficassem entre nós.

            _ Carlos, mas aqui tem mais dinheiro...

            _ Fique com tudo. A gente nunca sabe quando vai precisar...

            _ Muito obrigado, Carlos. Que Deus abençoe voe e toda a sua família.

            Os dias foram passando... Djalma e eu estreitamos relações. Sempre perguntava pela sua mãe.

            _ E a dona Severina, Djalma?

            _ Ah, Carlos, graças a Deus e a você, ela está melhorando muito. Ela pediu pra lhe agradecer.

            _ Não precisa... Fiz isso pela nossa amizade.

            Mais um ponto a meu favor! Djalma já não passava um dia sequer sem que viesse a mim para trocarmos algumas palavras. Mas nunca ficávamos muito tempo juntos, mesmo porque alguém poderia notar.

            Foi no início de dezembro que fiz a proposta a Djalma. Minha fuga por uma boa quantia em dinheiro. A princípio ofereci R$ 3.000,00. Ele ficou bastante irritado.

            _ Carlos, pensei que fôssemos amigos!

            _ Mas somos, Djalma. Só que não aguento mais ter de pagar por algo que não fiz. Puxa, não é justo!

            _ Por favor, não me procure mais pra falar sobre esse assunto. Só não vou contar ao diretor em consideração ao que você fez por minha mãe.

            Virou as costas e saiu furioso. Fiquei completamente desolado. Como conseguiria escapar sem a ajuda de alguém? Comecei a pensar em outro plano. Mas que plano? Não sou bandido, sou médico veterinário. O que sei é cuidar de animais, não sei fugir de prisões!

* * * * *

            Dois dias depois da proposta que fiz a Djalma, ele veio falar comigo.

            _ Carlos, pensei muito sobre o que você me disse. Sabe, não sou desonesto, nunca roubei...

            _ ... – apenas concordei com um sinal de cabeça.

            _ Olha, ganho muito pouco como agente penitenciário. Quase não dá pro sustento da minha família. Ainda tem a minha mãe... Como você sabe, ela é uma senhora doente... Quanto é mesmo que você disse que me daria... caso eu o ajudasse?

            _ Três mil reais.

            _ Três mil reais? Não sei se vale a pena...

            _ Posso arrumar R$ 5.000,00!

            _ Cinco mil? É... Já tá começando a valer mais a pena...

            _ Quanto você quer, Djalma?

            _ Não sei, o senhor pode arrumar quanto?

            Eu sabia que ele estava me testando, queria ter uma ideia de até quanto eu poderia arrumar. Mas ele estava com a faca e o queijo nas mãos.

            _ Djalma, talvez consiga arrumar R$ 6.000,00.

            _ Arrume R$ 10.000,00 e poderemos conversar!

            Dez mil reais! Pois foi essa a quantia que o carcereiro me pediu para pactuar com minha fuga. Não tinha certeza de que conseguiria arrumar tanto dinheiro. Até mesmo R$ 5.000,00 seria muito dinheiro.

* * * * *

            Na primeira oportunidade que tive de falar pessoalmente com Elaine, contei-lhe todos os detalhes da minha conversa com Djalma.

            _ Mas, Carlos, esse homem está te explorando! E quem garante que ele não vai traí-lo e ainda ficar com o dinheiro? Além do mais é muito arriscado!

            _ Elaine, já conversamos sobre isso. Não quero passar o resto da minha vida aqui dentro. Se puder me arrumar o dinheiro, tudo bem. Mas não me venha mais com essa história de que estou me precipitando...

            _ Meu amor, estou com medo! E se alguma coisa acontecer a você?

            _ Também tenho medo, Elaine. Mas não dá pra ficar aqui esperando que algum dia alguém veja a injustiça que fizeram comigo. Quanto vai ser isso? Quando eu estiver com 80 anos?

            _ Eu te amo tanto, meu amor...

            _ Também te amo. É muito duro ter de pagar por algo que não se fez, ter de ficar longe da família, das meninas, de você... Tudo é muito difícil. Você entende o que estou falando?

            _ Sim... Não sei se temos todo esse dinheiro... Posso pedir um empréstimo no banco... Posso falar com meus pais... Com a sua mãe...

            _ Mas não conte a eles sobre a minha fuga. Tenho certeza de que todos serão contra.

            _ Está bem, meu amor. Me dê alguns dias pra ver se arrumo o dinheiro.

            _ Se você não conseguir todo o dinheiro, peça ao Bernardo.

            _ Está bem...

            Ela estava tão linda, nos abraçamos e fizemos amor... Amor tão gostoso como há muito não fazíamos. Depois ela se despediu com um longo beijo.

* * * * *

            Dois dias depois minha mulher me telefonou.

            _ Meu amor, tenho dez mil razões pra sempre te amar!

            Ela havia conseguido o dinheiro!!! Pulei de alegria!!!

            _ Também te amo, meu amor! Também te amo!!!

            Um guarda olhou para mim espantado por causa de tamanha felicidade estampada no meu rosto.

            _ O que foi? Ganhou na loteria?

            _ Melhor, muito melhor! Minha mulher me ama! Me ama muito!!!

            Ele ficou sem entender. Melhor para mim.

* * * * *

            Assim que avistei Djalma, lhe disse que havia conseguido o dinheiro.

            _ Dez mil?

            _ Dez mil! E podem ser todinhos seus... se me ajudar a escapulir desta gaiola. Sou como um passarinho, não gosto de ficar preso.

            Djalma me contou que o meio mais fácil (ou melhor, menos difícil) para fugir seria através da enfermaria. Eu teria de arrumar um jeito de ir para lá. Mas como? Fingir que estava passando mal? Bem, isso talvez não fosse muito difícil. Da enfermaria para a liberdade eu teria de passar por duas portas e pelo portão principal. Duas portas, a do quarto onde eu estaria e a da entrada da enfermaria. Na enfermaria sempre ficava um guarda na porta de entrada quando havia algum prisioneiro sendo atendido. No portão principal também teria mais um guarda. E havia o guarda na torre, que ficava na ala esquerda do presídio. Os outros três guardas não me atrapalhariam, pois ficavam em outros setores do presídio. Djalma colocaria sonífero no café dos três guardas (o da enfermaria, o da torre e o do portão principal). A fuga teria de ser à noite. O Natal seria uma ótima data!

            _ Se o sonífero não funcionar... – Djalma me entregou uma faca.

            _ Não sou assassino!

            _ Mas já matou... E não foi apenas uma vez!

            Em todo caso, fiquei torcendo para que o sonífero fizesse efeito.

            Djalma disse que só me ajudaria a sair do presídio. Assim que eu estivesse na rua, era por minha conta. E se eu fosse pego, ele não poderia fazer coisa alguma. Não tive outra escolha a não ser concordar. E o dinheiro seria cortado! Aprendi isso lendo Papillon, um ótimo livro que conta a saga de Henri Charriere. Todas as notas foram partidas ao meio. Metade ficou com Djalma; a outra, com Elaine. Se Djalma me traísse, de nada valeriam as metades das notas que ficariam em seu poder.

            Eu não tinha um plano B nem um C... muito menos um plano D. Teria de apostar todas as minhas fichas no plano A. Depois de sair do presídio, me dirigiria para Japeri ou qualquer local distante do centro nervoso da cidade.

            Natal! Nunca havia desejado tanto que um Natal chegasse logo. Nem no meu tempo de criança, louco de desejo por um presente do Bom Velhinho.

Os dias seguintes

            Os dias seguintes foram os mais tensos até então. Não conseguia deixar de pensar na minha fuga um minuto sequer. Fugir! Fugir! Fugir! Era só nisso que eu pensava.

            O que havia mudado durante o período em que estivera preso? Carlinha nem havia nascido quando fui detido e, agora, já estava com quase três anos, a mesma idade que Patrícia tinha naquela época. No mês seguinte, minha filha mais velha estaria completando sete anos. Sete! Sim, o mesmo sete que certa ocasião tanto teimara em martelar a minha mente. Elaine estava com 23 na época da minha prisão, agora tinha 26. Eu, 25 anos, já que nasci no dia 9 de outubro de 1971. Estava agora com 29. Minha mãe ainda não completara 50, mas sua aparência era a de pelo  menos 10 anos a mais. Pobre dona Stella, não suportava ver seu único filho atrás das grades, injustiçado. Nem as netas tão queridas conseguiram aplacar o mal que os interesses do senador Camilo Pessoa de Alcântara estavam fazendo ao seu filho tão amado. De todas as pessoas, minha mãe foi a que mais sentiu a desgraça que me acontecera. Ela, que sempre foi uma mulher de alto astral, sorridente, otimista, caíra numa depressão que parecia não ter fim. Até seu Francisco, o homem que conseguira devolver-lhe a alegria no coração após a morte de meu pai, não estava tendo o mesmo sucesso. Ah, mamãe, quanto sofrimento!

            Fernando Henrique Cardoso continuava Presidente, César Maia era eleito novamente prefeito do Rio depois de um mandato de Luiz Paulo Conde. O Campeonato Brasileiro de Futebol não havia acabado, e muitos atribuíram o fato ao juiz Oscar Roberto Godói e ao então deputado federal e dirigente de futebol Eurico Miranda. A final entre os times do Vasco da Gama e do São Caetano (Que time era esse? Nunca tinha ouvido falar!) não havia acabado, já que o alambrado do estádio São Januário caíra em virtude da superlotação. Final do Campeonato Brasileiro em São Januário? É... Comecei a pensar que eu estava ocupando o lugar não só do senador Camilo Pessoa de Alcântara, mas de muita gente que deveria estar presa.

Natal de 2000

            Estava  no bondinho do Pão de Açúcar. Estava só... Aliás, havia um mendigo deitado num dos cantos do bondinho. Ele estava enrolado em um monte de jornais velhos. Cheguei mais perto para ver seu rosto, que estava virado para a parede de vidro. Ele soltava pequenos grunhidos, grunhidos que me irritavam cada vez mais. Vi uma fotografia estampada num dos jornais. Era uma foto antiga, talvez não contasse com 10 anos ainda. Uma fotografia triste! Nunca Havia visto aquela fotografia, pelo menos não me lembrava dela. Havia um fundo cinza na foto. Tentei ler o que estava escrito ao lado da foto, as letras apareciam, sumiam, voltavam a aparecer... Surgiram nítidas à minha frente, mas logo desapareciam antes mesmo de eu conseguir lê-las, como numa brincadeira de criança.  Os grunhidos irritantes continuavam, agora em intervalos cada vez menores. Peguei o jornal que continha a minha foto e, para minha surpresa, as palavras haviam sumido de vez. A fotografia também foi perdendo a nitidez até o ponto de desaparecer por completo. Os grunhidos ficaram mais altos até estourarem numa enorme gargalhada digna de Vincent Price. O mendigo virou-se para mim... Era meu pai!

            Acordei com a adrenalina tomando conta de todo o meu corpo. Véspera de Natal! Seria o meu último dia naquela enorme gaiola de homens! Meu plano teria de dar certo, já que havia estudado cada detalhe como há muito não estudara, desde os tempos na Rural, quando tive de decorar cada forame dos ossos em Anatomia Animal I, os nomes científicos dos inúmeros seres em Parasitologia I e II... Não! Tudo sairia do jeito que havia planejado! Tudo! Minha confiança era tamanha que fiquei cego para os possíveis problemas que por ventura pudessem aparecer. Ninguém poderia me impedir de passar o Natal em liberdade. Livre!

* * * * *

            Durante o dia recebi a visita de meus familiares. Elaine estava muito nervosa, pois sabia que aquela noite seria o momento da minha fuga.

            _ Carlos, estou com tanto medo! E se alguma coisa acontecer a você? O que será da gente?

            _ Meu amor, já conversamos sobre isso. Vamos comemorar! Vamos comemorar! Tudo vai dar certo!

            Minha mãe estava particularmente abatida.

            _ Tenho tanta saudade dos Natais que passamos com seu pai. Você ficava sempre ansioso, não conseguia esperar dar meia-noite para abrir os presentes.

            _ Também tenho saudade, mamãe. Logo estarei em casa com a senhora comemorando os muitos Natais que ainda teremos pela frente.

            _ Eu rezo todos os dias para isso, meu Carluccio! Eu rezo todos os dias...

            Às 17h minha família foi embora. Como era véspera de Natal, o horário de visita fora estendido por mais uma hora. A última a se despedir foi minha mulher. Ela me abraçou tão forte, me fitou de forma tão doce e, ao mesmo tempo, confiante.

            _ Meu amor, você vai conseguir! E estaremos te esperando! Sempre!

* * * * *

            Assim que minha família foi embora, Djalma veio me contar que estava tudo preparado. Eu teria de simular um mal-estar às 22h30. Ele colocaria sonífero nas garrafas de café destinadas aos três guardas que deveriam dormir: o que ficava na porta da enfermaria, o da torre e o do portão principal.

            No horário marcado, chamei o guarda que estava fazendo a vigília no galpão. Em menos de cinco minutos ele atendeu o meu chamado.

            _ O que foi? O que você quer?

            _ Não estou passando bem. Acho que comi demais... Talvez a maionese...

            _ Hum...

            Desconfiado, por instante o guarda hesitou.

            _ Vou ver o que posso fazer.

            Quase meia hora depois entra na minha cela o enfermeiro de plantão. Ele me examinou e disse que bastavam alguns comprimidos para que eu melhorasse. Tentei argumentar, mas ele foi intransigente. Eu tinha de ir para a enfermaria e aquele idiota preferiu me deixar ali mesmo na cela. Fiquei desesperado! Comecei a passar mal de verdade, mas o incompetente do enfermeiro insistiu nos malditos comprimidos sem, ao menos, aferir minha pressão arterial.

            Comecei a me lembrar das garrafas de café com sonífero que Djalma havia providenciado. Se os três guardas dormissem, com certeza descobririam o meu plano de fuga. A vigilância sobre mim seria redobrada a partir de então. Acabei nem dormindo direito àquela noite. Não seria dessa vez que minha fuga se concretizaria. Diabos!!!

* * * * *

            No dia seguinte, durante o horário de recreação, Djalma veio falar comigo.

            _ Fiquei esperando você. O que houve?

            _ O cretino do enfermeiro não quis me levar pra enfermaria. Mas e o sonífero?

            _ Não se preocupe, estava esperando você entrar na enfermaria pra levar o café dos guardas. Só tive de jogar todo o café fora... e o sonífero foi junto. Tenho que comprar mais.

            Entendi o recado de Djalma. Acabei dando R$ 250,00 (um absurdo) para o meu cúmplice providenciar mais sonífero.

A fuga

            Eu teria de bolar algo mais convincente para que me levassem para a enfermaria. Teria de ser algo que não deixasse a menor dúvida de que realmente eu estava passando mal. Mas o quê? Pensei, pensei, pensei...

            Na primeira oportunidade que tive, pedi ao Djalma para me arrumar algumas coisas: sal de cozinha, sangue de mentira (que se compra em lojas de fantasias de terror) e Sonrisal.

            _ Pra que você quer essas coisas?

            _ Pra conseguir meu passaporte pra enfermaria!

            Eu iria misturar o sal com água e, então, beberia. Isso faria com que eu vomitasse. O ideal é usar água morna, mas seria difícil arrumá-la. Então, seria com a água que tinha no filtro de cela mesmo. Depois que eu vomitasse, colocaria o Sonrisal e o sangue de fantasia na boca, o que daria a impressão de que eu estava vomitando sangue. Grande ideia, pensei! Com certeza seria levado para enfermaria na mesma hora!

            O dia escolhido para a fuga foi 31 de dezembro de 2000. Último dia do ano, último dia do século, último dia do milênio. Pretendia ganhar as ruas durante essa passagem histórica! Liberdade! Liberdade! Liberdade! Era tudo no que pensava. Liberdade já virara uma obsessão!

* * * * *

            Na véspera da passagem para o Ano Novo, minha família voltou a me visitar. O diretor, mais uma vez, estendeu o horário de visita até as 17h.

            _ Desta vez vai dar certo!

            _ Tenha cuidado, meu amor. Estarei rezando pra que tudo dê certo.

            Elaine parecia mais confiante no meu plano. Ela havia arrumado um sítio de uma tia, irmã de sua mãe, em Itaipava, onde eu poderia me esconder por um tempo. Nós já havíamos ido nesse sítio quando ainda namorávamos.

            Minha mulher queria me levar até o sítio, mas a proibi. Não queria envolvê-la nisso. Eu daria um jeito de chegar lá.

            _ Mas como você vai chegar em Itaipava?

            _ Vou de ônibus! Vai ter tanta gente na rodoviária que serei apenas mais um na multidão.

            _ Não! É muito arriscado. Vou levá-lo de carro. Depois volto pro Rio e ninguém vai suspeitar de que o ajudei.

            _ Elaine, não seja boba! Não quero que você se meta nessa história. Se a pegarem comigo nunca irei me perdoar. Alguém tem de tomar conta das nossas meninas. E tem de ficar em liberdade pra fazer isso!

            _ Mas se você for de carro será muito mais seguro. Além do mais, em pouco tempo você estaria no sítio da minha tia.

            _ Não!!!

            _ ...

            _ Já sei! Você quer mesmo me ajudar? Então, estacione o carro na rua Riachuelo, logo depois do túnel Martins de Sá.

            _ Está bem. Mas e a chave do carro?

            _ Coloque-a atrás da roda dianteira do lado do motorista.

            Tudo combinado! Se eu conseguisse chegar até o carro, antes mesmo do amanhecer estaria no sítio da tia de Elaine. Depois alguém traria o carro de volta. A sorte estava lançada!

* * * * *

            Djalma passou diante da minha cela e me fez o sinal combinado (uma piscadela de olho) de que tudo estava pronto. Agora era a minha vez de agir. Esperei até as 22h30 e, então, preparei minha água com um bom punhado de sal, tomando o cuidado para o meu colega de cela não perceber. Nery estava assistindo a um filme na televisão.

            _ Carlos, você pode me dar um pouco d’água também?

            Peguei o copo d’água para o meu colega de cela. Bebi minha água salobra em goles longos. Fiz o possível para não cuspi-la, o gosto era horrível. Até virei as costas para que Nery não percebesse minhas caretas que, na certa, devo ter feito. Não demorou para eu começar a passar mal.

            _ Você está amarelo, amigo.

            Nery teve tempo apenas de desviar o corpo para que o conteúdo do meu estômago não caísse em cima dele. Vomitei todo o jantar: peru assado, salada de maionese, arroz à grega, farofa de torresmo e duas rabanadas.

            _ Guarda! Guarda! Guarda! – gritava Nery, enquanto eu colocava o Sonrisal sob a língua e, logo após, o sangue falso na boca. Assim que o carcereiro apareceu, me viu cuspindo toda aquela gosma vermelha e espumante. Ele saiu em disparada e, cinco minutos depois, voltou com o enfermeiro de plantão, o mesmo que me receitara alguns comprimidos na véspera de Natal. Sua cara estava mais branca que marquinha de biquíni. A cela foi aberta e, com a ajuda do guarda, o imbecil do enfermeiro me levou para a enfermaria, onde entrei às 22h55, segundo o relógio colocado numa das paredes.

            _ Tenho de voltar ao meu posto, além de chamar alguém pra ficar aqui na enfermaria, Jonas – disse o carcereiro.

            _ Só me ajude a colocar o prisioneiro aqui na cama – pediu o enfermeiro.

            Fui colocado na cama de um dos quartos. O guarda que fora chamado por Nery, então, voltou ao seu posto.

            O enfermeiro andava de um lado para outro sem saber muito o que fazer. Tentou ligar para o médico responsável pelo presídio, mas não conseguiu. Mexeu no armário de remédios, derrubou alguns vidros. Acabou me colocando para tomar soro fisiológico e outras medicações na veia.

            _ O que você comeu?

            _ Ah... Acho que exagerei no garfo.

            _ Comeu coisa pesada?

            _ Maionese... Acho que foi a maionese. Não, acho que foi a farofa de torresmo... Pensando bem, deve ter sido a rabanada...

            Fui tentando ganhar tempo. Segundo Djalma, o sonífero demorava mais ou menos meia hora para fazer efeito. Ele não soube me dizer a base usada ou o nome do sonífero (“_Mas é tiro e queda, Carlos! Não falha! O sujeito dorme que nem um anjinho por umas boas quatro, cinco horas!”). Não tinha escolha, a não ser confiar no meu cúmplice.

            O soro pingava lentamente... Cada gota que caía ia anunciando a chegada da hora de agir. Teria de me livrar do enfermeiro também. Não seria difícil, pensei, já que o sujeito não é grande. Pelo contrário, seu corpo pequeno e mirrado me fez lembrar do Canela, detento que conheci quando estive preso na delegacia. Os guardas, os guardas... Talvez fosse prudente pegar o jaleco do enfermeiro... Minha mente começou a ter mil ideias, algumas que poderiam levar minha fuga ao fracasso. Tentei apagar todas as ideias da minha mente. Iria me concentrar no Plano A, meu único plano! Depois de passar pelo enfermeiro, iria colocar o seu jaleco e, então olharia o guarda postado à porta da entrada da enfermaria. Se esse estivesse dormindo, observaria o guarda da torre. Caso este também estivesse sonhando com os anjos como Djalma me contara, caminharia em direção ao portão principal. Com certeza o guarda de lá também estaria dormindo, pensei. Mas e se o sonífero não funcionasse? Quase entrei em desespero. Calma! Era disso que eu precisava. Sempre mantive sangue frio até durante as cirurgias mais difíceis, mesmo nos primeiros tempos de Rural. Bernardo até brincava dizendo que meu nome deveria ser Carlos Ice-Cesario por causa da minha frieza.

            Os fogos de artifício anunciaram a chegada de 2001! Mais uma hora e, então, prosseguiria a operação fuga. Foram os 60 minutos mais longos de toda a minha vida. Os minutos que antecedem a partida! Os minutos que precedem uma prova difícil na faculdade! Todos os meus sentidos estavam se aflorando. Conseguia ouvir o tique-taque do relógio que avistara quando entrei na enfermaria. Tique-taque, tique-taque, tique-taque... Maldito barulho do relógio! Os pingos do soro fisiológico que iam entrando na minha veia e hidratando meu corpo já estavam dando adeus. Os cheiros do ambiente eram todos percebidos pelas minhas narinas: éter, álcool, clorofórmio, o desodorante vencido do enfermeiro...

            O enfermeiro retirou o soro fisiológico. Disse que iria deitar um pouco no sofá que ficava na recepção da enfermaria.

            _ Tente dormi um pouco. Mais tarde eu virei vê-lo.

            _ Tá bem... Obrigado por tudo – respondi.

            Ele fez um sinal com a cabeça e saiu. Dei um tempo, uns 20, 30 minutos e, então, me levantei, me aproximei da porta do quarto, abri uma pequena brecha e pude ver o enfermeiro roncando como um porco. Até parecia que ele havia tomado o café com sonífero. Olhei pela janela e vi a sentinela na cadeira ao lado da porta da enfermaria. Sua cabeça e seu corpo pendiam para frente como uma vara de pescar quando fisgamos um peixe do tamanho daqueles das histórias (ou estórias?) de pescador. Deixei de lado a ideia de pegar o jaleco do enfermeiro. A cor branca poderia me denunciar, mesmo porque sou mais alto e bem mais forte que o enfermeiro (tenho 1,76m de altura e peso uns 80 quilos). Além do mais, o sonífero parecia estar cumprindo o seu papel. Abri a porta da enfermaria e fui me esgueirando na parede até uma das pontas, de onde pudesse avistar o guarda da torre. Nada! Não consegui avistá-lo! Estaria dormindo? Esperei mais alguns instantes, mas nada acontecia. Resolvi contar com a sorte: o guarda da torre deveria estar dormindo, tinha de estar! Então, caminhei em direção ao portão principal, sempre encostado no muro ou atrás de alguma coisa que pudesse me camuflar. De vez em quando voltava os olhos para a torre, mas nada avistava. A sensação era a de que mais cedo ou mais tarde levaria um tiro pelas costas. Estava a menos de cinco metros do portão principal quando avistei o terceiro guarda. Sim, o terceiro e último dos guardas, aquele que me separava da liberdade. Para minha surpresa e frustração, ele não estava dormindo. Parecia até bem acordado. E agora, o que eu faria? Voltar atrás? Não, eu já estava tão próximo da liberdade! Não seria justamente agora que desistiria. Eu tinha de continuar! Tentei bolar algo. Enquanto isso, o guarda pegava um pouco de café na garrafa térmica e sorvia o líquido preto aos poucos. Será que Djalma se esquecera daquele guarda? Será que ele trocou as garrafas térmicas? O enfermeiro havia dormido tão rápido. Na certa Djalma havia feito confusão com as garrafas. Ou, então, ele teria me traído! Mas por quê? Não, ele não seria tão burro assim, já que deixaria de receber os R$ 10.000,00 – a outra parte das notas estava com Elaine. Ou seria?

            Devo ter ficado mais de meia hora observando o maldito guarda. Minutos preciosíssimos da minha fuga. Teria de agir, e teria de ser naquele momento. Não podia esperar mais! Fui me esgueirando até ficar a menos de dois metros do meu algoz. Ele, sentado numa cadeira dentro da cabine envidraçada na parte da frente; eu, encostado na parede lateral. Eu teria de abatê-lo sem fazer muito barulho. Peguei a faca que Djalma havia me dado e fui me aproximando do carcereiro. De repente, ouço um barulho de cadeira se arrastando! Um frio percorrer minha espinha, me preparei para a luta corpo a corpo com a sentinela. Nada! Absolutamente nada! Nenhum sinal do guarda! Estiquei um pouco o pescoço e pude vê-lo dormindo como um bebê no chão da cabine. A ansiedade correu todos os meus poros. Era hora de dar mais um passo rumo à minha liberdade. O passo definitivo! Havia um molho de chaves sobre a mesa dentro da cabine. Peguei-o! Qual seria a chave? Qual? Saí da cabine e fui testar as chaves no portão. Havia dois grandes cadeados no portão, além da fechadura. Consegui abrir o primeiro cadeado... O segundo foi logo aberto também. Faltava abrir a fechadura! A chave... Onde estava a maldita chave? A única que faltava para eu voltar a respirar liberdade! Achei!!! Abri o portão, que fez um rangido característico dos portões de ferro empenados. Ganhei as ruas...

* * * * *

            Depois de mais de três anos estava livre. Livre! Fechei o portão e saí correndo até a esquina da rua Frei Caneca. Rumei para o túnel Marins de Sá ora a passos acelerados, ora correndo. Atravessei o túnel e logo avistei o Gol prata da minha querida Elaine. Peguei a chave que minha mulher havia colocado atrás da roda dianteira do lado do motorista. Abri a porta do carro, liguei o motor. Minha tensão era tamanha que deixei o carro morrer. Novamente virei a chave, o motor voltou a pegar. Fui em direção à av. Brasil.

            O trânsito não estava ruim, logo peguei a Washington Luís e rumei para Itaipava, em Petrópolis. Liguei o rádio, onde tocava My Way com Frank Sinatra. Segui meu caminho.

Tia Rita

            Cheguei a Itaipava às 4h. Apesar de ter vindo apenas uma vez e há tanto tempo, não foi difícil encontrar o sítio de dona Rita. As luzes da propriedade estavam quase todas apagadas, com exceção de uma lâmpada da varanda da casa principal e de outra colocada no alto da caixa d’água. Estacionei o carro na porteira, desliguei o motor, mas mantive os faróis acesos. Um cachorro enorme começou a latir. Fiquei esperando alguém aparecer.

            _ Quem está aí?

            _ Dona Rita, sou eu, Carlos, o marido da Elaine.

            A tia de minha mulher veio abrir a porteira para que eu entrasse.

            _ Meu filho, você conseguiu! A Elaine me avisou que talvez você viesse, mas não disse quando. Que bom que você conseguiu!

            Dona Rita me abraçou e me beijou nas faces.

            _ Ponha o carro pra dentro. Passa, Tinho! Você se lembra do Tinho?

            _ Esse é o Tinho? Puxa, como cresceu!

            _ Pois é, o danado quase não vingou... Defecou até sangue. Mas se salvou graças aos chás que o seu Tião fez. Menino, você precisava ver como ele estava mal!

            Tinho era o cachorro de dona Rita; seu Tião, o caseiro.

            Assim que pus os pés dentro da casa de dona Rita...

            _ Meu filho, você deve estar com fome. Vou fazer um lanche. Enquanto isso, tome um banho pra relaxar; você dever estar cansado da viagem. Já estou com o quarto de hóspede pronto há três dias esperando por você.

            _ Obrigado, dona Rita...

            _ Me chame de tia Rita, afinal, você é casão com minha sobrinha. Então, você também é meu sobrinho. Há quanto tempo!

            _ Pois é, muito tempo, tia Rita.

            _ Deixe de falação! Vá tomar seu banho. Vou pegar uma toalha pra você.

            Fui tomar meu banho. A água estava especialmente gostosa. Era o meu primeiro banho em liberdade depois de tanto tempo preso. Deixei a água do chuveiro cair sobre meu rosto. Era uma sensação tão boa! Depois do banho fiquei me olhando no espelho do banheiro. Sorri ao lembrar de que havia conseguido escapar da prisão. Foi como sair à francesa, pensei. Vesti a mesma roupa e fui comer o delicioso lanche que tia Rita havia preparado.

            _ Gosta de suco de maracujá? Eu mesma que plantei. Prova só pra ver que delícia.

            _ Hum, muito bom, tia Rita!

            _ Não precisa ficar com vergonha, meu filho. Como à vontade.

            _ Obrigado! Está tudo muito bom! Só a senhora pra fazer um lanche tão gostoso assim, tia Rita.

            A tia de minha mulher sabia o que havia acontecido comigo. Mesmo assim pediu-me para lhe contar toda a minha história. Ela prestava atenção em tudo, pedia detalhes de uma parte ou outra.

            _ Meu filho, como você sofreu! Mas e esse senador não vai ser punido?

            _ Não, sei, tia Rita. Não sei...

            _ Ah, mas o que aqui se faz, aqui se paga. Pode ter certeza disso, meu filho.

            _ ...

            _ Ih, já passa das 6h! Vamos deitar um pouco, meu filho. Você deve estar muito cansado. Daqui a pouco o seu Tião está de volta pra tirar leite das vacas e tratar dos animais.

            _ E ele sabe de mim?

            _ Não se preocupe, meu filho. Seu Tião é de inteira confiança. Estou com ele há mais de 15 anos e posso lhe garantir que é homem de bem.

            Segui o conselho de tia Rita e fui dormir. Deitei em decúbito dorsal e fiquei fitando o teto do quarto. Pensei em Elaine, minhas filhas, minha mãe, na fuga, no que os jornais anunciariam, no Dr. Basílio, no detetive Celso, no jornalista João... Com certeza todos no presídio iriam ficar surpresos com minha fuga. E o cretino do senador Camilo Pessoa de Alcântara? Qual seria a reação dele quando soubesse da minha fuga? Daria mais R$ 10.000,00 só para ver a cara daquele filho da puta!

            Adormeci...

Amanhecer em liberdade

            Despertei... Olhei em volta e comecei a me lembrar do ocorrido na passagem de ano. Ano novo, vida nova, pensei! O sol lá fora estava alto, talvez já fosse mais de meio-dia. Ouvi vozes possivelmente vindas da cozinha. Era tia Rita conversando com seu Tião. Ele não havia passado a noite no sítio, tinha ido visitar a filha em Nogueira, que também pertence a Petrópolis. Levantei e fui lavar o rosto e escovar os dentes.

            _ Boa tarde, meu filho! Se lembra do seu Tião?

            _ Claro. Como vai o senhor?

            _ Graças a Deus vou indo bem, Carlos. Dona Rita tava me contando a arapuca que armaram pra você.

            _ Pois é...

            _ Deixa de conversa, você deve estar com fome. Tem pão, queijo, presunto, geleia, leite, café. Vai fazendo uma boquinha enquanto termino o almoço. Hoje vai ter galinhada. É uma receita da Ione, filha do seu Tião. Você conheceu a Ione?

            _ ... – fiquei sem saber se sim ou se não.

            _ Não, eles não se conheceram, dona Rita. Quando o Carlos veio aqui com a Elaine,  a Ione já tava casada – respondeu seu Tião por mim.

            Depois de comer um pedaço de pão com queijo e tomar um cafezinho (não foi difícil lembrar do café com sonífero), fui dar uma volta pelo sítio. Tinho, o enorme cachorro de tia Rita, negro azeviche, veio me fazer companhia. Olhei os animais, chupei uma manga espada que apanhei no pé. Minha família não me saía da cabeça. Queria vê-los, mas seria arriscado. De repente meu pensamento foi interrompido pelo chamado de tia Rita.

            _ Carlos, corre aqui! Rápido, meu filho!

            Saí correndo que nem doido. O que teria acontecido?

            _ O que houve, tia Rita?

            _ É você na televisão. Estão falando de você na televisão.

            Era o jornal RJ TV: “_ O perigoso assassino e traficante de drogas Carlos Cesario, vulgo Doutor, escapou do presídio Desembargador Hélio Bueno Brandão durante a passagem do ano novo. A polícia de todo o estado foi acionada, e o delegado João Carlos do Amor Divino declarou que já tem informações de que o perigoso bandido estaria escondido no subúrbio da cidade”.

            _ Meu filho, não se preocupe, você está bem seguro aqui.

            _ Não sei, tia Rita... Talvez fosse melhor fugir pro Paraguai.

            _ Não, você fica aqui! A polícia tá atrás de você, Carlos. É como numa caçada. Se o bicho ficar quietinho no seu canto, o caçador vai ter de pelejar muito pra pegá-lo. Mas se ficar desesperado e começar a correr... Aí, o caçador vai e apanha ele na mesma hora! – disse seu Tião com um ar de grande caçador.

            _ Ele tem razão, meu filho. Você fica aqui até as coisas se acalmarem. Depois a gente vê o que vai fazer.

            Preferi não contrariar os dois, mesmo porque eles conheciam a região melhor do que eu. Além do mais, o sítio era bem afastado, quase não passava gente por ali. É um excelente esconderijo, pensei. No entanto, teria de me manter longe de minha família. Na certa a polícia estaria vigiando cada passo da minha mulher e da minha mãe. Meus impulsos deveriam ser controlados!

            _ Meu filho, aqui é bem seguro, mas também não podemos facilitar. Antes de sair de casa, dê sempre uma olhada pra ver se tem gente por perto. Nunca se sabe...

            _ A senhora tem toda razão, tia Rita.

            Mesmo estando em um sítio afastado da comunidade, eu teria de ser cauteloso. Era a minha liberdade que estava em jogo. A minha vida também estava, pois agora eu era um foragido.

Enquanto isso...

            Assim que Dr. Basílio ficou sabendo da minha fuga, contatou o detetive Celso e o jornalista João, que já estavam a par de tudo. Marcaram uma reunião para o dia seguinte. O meu advogado, no entanto, foi ter uma conversa com minha mulher antes do encontro com os outros mosqueteiros.

            _ Elaine, você sabe onde está o Carlos?

            _ Não posso falar. Prometi a ele que não contaria.

            _ Elaine, você não entende, a polícia inteira está atrás dele. Se o acharem irão matá-lo.

            _ Dr. Basílio, sei que o senhor só quer ajudar... Mas eu prometi ao Carlos que não diria pra ninguém.

            _ Eu entendo. Mas quando você falar com ele, diga-lhe que estamos tentando ajudá-lo. Não o deixe fazer besteira. Sei que o Carlos é um pouco impulsivo, o que é próprio da juventude.

            _ Sim, doutor, vou falar com ele. Só que não sei quando irei ter essa oportunidade.

            Antes do meu advogado se despedir de minha mulher, ele entregou-lhe alguns números de celulares.

            _ Elaine, qualquer coisa que o Carlos precisar, ligue pra esses números. São os celulares do detetive Celso Machado e do jornalista João Alves de Matos. Também coloquei o número do meu celular. Não ligue daqui, pois seu telefone pode estar grampeado. Ligue de orelhões.

            _ Obrigada, Dr. Basílio. Sei que vocês só querem ajudar. Mas não quero trair a confiança do meu marido.

            _ Não se preocupe, minha filha. Eu entendo. Vamos tentar ajudar o Carlos da melhor forma possível. Todos sabemos da injustiça que estão fazendo com ele.

* * * * *

            O encontro dos três mosqueteiros se deu no Peixe Frito do Vovô Genaro, restaurante localizado na rodovia Presidente Dutra.

            _ Meu amigos, estive esta manhã com a esposa do Carlos. Ela sabe onde ele está, mas não quis falar, pois prometeu ao marido. Perfeitamente compreensível. Uma grande mulher!

            _ Bem, saber onde o Carlos está não vai nos ajudar muito. Se eles descobrem onde ele está escondido, com certeza vão tentar matá-lo – disse o detetive Celso.

            _ Sim, meu caro Celso, você tem toda razão – concordou meu advogado.

            _ Celso, como vão indo as investigações do seu amigo da Polícia Federal? – perguntou João.

            _ Estive com o Daniel há três dias. Ele não me adiantou muita coisa. Disse apenas que conseguiu uma fita de vídeo onde aparecem o bicheiro Sábado Maria, o juiz Nicolau dos Santos Gouveia e o promotor Frederico Aires em uma festa. Os três pareciam muito íntimos.

            _ Estou ansioso pra ver essa fita! – falou o jornalista.

            _ E eu estou ansioso pra conhecer esse seu amigo da Polícia Federal – completou meu advogado.

            _ Então, o senhor não vai ter de esperar muito, doutor. O Daniel também quer conhecê-los. Ele me disse que gostaria de participar da nossa próxima reunião, caso todos concordem.

            _ Mas é claro quem sim! – disse João.

            _ De pleno acordo – Dr. Basílio confirmou sua intenção de conhecer o brilhante policial.

Um amigo

            Há muito não tirava leite de vaca, tinha perdido completamente o jeito. Mas em pouco tempo fui reaprendendo. Os músculos dos braços ficam realmente fortalecidos, já que o esforço feito é digno de um halterofilista.

            Tia Rita possuía na época quatro vacas da raça Jersey, com bezerro ao pé, e cada uma produzia em média 20 litros de leite por dia. No começo eu ordenhava uma das vacas, e seu Tião aos outras três. Depois que peguei a prática, os números se inverteram. Também passei a dar uma assistência veterinária aos animais do sítio. E mesmo com todo esse trabalho, devo confessar que não foi o suficiente para pagar o carinho e atenção da tia de minha mulher.

* * * * *

            Certo dia de janeiro, quando estava colhendo algumas espigas de milho verde para que tia Rita preparasse pamonha, ouvi o som de um carro se aproximando. Abaixei-me no milharal e tentei verificar quem era. Logo pensei em polícia. Fui andando agachado entre os pés de milho e, de longe, avistei um Escort XR3 conversível de cor amarela. Fiquei aliviado, pois aquele era o carro do meu sócio Bernardo. Ele continuava com o mesmo automóvel desde os tempos da Rural. Havia alguém com ele, mas não deu para ver quem era, pois estava muito distante. Além do mais, a pessoa estava usando um chapéu de cowboy. Fiquei esperando para ver quem era. O veículo parou em frente à porteira. Bernardo não gosta de abrir a porta do carro, prefere saltar, no melhor estilo Batman do seriado com Adam West. E foi o que fez. Tinho foi o primeiro a receber os dois visitantes. O cachorro de tia Rita latia grosso e pausadamente. Não demonstrava ferocidade, mas ninguém era suficientemente tolo de querer invadir o território de um cão daquele porte. E antes mesmo que Bernardo fizesse qualquer gesto para chamar a atenção de alguém, seu Tião apareceu para recebê-los.

            _ O que vocês querem?

            _ Bom dia. O senhor deve ser o seu Tião. Meu nome é Bernardo, sou amigo do Carlos.

            _ Carlos? O senhor deve estar enganado, aqui não mora nenhum Carlos.

            _ Não??? Mas aqui não é o sítio da dona Rita, tia da Elaine?

            _ É sim, senhor.

            _ E o Carlos não está aí?

            _ Moço, já falei que aqui não mora esse tal de Carlos.

            Fiquei observando de longe a discussão dos dois por uns cinco minutos. Parecia conversa de grego. Achei graça, até que resolvi sair do meu esconderijo, mesmo porque já havia reconhecido a pessoa de chapéu de cowboy: era seu Ronaldo, pai do meu sócio. Bernardo logo me avistou.

            _ Carlos, ainda bem que você apareceu!

            Seu Tião logo percebeu que Bernardo era mesmo meu amigo. Abriu a porteira para meu sócio e seu pai entrarem.

            _ Você se lembra do meu pai?

            _ Claro! Como vai o senhor?

            _ Muito bem. E você, Carlos? Estou acompanhando o seu caso. Você está em uma situação delicada.

            _ É, sei disso.

            _ Bom dia pra todos! – era tia Rita que veio se juntar a nós. Já que ninguém me apresenta, meu nome é Rita, sou tia do Carlos.

            _ Muito prazer, minha senhora. Encantado – disse seu Ronaldo.

            Depois das apresentações, tia Rita chamou todos para degustarem seu famoso bolo de queijo.

            _ Hum... Mas que delícia! A senhora tem de me dar a receita.

            _ É bem simples, seu Ronaldo.

            Parecia estar surgindo um clima romântico entre o pai de Bernardo, divorciado há pouco tempo, e tia Rita. O único que não pareceu gostar da situação foi seu Tião. Alguns parentes de tia Rita desconfiavam de que havia alguma coisa entre ela e o seu caseiro, mas isso nunca passou de suspeita. No entanto, quem visse a cara de namorado traído de seu Tião, talvez, deixaria de ter apenas suspeitas.

* * * * *

            Enquanto tia Rita pegava um pedaço de papel e caneta para escrever a receita do bolo de queijo, usei o pretexto de mostrar o sítio para ficar a sós com Bernardo. Eu tinha de ter uma conversa particular com o meu sócio.

            _ Bernardo, você tem de conhecer o sítio da tia Rita. É muito lindo!

            Meu sócio entendeu o recado. Logo estávamos fora da casa.

            _ Carlos, como vão as coisas?

            _ Bem, virei um homem do campo. Acordo cedo, ordenho as vacas, dou milho pras galinhas...

            _ Falo sério! Quais são seus planos? Pretende continuar aqui? Mais cedo ou mais tarde vão descobri-lo neste lugar.

            _ Por que me descobririam?

            _ Não sei! Esses caras da polícia, quando é do interesse de alguém importante, descobrem rapidinho as coisas.

            _ É... Talvez você tenha razão. Pensei em ir pro nordeste, mas não decidi ainda. O que você faria se estivesse no meu lugar?

            _ Não sei, meu amigo. Sinceramente, não sei, pois não estou no seu lugar.

            _ Precisamos conversar sobre a clínica. Você estaria disposto a comprar a minha parte?

            _ E pra quê? Do que você iria viver? Não acho justo você deixar de desfrutar dos lucros que estamos tendo depois de todo o trabalho que tivemos. Não, não vou comprar a sua parte. Vou continuar depositando a sua parte dos lucros mensalmente na conta da Elaine. Tenho certeza de que você faria o mesmo por mim.

            _ Fiquei surpreso e emocionado com as palavras de Bernardo. Abracei meu amigo.

            _ E Elaine, minhas filhas, minha mãe?

            _ Estão todas bem. Elaine está com saudade, pediu pra lhe dizer que não se preocupe com ela nem com as meninas. Todas estão bem.

            _ E minha mãe?

            _ Falei com ela no dia primeiro, assim que soubemos da sua fuga. Posso até estar enganado, mas sua mãe não me parecia muito bem um pouco antes da sua fuga.

            _ É...

            _ Pois é, Carlos, quando eu falei com ela pela última vez, parecia que sua mãe voltara a ser aquela mulher de antigamente. O brilho de sua voz parece que voltou.

            _ Jura?

            _ É verdade! Fiquei surpreso, pois pensei que ela ficaria muito mais abatida depois da sua fuga. Pelo contrário, ela disse que você era como um passarinho, tinha de viver livre pra ser feliz.

            _ É... Ela me disse isso quando fui estudar na Rural.

* * * * *

            Bernardo e seu pai ficaram até o anoitecer com a gente. Contei-lhe toda a história da minha fuga. Seu Ronaldo achou muita graça quando falei que a sentinela do portão principal desabou depois de beber o café com sonífero.

            _ Puxa, esse café era tiro e queda mesmo! – disse o pai de Bernardo. E todos riram do trocadilho.

            Quando chegou a hora de meu amigo e seu pai partirem, entreguei a Bernardo uma carta para Elaine e outra para minha mãe. E antes de se despedir, Bernardo me levou até o seu automóvel, de onde retirou minha maleta de médico veterinário. Ela estava cheia de remédios e material hospitalar.

            _ Meu amigo, a gente nunca sabe quando vai precisar.

            _ Obrigado, Bernardo! Muitíssimo obrigado mesmo!

            _ Força! Tudo vai ser resolvido.

            Bernardo entrou no Gol prata de minha mulher, seu Ronaldo pegou o Escort conversível. Os dois carros partiram deixando um rastro de poeira e saudade.

 

Natação à meia-noite

            Os carros da imprensa iam se juntando às viaturas policiais em frente à mansão na rua Margarida Valadão, na Barra da Tijuca. Uma senhora de feições europeias, robusta, chorava intensamente a morte do marido.

            _ Ele era tão bom comigo e com as crianças. Nunca deixou faltar o que fosse pra gente...

            _ Meu pai era um grande homem, todos vão sentir falta dele – exagerava o filho mais velho.

            Consolando a família do defunto, estava o senador Camilo Pessoa de Alcântara. Chegando às raias do devaneio, ele dizia que o país acabara de perder o seu maior expoente, o seu maior paladino da justiça, e, ele, perdera um grande irmão. Os puxa-sacos de plantão aplaudiram cada frase da velha raposa da política.

            O corpo do morto parecia ainda mais gordo do que quando seu coração ainda batia. Fora encontrado na piscina de sua casa na manhã do dia 2 de fevereiro de 2001 por um dos empregados. O promotor público Frederico Aires costumava nadar todos os dias na piscina de 20 por 10 metros de azulejos azuis. Preferia os horários mais adiantados da noite. “Nadar à meia-noite em período de lua cheia é mais excitante do que o maior dos orgasmos”, costumava dizer, segundo os amigos mais íntimos. A causa mortis ainda não havia sido informada, mas, de acordo o médico legista Ivan Valadares, havia fortes suspeitas de que Frederico Aires sofrera um enfarte enquanto nadava. O corpo havia sido encaminhado ao IML para a necropsia e o laudo definitivo sairia em um ou dois dias, ainda segundo o perito.

As peripécias de um médico legista

            Ivan Valadares não era um desconhecido meu. Fora ele que havia assinado o laudo do corpo de delito de Elaine, onde afirmava que minha mulher não sofrera estupro, o que ia contra o primeiro laudo médico, que sumira por encanto. Esse mesmo médico legista também assinou o laudo médico do corpo de seu José, o porteiro do meu edifício, dando como causa mortis o esmagamento torácico em virtude de atropelamento, quando havia duas perfurações causadas por projéteis de arma de fogo no crânio da vítima.

            O médico legista Ivan Valadares não era digno de confiança, isso era certo. Um outro ponto era a morte do promotor público Frederico Aires, o mesmo que havia trabalhado contra mim no primeiro julgamento. Teria esse promotor sofrido um enfarte durante a sua atividade aquática? Pelo menos era isso que, dois dias depois da sua morte, o médico legista Ivan Valadares confirmaria. Frederico Aires teria sido assassinado? Mas por quê? O senador Camilo Pessoa de Alcântara estaria envolvido nesse crime? Todas essas perguntas eu me fazia enquanto continuava em férias forçadas no sítio de tia Rita.

Dartangnan e os três mosqueteiros

            Daniel Marchi contatou o detetive Celso. Ele havia descoberto coisas importantes e, por isso mesmo, gostaria de repassá-las.

            Tudo bem, Daniel, então fica assim, a gente se encontra na quarta-feira às 19h no Amarelinho da Cinelândia.

            _ Celso, não se esqueça de avisar os seus amigos.

            _ Pode deixar, eles estarão lá. Estão loucos pra te conhecer também.

            No dia e hora marcados lá estavam os três mosqueteiros à espera do policial Daniel Marchi. Este não demorou, chegando uns 15 minutos mais tarde. O detetive Celso se encarregou das apresentações, alguém pediu um chope para o novo mosqueteiro.

            _ Senhores, tenho revelações bombásticas a fazer.

            _ Então, diga logo, homem. Estamos todos ansiosos pra saber – disse o jornalista João.

            _ Bem... Nem sei por onde começar...

            _ Comece do início, meu jovem – sugeriu o Dr. Basílio.

            _ Bem, como o Celso já deve ter-lhes adiantado, estive investigando o envolvimento do notório chefe do jogo do bicho Sábato Maria.

            _ Sim – confirmou o jornalista.

            _ Pois bem, através das minhas investigações, descobri que o senhor Sábato Maria não tem como atividade única o jogo do bicho. Há pelo menos cinco anos está envolvido com algo muito mais rentável: o tráfico de entorpecentes, mais precisamente de cocaína.

            _ Mas o que isso tem a ver com o caso do Carlos Cesario? – quis saber João.

            _ Calma, vou chegar lá. Como estava dizendo, o senhor Sábato Maria está envolvido até a alma com o tráfico de entorpecentes. Inclusive, está ligado ao Cartel de Medelín, na Colômbia. No ano passado estive nos Estados Unidos, para onde o senhor Sábato Maria havia ido. Lá ocorrem esporadicamente encontros dos grandes chefões do tráfico. Entre eles estava o senhor Sábato Maria. Mas ele não estava só nessa reunião.

            _ O senador Camilo Pessoa de Alcântara também? – arriscou o meu advogado.

            _ O senhor seria um ótimo detetive, doutor – disse Daniel.

            _ Obrigado pelo elogio, meu jovem. Mas não tenho a coragem necessária para tal ofício.

            _ Prossiga, Daniel – pediu o jornalista João.

            _ Como bem colocou o Dr. Basílio, o senhor Camilo Pessoa de Alcântara também fazia parte da reunião da Máfia novaiorquina, que controla mais de 60% do tráfico de cocaína do mundo. Além dele, também estava presente o juiz Nicolau Santos Gouveia, o mesmo do primeiro julgamento do Carlos Cesario. Todos envolvidos com a Máfia.

            _ Incrível! Simplesmente inacreditável! – exclamava um embasbacado João.

            _ Mas não terminei ainda, meus amigos.

            _ Ainda tem mais? – indagou o jornalista.

            _ Muito mais, muito mais...

            Antes de prosseguir sua história, alegando falta de saliva, o policial Daniel pediu mais uma rodada de chope.

            _ Onde eu estava mesmo?

            _ Você ia dizendo que tinha muito mais coisas pra contar, além do envolvimento do juiz Nicolau e do senador com a Máfia – lembrou o jornalista João.

            _ Ah, sim, sim... Outro membro desse encontro de mafiosos foi um importante político americano, o senhor...

            _ Harvey Grooters – antecipou-se Dr. Basílio.

            _ Isso mesmo, doutor! O senhor é realmente um homem dotado para o trabalho de investigação.

            _ Eu apenas acompanho os fatos, meu jovem.

            _ Prossiga, Daniel, prossiga – intimava João, deixando aflorar toda a sua curiosidade jornalística.

            _ Bem, o senador Harvey Grooters é um dos chefões da Máfia novaiorquina. Ele é o responsável direto pela distribuição da cocaína em toda a Europa. O mercado europeu é um dos maiores do mundo. Grande parte da cocaína produzida na Colômbia passa pelo Brasil. O senador Camilo é o responsável pela receptação da droga no país. Daqui, ela é transportada por navios para a Europa.

            _ Navios? A droga é transportada por navios? – estranhou Dr. Basílio.

            _ Sim, doutor. A quantidade de droga que cabe num convés de navio é muito maior do que a que cabe num avião, mesmo nos boings. Além, é claro, da menor vigilância nos portos. Nos aeroportos há muito mais rigor por parte do pessoal da alfândega – explicou o detetive Celso.

            _ Exato! Por isso os grandes traficantes preferem o transporte marítimo ao aéreo – completou Daniel.

            _ Interessante – disse o Dr. Basílio.

            _ Continuando, antes que o nosso amigo jornalista tenha um colapso nervoso (todos riram, inclusive o próprio João, da piada)... O senador Camilo é o receptador da droga vinda da Colômbia. Depois ele trata de despachar o carregamento para o mercado consumidor europeu. E isso torna o senador Camilo Pessoa um homem muito poderoso, que movimenta uma quantidade inacreditável de dólares, dignas de um marajá. Esse homem tem o poder de comprar até o próprio Diabo com esse dinheiro. Em outras palavras, estamos mexendo em um vespeiro maior que o monte Everest.

            _ Daniel, caso não esteja enganado, esse senador americano, Grooters, esteve aqui no Rio no ano passado a convite do senador Camilo.

            _ Exatamente, João! Foi uma palestra de Direitos Humanos no hotel Copacabana Palace. Na verdade, a palestra foi apenas um pretexto. O que ele veio fazer no Brasil foi resolver um problema que estava surgindo com a então possível abertura do processo do nosso amigo Carlos Cesario. Grooters é um político muito importante em seu país. A visita de um senador americano, ainda mais convidado pelo senador Camilo, jogaria ainda mais a opinião pública contra o Carlos. Grooters também aproveitou a visita pra checar as remessas de drogas pra Europa.

            _ E você tem como provar isso tudo?

            _ João, as coisas não são tão simples assim. Tenho fotos, filmes, gravações, documentos, tudo o que você possa imaginar que comprometa esses homens. Mas a questão não é essa. Não estamos entrando numa guerra ideológica, nem acredito nesse tipo de guerra. Todas as guerras, em minha opinião, são econômicas. E o nosso inimigo não é o seu Joaquim do boteco da esquina, mas a maior organização criminosa do planeta. E o nosso amigo Carlos teve o azar de matar o filho de um importante membro dessa organização, que possui juízes, promotores, políticos, policiais e toda a sorte de gente em sua folha de pagamento.

            _ E médicos legistas – completou Dr. Basílio.

            _ Mais uma vez o senhor provou que está antenado com os fatos. Isso mesmo! O médico legista Ivan Valadares é um dos mais assíduos membros da folha de pagamento dessa organização criminosa.

            _ O promotor público Frederico Aires foi assassinado? – perguntou João.

            _ Exato! Simplesmente por tentar pular fora do barco. Ele queria sair da organização. O próprio Camilo Pessoa foi o mandante do crime. A esposa e os filhos do promotor sabem do assassinato, mas preferiram se calar a colocar a vida em risco. Aliás, a boa vida em risco.

            _ Meu cliente, então, pelo que você está dizendo, vai ter de passar o resto da vida fugindo?!

            _ Não tenho o poder de vislumbrar o futuro, Dr. Basílio. Mas não apostaria muitas fichas numa possível absolvição do Carlos.

Uma nova visita

            Já corria o mês de abril de 2001, e eu ainda não havia recebido a visita de alguém que ansiava ver. Queria saber como andavam as investigações dos três mosqueteiros. Tia Rita, que não é boba, percebeu minha impaciência.

            _ O que houve, Carlos?

            _ Nada, tia Rita, nada.

            _ Eu te conheço, meu filho. Sei que houve alguma coisa. Saudade da Elaine, das meninas, não é?

            _ Muita!

            _ Tem mais alguma coisa?

            _ Não...

            _ Bem, se você não quer se abrir comigo...

            Eu não podia guardar segredo daquela senhora que tão bem estava me acolhendo.

            _ Tia Rita, é que algumas pessoas estão tentando me ajudar. A senhora se lembra da carta que pedi pro Bernardo entregar à Elaine?

            _ Claro. O que tem ela?

            _ Eu pedi na carta pra Elaine falar pro meu advogado, que é uma dessas pessoas que estão me ajudando, vir aqui.

            _ Você está pensando que foi abandonado por essas pessoas?

            _ Não! Eles não me abandonariam, não é do feitio deles. Só estou querendo ficar a par da situação – menti, pois na verdade estava quase convicto de que todos haviam se esquecido de mim.

* * * * *

            Alguns dias após essa conversa com tia Rita, um táxi estacionou em frente à porteira do sítio. Dele desceu um senhor alto, vestido sobriamente, maleta tipo 007 em uma das mãos. Tinho foi logo dando o ar de sua graça, latindo como de costume, pausadamente, sem mostrar agressividade, apenas como um alerta para que tia Rita percebesse que alguém havia chegado. Esperei o táxi ir embora para, só então, ir receber o Dr. Basílio.

            _ Carlos, meu filho, como você está?

            _ Estou vivo, doutor! E o senhor?

            _ Bem, meu filho, bem...

            Apresentei o meu advogado à tia Rita e ao seu Tião. Dr. Basílio, depois de provar o delicioso café de tia Rita, além de uns biscoitinhos de polvilho feitos por ela, pediu para falar em particular comigo.

            _ Doutor, tudo que o senhor tiver a me dizer pode falar na presença de tia Rita e seu Tião. Não tenho coisa alguma a esconder deles.

            Dr. Basílio, então, contou os fatos da última reunião dos três mosqueteiros com o policial Daniel Marchi. Todos ficaram espantados com a quantidade de sujeira que existia por debaixo do tapete da política.

            _ Dr. Basílio, eu já sou uma mulher de 57 anos, já vivi muito, já vi coisas que até Deus duvida... Sei que esse meio da política está assim de gente que não presta, mas nunca pensei que a situação pudesse chegar a esse ponto. Um senador? Aliás, dois senadores, já que também tem esse americano. Aonde chegamos? Aonde chegamos?

            _ Pois é, minha senhora. E o Carlos está no meio desse fogo cruzado. O próprio Daniel, que é da Polícia Federal, não vê muitas chances de absolvição do Carlos. Pra senhora ver, até um policial federal, que tem provas irrefutáveis contra esses criminosos, não vê muitas chances de toda essa perseguição contra o Carlos acabar.

            Fiquei em estado de choque. Não sabia o que dizer, no que pensar. Não tinha ideia, até então, que o senador Camilo Pessoa de Alcântara fosse um homem tão poderoso, pelo menos não a tal ponto. O que fazer? Ficar no sítio de tia Rita até que eu fosse descoberto? Não, eu não poderia colocar em risco as vidas de tia Rita e seu Tião. Precisava me esconder em outro lugar. Mas onde?

            Antes do meu advogado partir, escrevi duas cartas.

            _ Doutor, gostaria de lhe pedir que entregue estas cartas. Uma é pra Elaine... e a outra pra minha mãe.

            _ Claro, meu filho, eu entrego sim.

            Nas cartas contei toda a situação. Pretendia sair do sítio de tia Rita e, assim que chegasse a um local seguro, daria um jeito de me comunicar. Pedi para não se preocuparem, pois estaria bem. Lembro-me que escrevi as duas cartas olhando a foto na parte de dentro da tampa do relógio de bolso que Elaine havia me dado no Natal de 1998.

            Aquela foi a última vez que vi meu advogado, um homem sempre correto. Ainda espero um dia encontrá-lo, mesmo que seja apenas para jogar conversa fora.

Em busca de um caminho

            Estava decidido a seguir meu caminho, não queria mais sobrecarregar tia Rita, minha mulher, minha mãe... Precisava tomar as rédeas da minha vida, não podia mais esperar que as coisas caíssem do céu. Analisei os fatos friamente: eu era um condenado e foragido. Precisava me esconder, não dava para andar tranquilamente pelas ruas, pois meu rosto estava em todos os jornais. Para onde ir?

            Por uma obra do acaso (ou destino?), acabei descobrindo um lugar onde poderia me esconder. Estava ajudando seu Tião a limpar o depósito de materiais. O local estava tão imundo, que até achamos um ninho de ratos.

            _ Puxa, tia Rita guarda um monte de cacareco!

            _ Na verdade nem é culpa dela. Isso tudo era do seu Ari, irmão dela. Ela havia pedido pra guardar essas coisas aqui. Mas como ele morreu há uns cinco anos, e ninguém quis ficar com isso, essas coisas foram ficando por aqui.

            _ Sei...

            Caixas e mais caixas de livros, discos, alguns móveis, talheres, roupas. Levamos quase uma semana para arrumar o depósito, ver o que interessava à tia Rita, o que iria para doação e as coisas que não prestavam. Foi nessa bagunça toda que encontrei o mapa do Brasil, com as rodovias, desses que os estradeiros costumam usar.

            _ Será que tia Rita vai querer esse mapa, seu Tião?

            _ Não sei. É melhor perguntar pra ela.

            Peguei o mapa e fui correndo falar com tia Rita, que já estava a caminho do depósito segurando uma bandeja.

            _ Vim trazer um suco de acerola pra vocês, meu filho.

            _ Obrigado, tia Rita.

            _ Você quer falar comigo?

            _ Sim. A senhora vai querer ficar com este mapa?

            _ Não, Carlos, não me interessa. Quer ele pra você?

            _ Sim, gostaria de ficar com ele.

            _ Nenhum problema, ele é seu.

            _ Obrigado, tia Rita. A senhora é um amor! – dei um beijo na face rosada daquela senhora que tão bem me acolheu em sua casa.

            _ Como vai aquela bagunça?

            _ Ah, estamos arrumando. Ainda tem muita coisa pra ver se presta ou não. Talvez no domingo a gente acabe de arrumar.

* * * * *

            À noite no meu quarto, pouco antes de dormir, dei uma olhada no mapa. Para onde ir? Sul ou norte? Estudei várias possibilidades, até que decidi rumar para a região amazônica.

            No dia seguinte comuniquei minha decisão à tia Rita. Ela foi totalmente contra a princípio, mas acabou entendendo que eu precisava seguir meu rumo.

            Tia Rita me deu uma mochila velha para eu colocar algumas roupas (duas camisas, um casado, uma calça, dois pares de meias), escova e pasta de dente, um pequeno espelho, alguns potes de doces, biscoito, cantil de água, garfo, faca e colher, uma panela pequena, pó de café, açúcar, um bom pedaço de charque, um cobertor. Apenas coisas extremamente necessárias. O peso disso tudo não chegou a 15 quilos.

            Marquei minha partida para o dia 4 de junho de 2001, uma segunda-feira. As estradas estariam menos cheias, pensei. Eu tinha R$ 878,00 que sobrara do dinheiro que Elaine havia me dado para a minha fuga. Decidi economizar o máximo possível, nem que eu tivesse de ir caminhando até a Amazônia.

Nova lua de mel

            Dentro de três dias eu iria partir, seguir meu rumo ou, como alguns preferem, meu destino. Seu Tião iria me levar de carro até a divisa do estado do Rio com Minas Gerais, próximo a Santana do Deserto. Dali continuaria meu caminho sozinho.

            Estava na sala com tia Rita vendo o Jornal Nacional, DA TV Globo, quando ouvimos o barulho de um automóvel se aproximando. Fui até a janela para ver quem era. Logo reconheci o Gol prata de minha mulher. Mesmo assim esperei que ela estacionasse em frente à porteira. Tinho começou a dar sinal. Elaine desceu do carro e chamou por tia Rita. Peguei a chave do cadeado da porteira e fui receber minha mulher.

            _ Elaine, o que você veio fazer aqui?

            _ Carlos, não podia deixar de vê-lo antes de você partir.

            _ Você é louca, meu amor!

            _ Louca por você!

            Sei que Elaine havia arriscado minha liberdade indo me visitar. Alguém poderia tê-la seguido. Mas na verdade adorei vê-la novamente depois de quase seis meses. Nos abraçamos, nos beijamos, nos amamos... Ela chegou sexta-feira, iria ficar até a manhã de segunda. Finalmente teríamos algum tempo só nosso.

            _ Amor, como estão as nossas princesinhas?

            _ Ah, você precisa vê-las. Patrícia está uma mocinha, Carlinha já está falando mamãe e papai.

            _ Papai?

            _ É, eu a ensinei. Mostro suas fotos pra ela e digo que é o papai. Ela é muito inteligente, Carlos.

            _ E minha mãe? Como vai indo minha mãe?

            _ Ela está bem melhor agora. Na época que você estava preso ela estava péssima, mas agora está bem melhor. Sempre vem visitar as crianças, sai com elas. Claro, sente muita falta de você, mas está bem mais conformada.

            _ E seus pai, o que falam disso tudo?

            _ Carlos, todos estão do seu lado. Eles entendem que você não pode voltar, ninguém o culpa por coisa alguma. Você fez o que deveria ser feito. Todos concordam com sua decisão.

            _ E as meninas?

            _ Bem, a Patrícia sente falta de você, às vezes chora, mas a sua mãe tem conversado bastante com ela. E a Carlinha ainda é bebê, não entende a situação.

            _ E você?

            _ Meu amor, eu te amo! Põe isso na sua cabeça! Eu sou louca por você! Você é o homem da minha vida. Sei que estamos passando por um momento difícil, mas tudo vai acabar bem. Tenho certeza de que um dia tudo isso vai acabar, e que nós voltaremos a viver toda a felicidade que merecemos.

            Elaine havia trazido fotos de todos, principalmente de nossas filhas. Tenho filhas lindas, e não é corujice! Foram dias maravilhosos, uma segunda lua de mel que há muito estávamos merecendo. Até tia Rita percebeu o nosso momento especial e quase que nos deixou a sós durante esses dias. Na manhã do dia 4 de junho de 2001, segunda-feira, dia da minha partida, Elaine voltou para o Rio. Foi a última vez que vi minha amada, a última vez que senti o cheiro perfumado daquela que é a dona do meu coração.

 

 

A partida

            Logo após o Jornal Nacional do dia 4 de junho de 2001 me despedi de tia Rita, que ficou muito emocionada. Seu Tião já estava me esperando com o motor do Corcel ligado. Entrei no carro e dei adeus àquela senhora que muito havia feito por mim. Tinho parecia perceber que nunca mais me veria, pois nem quis se despedir, preferindo ficar no seu cantinho na varanda da casa.

            Não demorou muito e nós já estávamos na rodovia, rumo às Minas Gerais. Noite muito escura, iluminada apenas pelos faróis do velho Corcel e dos carros que nos faziam companhia na BR 040. Seu Tião, que normalmente não falava muito, estava quase mudo. Acendeu um cigarro, me ofereceu outro. Eu, que não fumava, aceitei para lhe fazer companhia. Engasguei um pouco, depois fui pegando o jeito. Não havia estrela para ver, não havia lua no céu. Havia o rádio, mas preferimos ficar apenas com o som do motor.

            Chegamos à divisa dos estados do Rio e de Minas antes da meia-noite. Saltei do automóvel, apertei a mão de seu Tião através da janela, ele seguiu seu caminho de volta para os braços de tia Rita, que o aguardava.

            Caminhei por algumas horas, até o amanhecer. Havia decidido caminhar à noite e me esconder durante o dia. Dessa forma as chances de alcançar meu objetivo seriam maiores. Quando chegaram os primeiros raios de sol anunciando a chegada da manhã, arrumei um local debaixo de uma frondosa árvore, onde preparei minha cama usando o cobertor como colchão e a mochila como travesseiro. Adormeci.

* * * * *

            Acordei depois de um bom tempo, pois o sol já estava bem alto. Meu estômago começou a reclamar. Peguei meu canivete suíço e cortei um pedaço de charque. Abri um pacote de biscoito e comi alguns. Depois bebi um pouco d’água. Essa foi a minha primeira refeição na estrada.

            Tinha de esperar o dia passar para voltar para rodovia. Explorei a região em volta do meu esconderijo, encontrei algumas bananeiras, peguei umas frutas. Depois avistei alguns coqueiros. Peguei quatro cocos. Bebi a água de um coco, raspei a fina camada branca que derreteu em minha boca. Guardei os outros três para outra hora.

            Ao anoitecer voltei para a rodovia e recomecei minha caminhada. Andava durante toda a noite, procurava um local para dormir assim que o dia começava a clarear, tentava arrumar algum alimento depois de acordar e, quando voltava a escurecer, retornava para a rodovia e seguia meu caminho. Somente uma vez entrei em uma lanchonete num posto de gasolina para comprar alguns sacos de biscoito, um bolo de fubá e cigarro. Sim, comecei a fumar. Era como uma forma de passar o tempo. O cigarro, que é tão combatido em campanhas do Ministério da Saúde, passou a ser meu único amigo naquele tempo.

 

Um cadáver no caminho

            O sol estava tão forte que formava uma imagem distorcida do asfalto. Meus miolos estavam sendo castigados, apesar do boné que protegia minha cabeça. Os olhos ardiam por causa do suor que escorria da minha testa. Os carros passavam e agitavam o ar, refrescando um pouco o ambiente. Era a primeira vez que caminhava durante o dia.

            Saí da rodovia em direção a um pequeno riacho que corria sob uma ponte. Tirei o boné e molhei a cabeça com a água cristalina. Arranquei as botinas e as meias, coloquei os pés no riacho. Como é bom se refrescar na água fria de um riacho na beira da estrada! Fiquei observando alguns peixes pequeninos que lutavam contra a correnteza. Peguei um biscoito e fui jogando-o em pequenos pedaços na água. Os peixinhos, assim que notaram a presença de comida, foram saborear a refeição que lhes ofereci. Fiquei pensando se alguma vez na vida eles haviam comido biscoito. Quase certo que não.

            Depois de comer alguns biscoitos e descansar por uma hora ou mais, resolvi continuar minha viagem. Antes mesmo de me levantar notei que um carro parou sobre a ponte. Vozes, no mínimo de três homens. Fiquei estático!

            _ Eu te disse pra não se envolver com minha irmã, seu safado! – primeira voz.

            _ O que você tá pensando em fazer, homem? – segunda voz.

            _ Vou te dar o que você merece! Desce! – primeira voz.

            _ Não, não vou descer! – segunda voz.

            _ Desce logo, porra! – primeira voz.

            _ Pra quê? O que você vai fazer, Cristiano? – segunda voz.

            _ Já falei, porra, desce logo! – primeira voz.

            _ O que você tá fazendo, cara? Solta essa arma! – terceira voz.

            _ Não se mete, meu irmão! Isso é entre mim e esse filho da puta! – primeira voz.

            _ Por favor, não me mate! – o homem da segunda voz chorava implorando pela própria vida.

            Logo em seguida ouvi alguns tiros e um grito agonizante.

            _ Você fiou louco, cara? – terceira voz.

            _ O safado mereceu, mexeu com minha irmã. Me dê uma mão aqui com esse filho de uma rapariga – primeira voz.

            O corpo sem vida do infeliz foi jogado da ponte, caindo tão próximo que respingou um pouco d’água do riacho em meu rosto. Fiquei em estado de choque. O que fazer? Ir à polícia contar tudo? Não, eu era um foragido, já tinha muitos problemas com a justiça. Melhor sair dali o mais rápido possível. Voltei para a rodovia e retomei minha longa caminhada.

Um passarinho na estrada

            Entrei no município de Conselheiro Lafaiete – MG sob um forte temporal. Tentei me proteger debaixo de uma árvore, mas o vento jogava a água da chuva em mim. O frio era tanto que até meus ossos doíam, meu queixo tremia, mal sentia meus dedos.

            Os carros iam passando e espalhando água por todos os lados. Caminhões, ônibus, automóveis... e uma motocicleta. Sim, uma motocicleta que teimava em seguir viagem apesar do castigo de São Pedro.

            Acendi um cigarro para tentar esquentar um pouco meus pulmões. Depois acendi outro e mais outros. Quando a chuva passou havia várias guimbas espalhadas sob a árvore. Coloquei uma camisa seca e recomecei minha caminhada.

            Devo ter andado uns dois quilômetros, quando avistei a mesma motocicleta que havia passado por mim durante o temporal. Sabia que era a mesma porque não era uma moto comum, mas uma dessas incrementadas, tipo das usadas pelos Hell’s Angels. Ela estava caída no matagal ao lado da rodovia. Nenhum sinal do motoqueiro. O que teria acontecido? Com certeza ele havia perdido o controle e caído. Estaria vivo? Corri até o local e logo encontrei o pobre homem, que estava deitado de costas, imóvel. Verifiquei seu pulso, estava vivo, mas fraco, muito fraco. Não queria movê-lo, pois poderia ter quebrado algum osso, alguma vértebra. Retirei sei capacete com cuidado. Ele gemeu e logo depois esbravejou:

            _ Onde está o animal asqueroso que me fechou?

            _ Não sei, amigo, estou chegando agora. Você está bem? Consegue se levantar?

            _ Acho que sim. Me ajude aqui.

            Ajudei o sujeito a se levantar. Aparentemente ele estava bem. Levei-o para debaixo de uma árvore, ajudei-o a se sentar com as costas apoiadas no caule.

            _ Minha moto, onde está a minha moto?

            _ Está ali, vou pegá-la pra você.

            Trouxe a motocicleta para perto. Era uma Yamaha Virago 535. Havia uma placa com a seguinte frase: “Jesus te ama, EU NÃO!

            _ Seu braço está com uma ferida feia.

            _ É, mas já estive em situação pior.

            _ Me deixa cuidar disso.

            Retirei a minha maleta de medicamentos de dentro da mochila. Limpei a ferida e fiz um curativo. O sujeito soltou alguns gemidos, mas nada fora do comum. Depois me mostrou a sua coleção de cicatrizes, uma mais feia que a outra.

            _ Obrigado. Você é médico?

            _ Médico veterinário.

            Ele soltou uma gargalhada gutural.

            _ Deixa só a galera saber que fui tratado por um veterinário. Todos vão morrer de rir. E onde está o seu carro?

            _ Não estou de carro, estou a pé.

            _ A pé? Você mora aqui perto?

            _ Não.

            _ E mora onde?

            _ Prefiro não falar sobre isso.

            _ Entendo...

            _ Você está com fome? Tenho biscoito – ofereci ao homem da motocicleta.

            _ Obrigado. Qual é o seu nome?

            _ ...

            _ Tudo bem, tudo bem. Se você não quer dizer, eu entendo.

            _ Desculpe, meu amigo, meu nome é Roberto – menti.

            _ Então, muito prazer, Dr. Roberto. Meu nome é Braga, mas também pode me chamar de Piu-Piu.

            _ Piu-Piu?

            _ É como sou conhecido pelos motociclistas de todo o Brasil. Sou um dos motociclistas mais conhecidos do país.

            _ Legal... Você vai pra algum encontro de motoqueiros?

            _ Motociclistas! Motociclistas!

            _ Sim, motociclistas, desculpe. Você está indo a algum encontro?

            _ Não, estou apenas viajando pelo prazer de viajar. Sempre estou na estrada.

            _ E você vive de quê?

            _ Sou bancário, trabalho no Banco do Brasil. Tirei alguns dias pra cair na estrada.

            Depois de comermos dois pacotes de biscoitos, meu amigo se levantou e foi verificar se sua motocicleta estava avariada. O tanque estava um pouco amassado, o banco rasgara na lateral, alguns arranhões aqui e ali, mas nada que pudesse interferir em seus planos de chegar ao seu destino. Ligou a Virago, acelerou forte, pude ver a potência do motor.

            _ Está indo pra onde, Roberto?

            _ Pra onde você vai?

            _ Pra Três Marias. Tem umas vagabundas lá me esperando.

            _ Deve ser um bom lugar.

            _ Você está com sorte, maluco, pois quase nunca viajo com um capacete extra. Vamos?

            O motociclista jogou o capacete para mim, subi na garupa da motocicleta do meu novo amigo e partimos.

            Braga (ou Piu-Piu) é um sujeito de no máximo 1,70m, uns 100 quilos, branco, cabelos lisos e bem aparados, mineiro de Belo Horizonte, mas mora no Rio há bastante tempo. Ele tem um colete no qual está bordado o seu apelido – Piu-Piu – e, embaixo, a frase “A gente se vê na estrada!”

* * * * *

            Em menos de duas horas entramos na cidade natal do Braga, onde paramos em um posto de gasolina para abastecer e esticar um pouco as pernas. Aproveitei a parada para ligar para Elaine. Comprei um cartão telefônico, me dirigi a um orelhão e disquei o número do celular de minha mulher. Era a primeira vez que entrava em contato com minha amada desde que nos despedimos no sítio de tia Rita.

            _ Alô?

            _ Elaine, sou eu.

            _ Carlos, é você? Onde você está, meu amor? Você está bem? Estava tão preocupada, meu amor!

            _ Estou bem. Liguei pra ouvir a sua voz. Estou com tanta saudade!

            _ Eu também, Carlos! Onde você está?

            _ Estou em Minas, estou bem.

            _ Em Minas? Mas em que lugar de Minas?

            _ Não estou em um lugar fixo, estou mudando sempre de lugar. Amorzinho, tenho de desligar agora.

            _ Carlos, eu te amo!

            _ Eu também te amo, meu amor. Mande um beijão pra todos, pra minha mãe, pras nossas princesinhas.

            _ Pode deixar, vou falar com todos.

            _ Tchau, meu amor. Eu te amo.

            _ Eu também te amo, Carlos.

* * * * *

            Braga estava saindo do restaurante do posto de gasolina com duas latas de Coca-Cola e um saco de biscoito de polvilho. Bebemos o refrigerante, mas só ele comeu o biscoito, pois eu não estava com fome. Meu amigo é desses sujeitos que parecem ter o estômago furado, pois come mais do que a própria boca.

            _ Conhecia BH?

            _ Só de passagem.

            _ Aqui tem muita vagabunda, Beto.

            Meu amigo sempre se referia às mulheres como vagabundas. A princípio pensei que fosse um tipo específico de mulher, mas depois comecei a perceber que era uma forma debochada de se referir ao sexo feminino. Debochada, mas nem por isso deixa de ser grosseira. Mas esse é o Braga, não sou eu que irei mudá-lo.

            _ Vamos nessa? – meu amigo disse.

            Voltamos para estrada e logo estávamos saindo da capital mineira. Passamos por diversas cidades até chegarmos a Três Marias – MG, a 260 quilômetros de Belo Horizonte. Fomos direto para um casarão antigo, onde moravam as tais “vagabundas” do meu amigo: Fabíola e Viviane.

* * * * *

            Havia uma terceira moça no casarão, seu nome era Olívia, morava em Brasília e estava passando uns dias com as amigas. Cabelos aloirados e encaracolados, olhos esverdeados, algumas sardas no bonito rosto, corpo atraente, sorriso de menina levada. Olívia é a pura tentação em forma de mulher... E que mulher!

            Meu amigo motociclista (e não motoqueiro, como ele mesmo gostava de frisar) me apresentou às suas amigas, que me receberam muito bem. Olívia nos foi apresentada, Braga também não conhecia a garota brasiliense.

            _ Braga, hoje vai ter uma festinha lá na casa da Bete – disse Fabíola.

            _ A Bete? E como vai aquela vagabunda?

            _ Ah, ela tá bem. Vou te levar lá hoje.

            _ É festa de quê?

            _ Festa de festa, uai – respondeu Fabíola deixando escapar um pouco de sua mineirice.

            _ E aí, Beto, vamos lá?

            _ Você quem manda, Braga.

* * * * *

            Lá pelas 22h chegamos à casa da Bete, uma mulher grandona, cabelos compridos, lisos, rosto redondo, faces rosadas, branca que nem cera, uns 35 anos ou mais.

            _ E aí, Piu-Piu, o que você veio fazer em Três Marias? – perguntou Bete.

            _ Vim comer as Três Marias e você – brincou Braga.

            A festa não tinha muita gente, mas estava bastante animada, principalmente por causa da Fabíola e da Viviane, sempre alegres, dançando, contando histórias do Braga. Eu assistia a tudo aquilo passivamente. Bebi um pouco de cerveja, depois um pouco de vinho, mais adiante provei uma batida de maracujá com cachaça. Quando acendia mais um dos inúmeros cigarros que fumei naquela festa, Olívia veio para perto de mim.

            _ Me dá um trago?

            _ Claro! Você fuma?

            _ Às vezes.

            A festa rolou madrugada adentro. Voltamos para casa das amigas do Braga quando o sol estava nascendo. Meu amigo foi dormir com Viviane – depois fiquei sabendo que os dois tinham um caso há algum tempo. Fui direto para o quarto que as meninas prepararam para mim. Estava exausto, fechei os olhos, mas não conseguia dormir. Nem sei quanto tempo se passou até surgir a garota de Brasília, vestida apenas com uma camisa de malha e uma calcinha branca minúscula. Ela se aproximou de mim e, sem dizer uma palavra sequer, encostou seus lábios nos meus, depois desceu seu rosto e mordiscou meu peito, continuou descendo... Tentei me controlar, mas ela, com um leve toque de dedos, percebeu que havia vencido qualquer barreira que, por acaso, pudesse existir. Arranquei nossas roupas, depois retribuí todo o carinho que havia recebido daquela menina tão doce.

* * * * *

            Acordei com gosto de papelão na boca, muita sede, um sentimento de culpa do tamanho de um bonde por ter traído minha mulher. O Braga falando alto pela casa, as meninas rindo...

            _ Até que enfim, Beto! Pensamos que a Olívia tivesse matado você – brincou Fabíola.

            _ Puxa, minha cabeça está girando – respondi, enquanto bebia litros d’água.

            Olívia veio me dar um beijo de bom dia. Retribuí, o que me fez sentir ainda pior, pois a imagem de Elaine não saía da minha mente.

            _ Dormiu bem? – a garota de Brasília me perguntou.

            _ Dormi...                           

            _ Olha o que preparei pra você.

            Olívia havia feito pão de queijo e suco de manga. Tudo estava delicioso, só que eu estava me sentindo como um peixe fora d’água. Aquela não era a minha Elaine, aquela não era a minha casa, aquela não era a minha vida.

            _ Vou embora amanhã cedo. Você quer ir comigo?

            _ Ir pra onde, Olívia?

            _ Pra Brasília. Você está bem, Beto?

            _ Estou... Só estou um pouco zonzo, de ressaca, há muito tempo não bebia.

            _ Vou fazer um chá de boldo pra você.

            _ Não precisa se preocupar, Olívia.

            _ Deixa de besteira, homem, ela só quer ajudar – interferiu Viviane.

            Olívia preparou o tal chá. Melhorei um pouco o mal-estar, mas a dor na consciência por ter traído minha Elaine continuava. E, para piorar ainda mais a situação, algo naquela garota de Brasília me atraía. Acabei não resistindo aos apelos da natureza e voltei a cair nos braços de Olívia. Vivemos momentos de paixão!

Na Capital Federal

            O resto do último dia em Três Marias foi dedicado à total esbórnia. Tentei não pensar na traição que estava cometendo e tirei férias das preocupações que vinha tendo há quatro anos. Olívia e eu passamos o dia inteiro dançando, rindo, nos amando como dois adolescentes que acabaram de conhecer o sexo.

            No dia seguinte, um domingo, fui com Olívia para a Capital Federal no seu Fusca branco. Não saímos pela manhã como ela pretendia, pois acordamos bem tarde, já que passamos a noite na maior festa particular dentro de quatro paredes. Almoçamos, nos despedimos das nossas anfitriãs e do Braga. Este me chamou num canto e disse: –  Boa sorte, Carlos! – ele sabia quem eu era, mas mesmo assim me deu carona. Apertei a sua mão e o abracei.

            Caímos na estrada. Teríamos 480 quilômetros pela frente. Olívia é uma companhia muito agradável, divertida. A viagem não foi de forma alguma cansativa no sentido de enfadonha. Paramos algumas vezes para abastecer o carro, comer alguma coisa, esticar as pernas e, como estávamos enamorados, fazer amor. Por causa de tudo isso acabamos chegando em Brasília só na madrugada de segunda-feira. Fomos direto para o apartamento de Olívia, que morava com uma amiga na Asa Norte, Plano Piloto. Era um local pequeno, porém aconchegante.

            _ Olá, Marisa! Como foi o final de semana sem mim?

            _ Ma-ra-vi-lho-so, minha querida! Você nem imagina!

            _ Puxa, você nem sentiu falta de mim?

            _ Claro que senti, Olívia, principalmente das suas calcinhas espalhadas pelo chão. Não vai apresentar o bonitão?

            _ Ah, desculpe, este é o Beto, meu namorado lá de Três Marias. Ele vai passar alguns dias aqui com a gente.

            _ Ainda não conheço a sua cidade, Beto, mas já está me dando vontade de conhecer – brincou Marisa.

            _ Bem, na verdade não sou de lá, estava só de passagem.

            _ Ah, não? Então, você é de onde? Aposto que é carioca!

            _ É, sou do Rio.

            _ Mais um carioca na sua vida, minha amiga!

            _ Pois é, Marisa, pois é...

            Brasília é uma cidade diferente. Não sei explicar direito, mas tudo parece estar no lugar certo, não é como nas outras cidades. As ruas são todas iguais, quase não ouvimos os carros buzinarem, o clima é bastante seco. Só mesmo conhecendo para saber como é.

            Não pretendia demorar muito em Brasília, tinha de retomar minha viagem. Olívia sempre queria me levar para conhecer os pontos turísticos da cidade, mas eu não queria me expor, afinal, continuava sendo um foragido.

            Minha namorada (vou chamá-la assim) era professora numa academia, dava aula de dança do ventre. Marisa trabalhava como caixa num supermercado. Aproveitei a ausência das duas e fui a um orelhão, de onde telefonei para o celular do Dr. Basílio. Ele me disse que o policial federal Daniel Marchi estava justamente em Brasília fazendo um treinamento.

            _ Carlos, ligue pro Daniel agora mesmo. Tenho certeza de que ele poderá ajudá-lo de alguma forma.

Um amigo na Polícia Federal

            Mal acabei de falar com o Dr. Basílio, telefonei para o celular do policial Daniel Marchi. Ele ficou surpreso.

            _ Carlos Cesario? Não é possível! Onde você está?

            _ Estou aqui em Brasília.

            _ Aqui? Puxa, mas que coincidência! Mas onde em Brasília?

            _ Na Asa Norte. Você conhece?

            _ Claro! Me dê o endereço, assim que puder passo aí pra gente conversar.

            _ Mas quando você vem?

            _ Assim que puder, Carlos. Tenho alguns compromissos hoje à tarde. Lá pelas dez horas da noite eu passo aí.

            _ Tá bom. Só tem coisa, Daniel.

            _ O quê?

            _ Estou na casa de duas moças, que pensam que meu nome é Roberto.

            _ Roberto! Tudo bem, não vou me esquecer.

            Passei o endereço para o policial, voltei para o apartamento da Olívia, liguei a televisão, depois liguei o rádio, peguei algumas revistas... Estava ansioso para finalmente conhecer o Daniel. Ele poderia me ajudar? Mas como? Eu teria de esperar até a noite para descobrir.

* * * * *

            Olívia e Marisa chegaram em casa antes das 19h. Marisa foi direto tomar banho, Olívia foi me ajudar a terminar o jantar: estrogonofe de carne, batata palha e arroz branco.

            _ Como foi o seu dia, amor?

            _ Bom... Hoje talvez venha um amigo meu aqui me ver. Tem algum problema?

            _ Claro que não, Beto. E a que horas ele vem?

            _ Depois das 10.

            _ Tudo bem. Vou falar pra Marisa. A gente pode até jogar um buraco. Seu amigo gosta?

            _ Não sei, Olívia... Acho que ele não vai querer. Fica pra outra vez.

            _ Tá bom. Vocês têm de colocar os papos em dia...

            _ Obrigado... e me desculpe.

            _ Não precisa se desculpar, meu querido. Eu entendo. A Marisa já saiu do banho. Vamos tomar o nosso?

            Fizemos amor debaixo do chuveiro, depois fomos jantar. Olívia contou que receberíamos a visita de um amigo meu. Marisa ficou toda empolgada, fez mil e uma perguntas a respeito do Daniel. Fui dando respostas furtivas, pois na verdade nem sabia como ele era.

            Já passava das 23h quando o interfone tocou. Corri para atender, devo até ter usado um tom de voz acima do meu, haja vista toda minha expectativa. Daniel se identificou, abri a portaria apertando o botão do interfone. Em menos de um minuto o policial federal entrava no apartamento. Fiz as devidas apresentações de praxe, depois pedi licença a Olívia e Marisa, descemos para conversar em particular.

            _ Mas vocês voltam, não voltam? – quis saber Marisa, que ficara interessada em Daniel.

            _ Voltamos, senhorita. E será um enorme prazer desfrutar de companhias tão agradáveis como vocês duas – respondeu o galante policial.

            Daniel me perguntou sobre meus planos, respondi que pretendia seguir para a Amazônia. Ele se prontificou a me ajudar, mas não sabia de que forma. Disse também que havia entrado em contato com o detetive Celso Machado logo após a minha ligação.

            _ O Celso também tomou um susto quando soube que você estava aqui em Brasília. Ele pediu para eu ligar logo após o nosso encontro. Ele quer ajudá-lo, Carlos.

            Daniel me contou que a polícia do país inteiro estava atrás de mim, inclusive tinha solicitado ajuda da Interpol, pois havia grande possibilidade de eu já estar fora do país. Ele pegou o número do telefone da casa da Olívia para, assim que tivesse alguma posição, entrar em contato.

            _ Bem, acho que já falamos tudo por ora. Não podemos deixar as moças esperando, não é, Roberto? – disse o policial piscando o olho.

            _ Claro, claro, Daniel.

            Voltamos ao apartamento, onde Olívia e Marisa nos esperavam. Esta foi logo oferecendo um copo de cerveja ao policial, que não se fez de rogado. Sentamos os quatro em volta da mesa, Olívia pegou o baralho e começamos uma partida de buraco. Marisa e Daniel formaram a dupla adversária. Eles acabaram nos vencendo com diferença de mais de mil pontos. Depois do jogo, Daniel mostrou a sua habilidade de mágico usando o baralho. Marisa foi a que ficou mais entusiasmada. Havia um clima entre os dois. Minha namorada e eu nos recolhemos mais cedo com o pretexto de estarmos cansados, deixando os dois pombinhos a sós.

Taboquinha

            Acordei bem cedo, antes das 7h, preparei o café-da-manhã e fui levá-lo na cama para Olívia. Fiquei observando aquela linda menina de 26 anos coberta parcialmente pelo lençol. Logo teríamos de nos separar e, provavelmente, nunca mais nos veríamos. Sentimentos que me confundiam e perturbavam desde aquela noite em Três Marias. Não estou aqui pedindo perdão pela minha traição, nem para ser julgado, pelo menos não por você, pois a dor da traição já me acompanha desde então. Se eu tiver de ser julgado por alguém, que seja por minha mulher. Apenas Elaine tem esse direito. A você deixo o julgamento das minhas ações contra aqueles dois cretinos que invadiram meu apartamento naquele fatídico 6 de julho de 1997.

* * * * *

            À noite recebi um telefonema de Daniel, que havia conversado com o detetive Celso. O policial federal contara toda a conversa que havíamos tido na noite anterior. Celso queria me ajudar de alguma forma e, antes mesmo dele contar para os outros mosqueteiros, o Dr. Basílio já havia entrado em contato para marcar mais um encontro. João também foi comunicado. A reunião se daria dentro de dois dias.

            _ Carlos, então, vamos esperar um pouco mais. Não é hora de dar um passo em falso, temos de ir somente na boa.

            _ Você tem razão, Daniel.

            _ E as meninas nem desconfiam de quem você é?

            _ Não, ainda mais por cauda da minha barba e do cabelo grande. Meu cabelo fica liso quando está curto, mas agora está encaracolado. Estou bem diferente, você não acha?

            _ É, pelas fotos que vi antes, você está bem diferente.

            _ Quando você aparece, Daniel?

            _ Talvez quando tiver notícias do encontro do Celso com o Dr. Basílio e o João. Não tenho tido muito tempo, vou ter de ir a um jantar na casa de um delegado amanhã. Não é só de crimes que um policial vive, meu caro, a gente tem de ser político também.

* * * * *

            Mais alguns dias de angústia. Eu teria mesmo de esperar pelo veredicto dos três mosqueteiros? As horas se arrastavam lentamente, da mesma forma vagarosa quando eu estava na minha “suíte”. Uma semana! Foi esse o prazo que dei para que Daniel trouxesse notícias dos três mosqueteiros. Caso eles não pudessem me ajudar de alguma forma, teria de agir sozinho. Não poderia deixar meu destino nas mãos de quem quer que fosse, mesmo que essas mãos fossem amigas.

            No quarto dia de espera recebi um telefonema do Daniel, que estava animado com a ideia do detetive Celso. Este era muito amido de um advogado carioca, residente em Brasília desde o final da década de 60, Dr. Alfredo, que também era criador de gado nelore no município de Padre Bernardo – GO, a menos de 90 quilômetros da Capital Federal. Celso havia conversado nos últimos dias com o Dr. Alfredo, explicou todo o meu caso, que ele conhecia apenas através dos jornais. O amigo do detetive concordou, em nome da antiga amizade, me abrigar na fazenda por um período, mas não prometeu mais coisa alguma. Na verdade, o Dr. Alfredo não queria se comprometer com algo que nem lhe dizia respeito, o que eu não censuro.

            Em dois dias recebi uma visita de Daniel, que veio me contar como eu chegaria à fazenda do Dr. Alfredo. Eu teria de ir até a rodoferroviária de Brasília. Lá compraria uma passagem para Padre Bernardo, mas o bilhete de viagem teria de ser apenas até Taboquinha. Chegando em Taboquinha, me informaria onde ficava a fazenda do Dr. Alfredo, que era o homem mais conhecido do local. E foi o que fiz no dia seguinte, uma quarta-feira. Saí sem dizer adeus, deixei apenas um pequeno bilhete para Olívia. E foi só.

* * * * *

            Taboquinha é um local pouco habitado, região de muitas chácaras, muitas terras inabitadas, algumas fazendas, sendo a do Dr. Alfredo a maior e mais rica. Na fazenda Recanto das Amendoeiras fui recebido pelo capataz, Osano, casado com a dona Liana, pais de cinco filhos – Leandro, Leonardo, Fernanda, Rosana e Mariana. Ele é um sujeito de mais de 1,80m, chucro, trabalhador. Além dele existem dez funcionários em todo o latifúndio do Celso. Fiquei hospedado na casa do capataz por dois dias, até que providenciaram um local, o paiol, para eu ficar.

 

Ataque de abelha

            Os meus dias na fazenda Recanto das Amendoeiras não eram iguais aos que tive no sítio de tia Rita. Eu recebia minhas refeições das mãos de um dos filhos de Osano, principalmente de Leonardo, um garoto de seus 10, 12 anos. Todos o chamavam de Fragata, apelido colocado pelo Dr. Alfredo.

            Osano não sabia quem eu era, mesmo porque quase ninguém lia jornal por ali. Havia uma televisão na casa dele, mas que só era ligada na hora da novela que passa depois do Jornal Nacional. Acabamos fazendo certa amizade e, por algumas vezes, ele me emprestou um cavalo para eu conhecer a região. Saía pela manhã e voltava, quase sempre, só no final da tarde. Levava um pouco de comida, geralmente dois pães com queijo branco e meu cantil com água. No caminho sempre tinha algo para comer, principalmente cajuzinho do mato (uma espécie de caju pequeno e vermelho, mais azedo que o encontrado em supermercados e feiras), que, segundo fui informado, estávamos na época. Outra fruta do cerrado é uma espécie de fruta-de-conde tamanho família, meio azeda, de cheiro forte, mas saborasa... e que não me lembro do nome.

            Atravessei serras, rios, terras com árvores retorcidas. Aliás, eu tinha uma imagem distorcida do cerrado, pois na escola aprendi que sua vegetação é feia, as árvores com seus troncos tortos. Tudo besteira, o cerrado é lindo, a vegetação é maravilhosa.

            Quando o sol estava forte, gostava de apear do cavalo, geralmente um meio sangue campolina castanho, e me deitar nas águas rasas de um riacho com roupa e tudo. Tirava o chapéu, enchia-o de água e jogava no meu rosto. Depois me levantava, sentava na margem e ficava olhando o movimento dos pássaros ao redor. Meus pensamentos tomavam rumos diversos, mas com frequência eram tomados pelas imagens de minha família.

* * * * *

            Dr. Alfredo veio pela primeira vez à fazenda desde a minha chegada. Estava acompanhado de seus três filhos (dois garotos e uma menina), as idades etnre 8 e 12 anos. Eles vieram passar o feriado prolongado de 12 de outubro de 2001.

            O dono da fazenda Recanto das Amendoeiras veio ter comigo. Ele foi bastante franco, não fez rodeio, disse que não gostava nem um pouco da minha presença em suas terras, mas que iria me abrigar por algum tempo em consideração à sua amizade com o detetive Celso. Não fiquei com raiva, até o tive em alta estima pela sua franqueza.

            Os filhos do Dr. Alfredo fizeram tudo o que qualquer menino de cidade gosta de fazer quando vai ao campo: andaram a cavalo, nadaram no rio, pescaram, tiraram leite de vaca, subiram em árvore. Eu não me aproximava do Dr. Alfredo e dos seus filhos, ficava no canto reservado a mim ou em cavalgadas pela região.

* * * * *

            No domingo, Dr. Alfredo promoveu um churrasco para alguns amigos. Todos se divertiam, o latifundiário ouvia alguns “causos” dos moradores da região, gargalhadas dissipavam-se por um raio de 100 metros, mais de 20 crianças se divertiam na piscina, no campo de futebol e em brincadeiras tipo pique-pega. Toda essa algazarra foi interrompida com os gritos desesperados de Fragata, que brincava de futebol com outros garotos.

            _ Dr. Alfredo, corre, corre, o Zezinho está tendo uma coisa esquisita!

            _ O que foi, Fragata? – perguntou o advogado.

            _ Num sei, ele tá ali todo esquisito.

            Houve um corre-corre geral, todos foram em direção ao campo de futebol. Gritos de desespero, sugestões de toda parte. Dr. Alfredo pegou seu filho mais novo no colo e o trouxe para a varanda da casa principal. Trouxeram água, trouxeram compressas, mas o garoto ficava cada vez mais roxo. Um grito de impotência dominou o ar, era o doutor daquelas terras lamentando não poder fazer coisa alguma para ajudar seu menino. Ele tornou a pegar o filho no colo e já ia em direção ao seu carro, quando apareci. Carregava minha maleta.

            _ Coloque-o aqui – eu disse.

            _ Ele está morrendo, não consegue respirar – alguém falou.

            Dr. Alfredo deitou o seu filho no capô do automóvel, onde pude tomar ciência da situação. O pequeno Zezinho estava com um edema de glote, possivelmente provocado pela picada de um inseto. Fiz um garrote em seu frágil braço e apliquei um antialérgico na veia.  Em questão de segundos o menino voltou a respirar, mas ainda com dificuldade. Fiz respiração boca a boca, o que melhorou em muito o estado do geral do pequenino. Notei algo em um dos braços do garoto, retirei: era um ferrão de abelha. Zezinho estava salvo, e eu nem precisei recorrer a uma traqueostomia. O advogado chorava, sorria, chorava, abraçava o seu garoto, todos ficaram emocionados, todos abraçavam o pai de Zezinho, passavam a mão na cabeça do menino. Dr. Alfredo tornou a pegar o filho no colo, olhou dentro dos meus olhos, estendeu a mão em minha direção e disse: – Obrigado, Carlos, foi Deus que o colocou no meu caminho.

Encontro com Zé Geraldo

            Fui alojado num quarto na casa principal, aliás, uma suíte, com direito até a televisão com antena parabólica. Eu continuaria no paiol sem qualquer ressentimento, muito pelo contrário, pois só poderia agradecer à hospitalidade do Dr. Alfredo. De qualquer forma, eu estava adorando aquilo tudo.

* * * * *

            No dia 8 de dezembro de 2001 haveria uma grande festa na fazenda Recanto das Amendoeiras, Dr. Alfredo completaria 60 anos. Na verdade seu aniversário era dia 6, mas como cairia numa quinta-feira, a comemoração se daria no sábado seguinte.

            Mais de mil convidados! Todos os principais membros da sociedade de Taboquinha foram convidados. Também estariam presentes o prefeito de Padre Bernardo, o delegado e... Zé Geraldo! Sim, o cantor e compositor Zé Geraldo, o mesmo que minha Elaine adorava, principalmente por causa da música Senhorita. Ele fora contratado pelo Dr. Alfredo para comandar a parte musical da festa.

            Faltavam poucos dias para a festança e todos na fazenda estavam muito animados. Dona Liana e mais algumas mulheres, esposas e filhas dos empregados da fazenda, preparavam os enfeites, arrumavam a grande área próxima às três churrasqueiras dando um toque feminino. Os homens faziam o trabalho mais pesado como encher os freezers com caixas e mais caixas de cerveja e outras bebidas, capinar toda a área próxima à casa principal, pintar a cerca e parte dos troncos das árvores com cal virgem.

            Dr. Alfredo chegou à fazenda na quarta-feira anterior à festa. Ele queria estar a par de tudo, não queria que coisa alguma saísse fora do planejado. Conversamos por horas nas noites que se seguiram antes da festa, ele sempre preocupado com o meu futuro.

            _ Carlos, tenho uma propriedade na Ilha de Marajó, onde crio búfalo. Andei pensando, você poderia ficar lá. Eu preciso de um homem de confiança pra tomar conta da criação, você também é veterinário, é justamente a pessoa indicada.

            _ Doutor, eu fico muito grato, mas não quero comprometê-lo. Sou um foragido, a polícia de todo o país está atrás de mim.

            _ Nunca o encontrarão na minha fazenda na Ilha de Marajó. Quem o procuraria lá? Quem?

            _ ...

            _ Carlos, você salvou a vida do meu filho. Se você não estivesse aqui, agora eu teria um filho a menos. Não quero ouvir um não como resposta!

            _ Vou pensar na proposta do senhor.

            _ Então pense e me dê um sim como resposta amanhã mesmo.

* * * * *

            No finalzinho da tarde de sexta-feira chegou à fazenda uma camionete trazendo o músico Zé Geraldo e seu guitarrista Jean Trad. O próprio Dr. Alfredo foi recebê-los.

            _ Como vai, meu caro Zé? – perguntou Dr. Alfredo.

            _ A gente vai indo, doutor. E o senhor?

            _ Bem, muito bem, ainda mais agora que vocês chegaram. Como vai, Jean?

            _ Bem, doutor.

            _ Como foi a viagem? Vocês devem estar cansados, com fome.

            _ Tô mais precisando esticar as pernas – disse Zé Geraldo.

            _ Então, vamos dar uma volta pela fazenda – convidou Dr. Alfredo.

            Fui apresentado aos artistas e logo após saímos os quatro a caminho do lago artificial próximo aos pés de laranja. Dr. Alfredo criava vários tipos de peixe: pacu, tambaqui, tambacu, tilápia, piau, matrinxã, tucunaré. Ele sempre dizia que o peixe mais saboroso de água doce era justamente este último. Realmente, como pude comprovar na primeira noite dos dois artistas na fazenda Recanto das Amendoeiras, o tucunaré é um peixe de sabor único.

            Dr. Alfredo conhecia Zé Geraldo há muitos anos, desde 1977, antes mesmo do artista estourar em todo o Brasil com a música Cidadão. Desde então, os dois sempre mantiveram contato por pura afinidade intelectual, coisa difícil de se imaginar entre um artista de renome nacional com sua letras políticas contra os poderosos, e um bem sucedido advogado e pecuarista. Mas quando os dois estavam juntos era como se todas essas barreiras fossem rompidas e, diante dos olhos incrédulos dos presentes, apenas dois homens, desnudos de rótulos, proseavam.

            _ Zé, você já deve ter ouvido alguma coisa sobre o médico veterinário que escapou de um presídio lá no Rio de Janeiro.

            _ Ah, um tal de... não sei o quê Cesario?

            _ Esse mesmo. Você está diante do próprio.

            Zé Geraldo e Jean levaram um susto, seus rostos ficaram pálidos, mas antes mesmo de pronunciarem uma frase sequer, Dr. Alfredo contou-lhes toda a minha história.

            _ Homem, você está comendo o pão que o Diabo amassou – disse Zé Geraldo.

            _ Pois é, seu Zé Geraldo – eu disse.

            _ Vamos deixar o Seu lá no céu, me chame de Zé como todo mundo.

            Fomos dormir bem tarde, mesmo tendo no dia seguinte a grande festa de aniversário do Dr. Alfredo. Zé Geraldo tocou algumas músicas em seu violão preto. Pedi para que cantasse Senhorita e, pela primeira vez, ouvi a canção favorita da minha mulher ao vivo. E isso só me deu mais saudade ainda daquela que é a dona do meu coração.

* * * * *

            Acordei antes que todos da casa principal. Mesmo tendo dormido tão pouco, menos de cinco horas, estava com uma disposição fora do normal. Osano estava voltando do curral com dois baldes de leite.

            _ Bom dia, Carlos!

            _ Bom dia, Osano! Parece que vai fazer um dia bonito.

            _ É, parece mesmo. Mas o Dr. Alfredo merece. Vou levar o leite pra Liana coar e dar uma fervida. Depois levo lá pra vocês.

            Fui dar uma volta pela fazenda, peguei algumas amoras, o que me fez pensar nas cores e seus significados. A amora quando está vermelha é azeda, ainda está verde; quando está preta é doce, está madura. O verde, o vermelho, o preto. Devaneio em uma manhã na roça...

            Olhei as galinhas, galinhas de cores sortidas que ciscavam à minha volta. Como são bonitas as galinhas caipiras, como são diversos seus tipos, algumas de pescoço pelado, outras de porte bem pequeno, chamadas garnizés, frangos desajeitados com suas longas penas, galos imponentes com seus cantos duelistas. Quem canta mais alto é o dono do pedaço!

* * * * *

            Dr. Alfredo acordou umas duas horas depois de mim, foi logo convocando seus empregados e dando ordens a cada um. Todos estavam empenhados para que tudo desse certo, e não era só porque era a festa de aniversário do patrão, mas de um home que sempre agira corretamente com seus funcionários, amigos, com quem quer que fosse, indistintamente da posição que a pessoa ocupasse na sociedade. Aliás, o proprietário da fazenda Recanto das Amendoeiras é do tipo que se sente à vontade desde quando está tomando um cafezinho na casa do mais humilde dos homens até em companhia da casta mais fina da sociedade. E esse homem, antes que alguém possa insinuar, não tem qualquer pretensão política.

            Zé Geraldo e Jean levantaram quase que na mesma hora. Eu e o advogado estávamos conversando com Osano a respeito dos últimos ajustes antes da festa, quando os dois apareceram. Zé Geraldo estava com seu inseparável boné, Jean também estava com um.

            _ Bom dia, rapazes! Dormiram bem?

            _ Muito bem, doutor – respondeu Jean.

            Fomos os cinco dar uma volta para ver se estava faltando alguma coisa. Tudo perfeito! Em menos de uma hora começariam a chegar os convidados. Dr. Alfredo já havia mandado acender as churrasqueiras, depois foi tomar um banho e se aprontar para a festança. Zé Geraldo e Jean aproveitaram para irem prosear um pouco com os peões da fazenda.

            Quando os convidados foram chegando, o aniversariante foi recebê-los um a um. Os presentes que o advogado ganhava eram os mais diversos, desde um frango até um jegue, que acabou recebendo o nome do ofertante: Geraldo. Dr. Alfredo quase teve um enfarte de emoção quando recebeu o animal, que seu Geraldo, um cearense de Sobral, trouxera de sua terra especialmente para o advogado.

            Um dos últimos convidados a chegar foi o detetive Celso, que veio acompanhado de sua namorada, Marilda. Depois de conversar com o aniversariante, veio me contar como andavam as investigações dos três mosqueteiros. Na verdade não havia muita coisa a ser dita, mas mesmo assim foi muito bom revê-lo depois de tanto tempo.

            Lá pelas tantas, Dr. Alfredo pediu a atenção de todos para anunciar seus dois amigos artistas. Foi um festival de hurras vindas de todos os pontos. Zé Geraldo agradeceu os aplausos entusiasmados da animada plateia com um sonoro “boa tarde, Taboquinha”. Em seguida começou a cantar seus maiores sucessos, e todos pareceiam saber as letras, pois havia um coro afinado acompanhando o grande artista. E quem não era fã de Zé Geraldo, com certeza, a partir daquele dia começou a viver embalado pelas canções do cantor nascido em Rodeiro – MG.

Adeus, Taboquinha

            No dia seguinte à festa, um domingo, acordei por volta das 10h. Osano estava comandando a arrumação de toda a bagunça do dia anterior. Peguei uma vara de pescar e me dirigi ao lago. No caminho catei umas minhocas. Coloquei uma das mais graúdas no anzol e lancei a linha na água serena do lago, formando vários anéis de ondas. Não demorou muito e senti um forte puxão, o que me deu a certeza de ter fisgado um pacu, tambaqui ou tambacu dos grandes. Lutei com o respeitável peixe por uns bons 10 minutos, a vara formava um arco tão fechado parecendo que não ia aguentar, a linha esticada ao máximo. Finalmente o meu adversário começava a dar sinal de cansaço, eu ia guiando-o de um lado ao outro, ele começava a nadar meio tombado, seus olhos fitavam os meus parecendo querer dizer que dessa vez, somente dessa vez, eu havia ganho. Entrei na água para me aproximar do peixe, toquei seu corpo forte e escorregadio, peguei-o no colo e calculei seis, sete quilos. Retirei o anzol com cuidado para não feri-lo ainda mais. Soltei o formidável adversário das águas. Era um pacu.

            _ Bom dia, Carlos – era o Dr. Alfredo, que há algum tempo me observava.

            _ Bom dia, doutor.

            _ Lindo peixe.

            _ É, muito lindo. Deu muito trabalho pra domá-lo.

            _ Era um pacu, papai? – perguntou Ana Maria, filha do advogado.

            _ Era, Aninha, igual àquele que você pescou comigo. Carlos, você já tem uma resposta quanto àquilo que lhe perguntei?

            _ Doutor, acho que vou aceitar.

            _ Muito bem! Olha, hoje à tarde volto pra Brasília, mas devo estar de volta na quarta-feira. O Jean vai comigo, mas o Zé vai ficar por alguns dias. Ele mora em São Paulo, quer descansar um pouco do agito da cidade. Depois ele vai pra Óbidos, no Pará. O meu avião o levará. Haverá uma escala em Porto Velho, Rondônia, onde tenho uma fazenda de gado de corte, pra resolver algumas coisas. Em dois, três dias no máximo, creio eu, o avião já poderá seguir viagem. Depois de deixar o Zé em Óbidos, o piloto vai pra minha fazenda na Ilha de Marajó. Então, você topa?

            _ Claro, doutor!

            Zé Geraldo vinha se aproximando com uma faca e uma laranja na mão. Estava só, Jean continuava dormindo.

            _ Bom dia, senhores – Zé nos cumprimentou.

            _ Bom dia, Zé – todos responderam.

            _ É, acho que o Jean exagerou na esbórnia, pois do meu quarto dá pra ouvir o seu ronco – disse o cantor, e todos riram.

* * * * *

            Zé Geraldo estava bastante animado com o show que iria fazer em Óbidos. Depois seguiria para Santarém, Altamira, Marabá e, finalmente, Belém. Do Pará para o Maranhão, passando por diversas cidades. Era a sua maior turnê desde o início da década de 80.

            Cavalgamos juntos nos dias seguintes. Zé Geraldo conhecia a fazenda há alguns anos, mas sempre era como a primeira vez, tamanha sua paixão pelo lugar.

            _ Meu irmão, adoro isso aqui!

            _ Realmente é tudo muito bonito, Zé.

* * * * *

            Na quarta-feira à noite Dr. Alfredo retornou à fazenda. Ele veio acompanhado do piloto Samuel Machado (nenhum parentesco com o detetive Celso), um homem de seus 40 e poucos anos, voz de trovão, aparência séria, mas alma brincalhona. Jantamos galinha ao molho pardo que Liana havia preparado, bebemos vinho tinto, fomos dormir cedo, não muito depois das 21h.

            Na manhã seguinte acordei e encontrei o advogado e o piloto tomando café. Zé Geraldo continuava dormindo. Cumprimentei os dois, passei manteiga em uma fatia de cão, preparei um pouco de café com leite e me sentei à mesa. Antes mesmo de eu acabar, os dois saíram e foram ter com Osano. Zé Geraldo apareceu e perguntou pelo Dr. Alfredo, respondi. Ele também se serviu e, então, saímos para nos despedir do pessoal da fazenda. Encontramos Dr. Alfredo e o seu piloto.

            _ Tudo pronto pra vocês partirem – disse Dr. Alfredo.

            _ A que horas podemos ir? – perguntei.

            _ É só colocar a bagagem de vocês no avião – respondeu o advogado.

            Zé Geraldo e seu fomos pegar as nossas coisas e colocamos no avião, um bimotor. Em menos de uma hora estávamos prontos para partir. Nos despedimos do Dr. Alfredo, que nos abraçou da forma mais amiga possível. Entramos no avião, que já estava com o motor ligado. Acenamos para todos que estavam presentes, o avião foi se movimentando aos poucos, depois foi aumentando a velocidade até ganhar o ar. Samuel deu uma volta sobre a fazenda, quando aproveitamos para acenar uma última vez para nossos amigos. Adeus, Taboquinha, adeus, povo simples de Goiás!

A caminho da Ilha de Marajó

            O avião do Dr. Alfredo tinha autonomia de voo para oito horas, a viagem até Porto Velho era de mais ou menos cinco. Durante o percurso eu ia maravilhado com a paisagem. A viagem num bimotor é muito mais linda do que em um boing, pois o avião não chega a alturas tão elevadas, a paisagem é muito mais nítida.

            Samuel ia nos informando sobre os locais que íamos sobrevoando. Passamos pelo estado do Mato Grosso até chegarmos em Rondônia. Florestas, rios, cidades, povoados, fazendas, passamos por tudo isso, numa verdadeira turnê por essa região pouco conhecida pela maioria dos brasileiros. Avistamos a pista de pouso na fazenda São Sebastião por volta das 14h. Assim que aterrissamos, um pequeno grupo de peões veio nos receber. Gente simples como a que deixamos em Taboquinha.

            Seguimos direto para a sede da fazenda, onde almoçamos um delicioso prato: rabo de jacaré à milanesa, arroz, feijão tropeiro, salada. Nunca havia comido jacaré, é uma carne com gosto de... parece peixe, mas não dá para confundir. “Carne de jacaré tem gosto de jacaré”, disse Samuel. Fico com a opinião do piloto.

            Ficamos dois dias com aquela gente. Zé Geraldo cantou suas canções nas rodas de violeiros à noite, aprendeu outras. “Foi uma troca generosa de informações, onde eu saí vitorioso”, disse um humilde Zé Geraldo. Na minha opinião o vitorioso fui eu de presenciar um grande artista de renome nacional ao lado de outros anônimos, mas nem por isso menos maravilhosos.

            Partimos no sábado logo cedo, rumo à Óbidos, no Pará, onde daríamos adeus ao nosso companheiro de viagem Zé Geraldo. Promessas de um dia voltarmos a Porto Velho não faltaram. Promessas...

* * * * *

            Entramos na Amazônia em pouco tempo em pouco tempo. As árvores com suas copas majestosas iam tomando conta da paisagem, formando um imenso tapete verde abaixo de nós. Eu nunca tinha visto essa floresta a não ser através da televisão ou fotografias em livros e revistas. Não é a mesma coisa, posso lhe garantir. A Amazônia só é a Amazônia quando a gente tem a oportunidade de apreciá-la ao vivo. Bate uma emoção tão grande, um orgulho incontido de ser brasileiro. Linda, inacreditavelmente linda!

            Em algumas horas avistamos o rio Amazonas, o mais caudaloso do mundo, como aprendemos na escola. Suas águas parecem sentir que estamos observando seu curso, como se fosse um daqueles garbosos cavalos de circo. Óbidos estava a menos de 200 quilômetros, segundo o piloto.

            De repente ouvimos um barulho estranho, Samuel nota que está saindo fumaça de um dos motores, as chamas não demoram a aparecer, o piloto age rápido e corta o fornecimento de gasolina para aquele motor. Ficamos apreensivos, principalmente Zé Geraldo e eu. O piloto aciona um dispositivo que lança água no motor, apagando o fogo. Logo tudo parece estar sob controle, até o outro motor começar a ratear e, finalmente, parar.

            _ Amigos, apertem os cintos, pois teremos de fazer uma aterrissagem forçada – informou Samuel.

            Zé Geraldo e eu obedecemos prontamente a ordem do comandante. Estávamos temerosos, esperando pelo pior. Toda a minha vida passa pela minha mente em questão de segundos. Penso que cheguei ao fim da linha, que tudo acabou. Samuel tenta planar o avião sobre o rio Amazonas, que está cada vez maior com a nossa perda de altitude. Todos berramos ao mesmo tempo quando o avião tocou as águas do grande rio. Samuel tenta levantar o nariz do avião, estávamos a uma velocidade incrível, a água do rio espirra para todos os lados como se estivéssemos em uma lancha. Um forte estrondo nos anuncia o choque da aeronave em um banco de areia a menos de 10 metros da margem do rio. Um minuto de silêncio, não consigo pronunciar uma palavra sequer, nem um som.

            _ Estão todos bem? – perguntou Samuel.

            _ Creio que sim, meu irmão – respondeu Zé, enquanto me observava ao seu lado.

            _ Bem, acho que quebrei a perna – disse o piloto.

            Zé Geraldo e eu, então, descobrimos que a perna esquerda do Samuel estava presa nas ferragens do avião, que estava meio de lado. Da sua testa escorria uma quantidade razoável de sangue. O cantor e eu estávamos praticamente ilesos, graças à perícia do piloto do Dr. Alfredo.

            Conseguimos livrar Samuel das ferragens, confirmei a fratura na sua perna. Fiz um curativo na testa do piloto. Ele tentou fazer contato através do rádio, mas este fora danificado em decorrência da queda do avião.

Uma visita inesperada

            Observamos a região antes de tomarmos qualquer atitude. Mata, tudo era mata ao nosso redor. Teríamos de procurar ajuda, mas antes precisávamos sair do avião. Haveria algum povoado nas proximidades?

            Assim que consegui abrir a porta do avião para sairmos, um enorme jacaré tentou abocanhar meu braço. Por questão de centímetros o animal não consegue a sua refeição, cheguei a sentir o bafo da fera. Tombei meu corpo para trás, caindo em cima do Zé Geraldo.

            _ Temos visita – informei.

            _ Eu vi, meu irmão, eu vi. Como passaremos por ele? – perguntou Zé, branco de medo.

            _ Não sei, não tenho a mínima ideia.

            _ O que está havendo, Carlos? – quis saber Samuel.

            _ Um jacaré do tamanho deste avião está querendo fazer da gente o seu almoço – respondi.

            _ É um jacaré-açu, essa região está cheia deles – disse o piloto, sem mesmo ter visto o animal.

            _ Temos alguma arma no avião, Samuel? – perguntou Zé.

            _ Não.

            _ O que temos, então?

            _ Ainda não sei, Zé, mas vamos pensar em alguma coisa.

            O sol estava alto, o calor ali dentro do avião começava a ficar insuportável. Abrimos as duas janelas laterais e quebramos alguns vidros para correr um pouco de ar. Eu tinha um pedaço de bolo que o pessoal da fazenda São Sebastião havia me dado. Dividi com meus companheiros aquela que foi a nossa primeira refeição na floresta.

* * * * *

            _ Dez metros! É mais ou menos essa a distância que temos de ultrapassar pra chegarmos à margem do rio. E o que temos? Aparentemente nada que possa nos levar em segurança pra lá. Precisamos matar o jacaré. Mas como? Não temos arma, só uma faca e um canivete suíço. Não, isso funciona só nos filmes do Tarzan. Os cintos, claro, os cintos!

            _ O que você está ruminando aí, homem? Quer dar uma surra de cinto naquela fera? – ironizou Zé.

            _ Estou pensando numa maneira de chegarmos à margem em segurança – respondeu Samuel.

            _ E como faremos isso? – perguntei.

            _ Vamos prender o monstro!

            _ Mas como? Com o quê? – voltei a perguntar.

            _ Vamos amarrá-lo com os nossos cintos e os do avião.

            _ Você está maluco, homem?! Esse bicho tem mais de cinco metros e vai fazer a gente de refeição antes mesmo da gente conseguir chegar à margem – protestou Zé Geraldo.

            _ Zé, sei que o bicho é grande, sei que os cintos não vão segurá-lo por muito tempo, mas penso que teremos tempo suficiente pra atravessarmos o rio.

            _ Tá, vamos supor que você esteja certo, mas como iremos prender o jacaré. Com certeza ele não é um cachorrinho que chamamos e colocamos uma coleira – ironizei.

            _ Já pensei nisso também, Carlos. Vamos atraí-lo pra nós e, então, laçaremos o bicho.

            Como ninguém apresentou uma alternativa melhor, arrancamos nossos cintos e os do avião, fizemos uma tira de mais ou menos quatro metros. Fizemos um laço em uma das pontas e amarramos a outra extremidade no manche do avião. O nosso visitante inesperado exibia toda a sua poderosa carapaça negra com manchas amarelas transversais enquanto nadava lentamente ao redor do avião, numa paciência oriental até a primeira oportunidade de cravar sua enorme mandíbula nas nossas carnes. Seus dentes à mostra pareciam os de um lutador de boxe ante a plateia após ter nocauteado seu adversário, um sorriso sarcástico, um sorriso diabólico, o sorriso do rei do rio, o sorriso do jacaré-açu.

            Peguei minha mochila e voltei a abrir a porta do avião, o que logo chamou a atenção do jacaré. Ele veio em minha direção. Zé Geraldo estava com o laço na mão. Saí do avião e subi em uma das asas. Joguei minha mochila na margem do rio. A colossal fera deu um encontrão na lateral do avião, o que acabou me desequilibrando, quase caí na água, onde com certeza não teria chance alguma contra meu adversário. Tornei a me levantar, a fera ergueu a enorme cabeça, balançando-a de um lado para o outro, a bocarra aberta. O bicho foi surpreendido pelo laço certeiro do Zé. Era o momento de agir. O cantor puxou Samuel para a água, também pulei no rio, indo ajudá-lo a carregar o piloto. Não estávamos em um local profundo, não mais de 1,5m, pois a água batia em meu peito. A adrenalina jorrava em nossas veias, a fera se debatia tentando se soltar, nós a poucos metros do nosso destino, Zé Geraldo gritou que o gigantesco animal havia se soltado, o que fez com que acelerássemos mais ainda os passos. Nossos pés escorregavam na lama no fundo do rio, a qualquer momento esperávamos pela mandíbula do jacaré-açu cravando seus dentes em nossas pernas. Finalmente chegamos às margens quando o monstro apareceu e, mesmo fora da água, tentou nos pegar. Tivemos de nos afastar por quase 10 metros da margem até o nosso caçador desistir e voltar para as águas do rio Amazonas. Caímos exaustos, a respiração ofegante, estávamos vivos.

            _ Samuel, você é um homem muito corajoso... maluco!

            _ Obrigado, Zé!

Na floresta

            Peguei dois galhos grossos e uma atadura na minha maleta e, com a ajuda do Zé, fiz uma tala na perna quebrada do Samuel (este soltou alguns palavrões, que não valem a pena mencioná-los, quando puxamos sua perna para colocar os ossos no lugar). Apliquei-lhe uma injeção de antibiótico e outra de aintiinflamatório, o que ajudou meu amigo a suportar melhor a dor. Depois de tratarmos do Samuel, Zé e eu fomos providenciar um abrigo para passarmos a noite, que já estava se aproximando. Entramos mais uns 20 metros na mata, onde fizemos um abrigo usando meu cobertor e algumas peças de roupa. Catamos alguns galhos e providenciamos uma fogueira, muito mais para manter os animais afastados do que para nos aquecer. Não tínhamos o que comer, pois quando decolamos em Porto Velho não pretendíamos ficar perdidos em plena floresta amazônica. Adormecemos.

* * * * *

            Acordei com os gemidos de dor de Samuel. Ele estava ardendo em febre. Apliquei uma injeção de antiinflamatório, uma de antibiótico e outra de antipirético. Zé Geraldo acabou acordando também.

            _ Puxa, pensei que tivesse tido um pesadelo, mas já estou vendo que tudo é real, meu irmão.

            _ Muitas vezes a realidade é um pesadelo, Zé – filosofou Samuel.

            _ Precisamos comer alguma coisa. Você conhece alo que possamos comer, Samuel?

            _ Carlos, se vocês conseguirem pegar algum animal, qualquer coisa, a gente já estaria com sorte.

            _ Bem, vou tentar achar alguma coisa pra gente comer. Zé, você fica aqui com ele.

            _ Tudo bem, mas não vá muito longe, meu amigo.

            _ Pode deixar, não pretendo ficar mais perdido do que já estamos.

            Peguei minha faca e fui explorar um pouco a área. Tomei o cuidado de marcar com a faca os troncos das árvores por onde eu ia passando para não perder o caminho de volta. Tentava olhar o céu, mas era difícil enxergar através das copas das árvores, já que a mata é muito fechada. Se por acaso houvesse uma busca, dificilmente seríamos encontrados, pensei.

            Não sei quanto tempo andei pela floresta, a gente acaba perdendo a noção do tempo. Caminhava com os olhos e ouvidos atentos a qualquer movimento, a qualquer som estranho, se bem que tudo era novidade para mim. Tentava encontrar algo que servisse de alimento. Olhei alguns pássaros, mas pegar um não é obra tão fácil assim. Também avistei um grupo de macacos, joguei algumas pedras para ver se acertava um, mas só o que consegui foi assustá-los, eles logo fugiram para não sei onde. Quando resolvi voltar, estava de moral baixo, sabia que meus amigos haviam confiado em mim, e eu estava de mãos tão vazias quanto nossos estômagos. Para minha surpresa, encontrei os dois tirando o couro de uma cobra enorme, mais de três metros.

            _ É uma sucuri. Ela estava ali sob aquele tronco. O Zé pegou um pedaço de pau e acertou-a em cheio na cabeça.

            _ Então, o Zé é daqueles que mata a cobra e mostra o pau?! – brinquei.

            Todos rimos, chegamos até mesmo às gargalhadas. Talvez você ache exagero, a piada é tão antiga, você pode dizer. Só que você está se esquecendo que não estávamos tomando um chope no bar da esquina. Estávamos perdidos na floresta amazônica.

            Seja como for, graças ao Zé tínhamos alimento suficiente por pelo menos uns três dias. Depois de tirarmos o couro e as vísceras do réptil, colocamos toda a carcaça para assar. Se fôssemos assar aos poucos, a carne acabaria apodrecendo, pois não tínhamos como conservá-la. Não tínhamos tempero, e carne de cobra sem tempero é horrível, mas não estávamos em condições de escolher o cardápio.

* * * * *

            Os dias iam passando, as dificuldades se sobrepondo. Zé Geraldo já é um homem magro, ficou esquálido; Samuel, normalmente rechonchudo, perdera borá parte da barriga; eu perdi alguns quilos também, mas, talvez por ser mais jovem, continuava relativamente em forma. Nossas refeições já não eram tão generosas quanto a do segundo dia na floresta, agora se restringiam a algumas raízes, ovos de pássaros, insetos, larvas. Cheguei a pensar naquele grande jacaré que tentou nos devorar, pensei nele em uma grande bandeja. Delírios de um perdido na floresta, faminto.

            A perna do Samuel estava aparentemente boa, ele já andava sozinho, mesmo que mancando. Samuel tinha mais noção do que Zé e eu sobre direção, era piloto e conhecia a região, mesmo que do alto. Tínhamos de sair dali, disse nenhum de nós discordava, pois do contrário acabaríamos morrendo.

            _ Meus amigos, amanhã começaremos a nossa caminhada. Óbidos fica a cerca de 200 quilômetros daqui. Antes disso, com certeza, encontraremos alguma vila.

            _ Duzentos quilômetros não é tão longe assim – eu disse.

            _ Carlos, uma coisa é andar 200 quilômetros na estrada, outra, completamente diferente, é fazê-lo em plena mata – Samuel me corrigiu.

            No dia seguinte começamos nossa caminhada, sempre usando o rio como referência, mas não a menos de 10 metros de distância da margem, pois não queríamos um novo encontro com um jacaré-açu ou uma sucuri, que nessas águas costumam ser bem maiores do que aquela que o Zé havia matado.

            Caminhávamos uns cinco quilômetros por dia, eu  acho, pois não dá para ter noção de quanto se anda em uma mata fechada, pelo menos nós três não tínhamos, talvez por pura falta de experiência.

            Samuel foi o primeiro a fraquejar, sua perna voltou a doer, apliquei-lhe uma injeção de antiinflamatório. Teríamos de carregar nosso amigo. Zé e eu fizemos uma espécie de maca com galhos, folhas e algumas roupas para carregar o piloto. Agora nossas caminhadas se tornaram mais lentas e cansativas. A pouca quantidade de alimento ia nos enfraquecendo cada vez mais. Eu tinha perdido uns 20 quilos, Zé Geraldo uns 15 e Samuel uns 25 ou mais.

            Não me lembro de quantos dias caminhamos, uns seis, sete talvez, até que resolvemos descansar. Quando chegou a manhã do dia seguinte, não tínhamos forças suficientes para retomar a caminhada. Olhávamos ao redor, quase não tínhamos forças para sequer conversar, nossas palavras eram balbuciadas. Desmaiamos, não sei quem foi o primeiro, talvez tenha sido eu, não sei.

* * * * *

            Senti alguém molhando meus lábios com algo adocicado, talvez suco de framboesa. Tentei abrir os olhos, mas eles estavam pesados como chumbo. Vozes inteligíveis inundavam meus ouvidos.

            Não sei quanto tempo se passou, mas numa manhã voltei a ter a sensação de alguém mexendo em meus lábios, abri os olhos e percebi um vulto de rosto redondo, olhos puxados como os de um oriental, cabelos lisos e pretos como uma graúna, pele mais escura do que a minha. O vulto sorriu e pronunciou algumas palavras que não pude entender. Depois saiu e logo voltou como outros vultos parecidos com ele. Esses outros vultos também pronunciaram palavras estranhas. Todos os vultos também sorriam e falavam ao mesmo tempo. Só então percebi que eram índios. Eu estava numa aldeia de índios. Tentei levantar, mas minhas pernas fraquejaram e só não caí porque fui amparado por aquelas pessoas, que voltaram a me deitar na rede onde eu estava.

            Tentei me comunicar, mas ninguém parecia me entender. Queria saber dos meus amigos. Estariam vivos? Ninguém me compreendia. Uma índia de seus 15, 16 anos – presumi pelos seus traços jovens – me trouxe um pouco de peixe e uma papa, talvez de mandioca. Outra índia, um pouco mais jovem – seus seios ainda estavam em formação – me ofereceu um pouco de água.

            Passei umas duas horas na rede recebendo os cuidados daquela gente. Novamente tentei me levantar e, caso não fosse pela ajuda das duas jovens índias que estavam tratando de mim, voltaria a tombar. Apoiado nos ombros das duas, saí, da oca e pude ver a aldeia onde me encontrava. Cinco ocas abrigavam 29 índios, entre seis meses até mais ou menos 60 anos. Todas essas idades, claro, são presumíveis, pois eles não tinham registro de nascimento nem calendário. Logo avistei o Zé num canto conversando com um grupo de homens. Conversando é modo de dizer, pois logo percebi que eles não entendiam muito bem o que meu amigo falava, mas pareciam gostar, já que a cada frase do Zé se seguia um uníssono de gargalhada. Assim que ele me viu acenou para que eu me aproximasse.

            _ Olá, Carlos! Estive na sua oca, mas você estava dormindo. Como você está?

            _ Bem, meu amigo. E o Samuel? Onde ele está?

            _ Ele está bem. Essa boa gente está cuidando de sua perna. Mais uns dias e ele estará pulando como um canguru. Vamos lá vê-lo.

            Eu já estava me sentindo melhor, não precisava mais de me escorar nas duas índias para me manter em pé. Zé e eu acenamos para nossos amigos índios, que nos acompanharam até a oca onde Samuel estava. Logo que nos avistou, o nosso amigo piloto deu uma sonora gargalhada de trovão.

            _ Carlos, até que enfim! Pensamos que você havia sido picado pela mosca do sono – brincou Samuel.

            Conversamos por um bom tempo. Nossos anfitriões tentavam se comunicar, participar da conversa, mas não entendíamos aquela língua. Zé era o único que, raramente, compreendia o que os índios queriam dizer.

            _ Carlos, essa gente não tem contato com o homem branco, pelo menos é o que está parecendo, já que não possuem um só hábito da nossa cultura. Quem poderia imaginar que ainda existem índios como no tempo do descobrimento do Brasil? – Zé indagou.

            _ Mas nós não estamos próximos a Óbidos? – questionei.

            _ É o que parecia, Carlos, mas um bimotor não dispõe dos mesmos recursos que um boing para precisarmos o local onde estamos sobrevoando. Provavelmente eu estava enganado quando disse que estávamos a mais ou menos 200 quilômetros de Óbidos – confidenciou o piloto.

            _ Entendo... Mas, então, onde estamos?

            _ Carlos, a única certeza é de que se seguirmos o curso do rio acabaremos chegando a Óbidos, que fica às margens do Amazonas – Samuel respondeu.

            _ E como chegaremos lá? A nado?

            _ Não, Carlos, claro que não, ainda mais com esses jacarés inundando essas águas – protestou Zé.

            _ Iremos construir um barco – disse Samuel.

            _ Um barco? Mas como, Samuel?

            _ Carlos, olha, temos madeira suficiente por aqui. Você concorda?

            _ Puxa, e como temos – concordei.

            _ Pois é, com a ajuda dessa gente construiremos um barco e desceremos o rio.

            _ E você sabe construir um barco? – questionei.

            _ Antes de ser piloto trabalhei na Marinha. Conheço um pouco de embarcações. Tenho até uma lancha, meu amigo.

            _ Você é um homem de mil facetas, Samuel. Comandante do céu e do mar. Tem alguma coisa que você não faça?

            _ Fritar um ovo, Carlos. Não sei fritar um ovo.

* * * * *

            Como Zé Geraldo havia previsto, Samuel logo estava pulando como um canguru. O piloto, agora nosso capitão, chamou nossos amigos indígenas e fez um desenho de um barco na terra. Eles pareceram entender, pois vários apontaram para o rio, de onde, com certeza, já haviam visto algumas embarcações. Depois ele desenhou cada uma das partes do barco e tentou lhes dizer que precisávamos daquelas coisas para montar a nossa embarcação. Eles entenderam, depois se levantaram e apontaram para a floresta, de onde poderiam providenciar tudo o que precisaríamos para construir o nosso barco. Os índios possuíam algumas canoas, mas preferimos não confiar muito nelas, pois achamos que, se um jacaré-açu quisesse, poderia facilmente virá-la com nós três dentro.

            Samuel acompanhou cada etapa da construção do barco e, no final de um mês, já tínhamos como chegar à civilização do homem branco. Um belo barco de seus 5m de comprimento por 2,5m de largura, com cobertura de 2,5m, tábuas transversais que serviriam de assento e três remos. O barco era de fundo quase chato, já que no rio não enfrentaríamos ondas como no mar. Colocamos o barco no rio e ele funcionou perfeitamente. Demos um pequeno passeio, inclusive levando nossos amigos índios. Claro, não carregamos mais do que seis pessoas em cada passeio, mesmo porque não queríamos correr o risco de afundar o barco e perder todo o trabalho de um mês.

            Resolvemos partir em dois dias. Não queríamos sair dali correndo, como três forasteiros ingratos. Aquela gente salvou nossas vidas, nos deu abrigo, nos ajudou a construir o barco e nada pediram em troca. Definitivamente não poderíamos sair correndo como ingratos.

            Participamos de todos os rituais da aldeia nos dias seguintes. Eles sabiam que íamos partir em breve e estavam tristes, queriam que ficássemos. Eles ficaram impressionados com a altura do Zé, que tem um pouco mais de 1,80m; pelos meus olhos claros; e pela voz de barítono do Samuel. Com certeza sentiríamos também a falta de nossos amigos.

            Quando chegou o momento da partida, colocamos nossas coisas no barco, nos despedimos de cada membro da aldeia. Foi um momento de muita tristeza para eles e para nós. Subimos no barco e quando já íamos nos afastando das margens, pedi aos meus dois amigos para voltarmos. Eles não entenderam, perguntaram se eu havia me esquecido de alguma coisa. Voltamos a encostar o barco na margem onde nossos amigos indígenas estavam. Peguei minha mochila e a joguei em terra.

            _ O que foi, Carlos? O que está fazendo? – perguntou Samuel.

            _ Vou ficar.

            _ Você está louco, homem?

            _ Não, Samuel. Deixei a loucura de lado quando resolvi ficar com essa gente que tão bem nos acolheu.

            _ Você tem certeza, meu irmão?

            _ Tenho, Zé. Só lhes peço uma coisa.

            _ Fale, meu amigo – Samuel quis saber.

            _ Digam pra minha família que morri na queda do avião.

            Meus amigos me abraçaram, choramos os três. Um vínculo muito forte havia se formado entre nós durante a luta pela sobrevivência. O barco foi se afastando, deslizando nas águas do Amazonas.

 

Epílogo

            Não me pergunte o porquê de eu ter desistido de voltar com meus amigos para a dita civilização, pois nem eu ainda sei. Talvez a falta de perspectiva de mudança da minha situação de condenado, talvez o cansaço de continuar a fugir sem destino, talvez por medo, talvez por eu ter encontrado um povo digno em sua mais pura essência. Não sei, talvez seja até mesmo a soma de todas essas coisas.

            Sinto falta da minha família, minha mãe, minha mulher, minhas filhas. Não tem um só dia que não chore a ausência delas. Todas povoam diariamente meus pensamentos. Amo todas mais do que minha própria vida. Talvez tenha sido essa mesma a razão de querer ficar na aldeia. Elas sofrerão com minha falta, eu sei, mas não ficarão esperando em vão que um dia eu volte.

Fim

  •  Nota de esclarecimento: Entre 2005 e 2006, o romance "Despido de ilusões" foi o livro com maior solicitação de empréstimos de todo o acervo da biblioteca do Centro Cultural do Banco do Brasil.
  • O senador Marco Maciel, então membro da Academia Brasileira de Letras, teceu elogios ao livro "Despido de ilusões".