A família morava em um sítio em Luziânia,
município goiano próximo ao Distrito Federal. Viviam uma vida dura, mas ninguém
reclamava, pois todos, logo cedo, aprenderam que aquilo era desígnio de Deus.
Sem entendimento e tempo para pensar em contraditório, trabalhavam a terra
antes mesmo dos primeiros raios matutinos. Enquanto os menores capinavam e
plantavam, os maiores tratavam de tirar leite das parcas vacas, alimentar os porcos
e as galinhas.
Lá pelas dez horas, a trupe se recolhia para o alpendre, onde
almoçavam o que produziam. Se tivesse arroz, comiam arroz, se tivesse feijão,
comiam feijão, se tivesse ovo, comiam ovo, se tivesse carne, comiam carne, se
tivesse legume ou verdura, era o que comiam. Ninguém reclamava, pois a
penitência aos domingos seria severa, já que entendiam que esconder a verdade
era o mesmo que mentir.
Numa quarta-feira, quando o calor fazia o Cerrado querer rivalizar
com o do Saara, Bide estava com os filhos roçando um terreno para fazer a
plantação da época, o milho. Capina daqui, capina dali, mal dava tempo de tirar
o chapéu para abanar o rosto ou enxugar o suor com o dorso da mão. De repente,
o homem tombou sobre a terra vermelha.
— Pai, o sinhô tá bem?
— Pai!
— Pai!!
— Pai!!!
Nada
do sujeito sequer mexer os olhos, que estavam revirados. Desesperados, os
filhos carregaram o pai até debaixo do alpendre, onde o deitaram sobre a mesa.
Sabina pegou um pano e uma bacia com água e começou a passar na testa do
marido.
— Joaquim, corre lá no cumpadi Felismino!
E lá foi o primogênito até o sítio do vizinho, que era uma espécie de
enfermeiro, médico, curandeiro e até veterinário da região. Já na porteira, o
rapaz gritou para Felismino.
— Padinho, acuda aqui, traga injeção pra aplicar no pai, ele caiu
lá na roça e parece dismaiado.
Não tardou, Felismino, munido com sua maleta de primeiros socorros, se fez
presente diante do compadre Bide. O doutor mexeu daqui, mexeu dali, não sentiu
nenhum dos sinais vitais, o que lhe deu certeza de que nada traria de volta o
amigo. Mesmo assim, para ganhar tempo para contar a triste notícia para a
família, resolveu despejar um pouco de mistura de ervas entre os lábios do
defunto.
Aguardou
mais alguns minutos, até que viu que não tinha escapatória. Cada um carrega sua
cruz, e a dele, naquele momento, era revelar que Bide já não estava entre os
vivos.
— Cumadi, meninos, o cumpadi foi se encontrar com Deus.
Foi aquele chororô geral. Momento de tanta emoção, comadre Sabina
desmaiou. Até compadre Felismino, tipo acostumado às brutalidades da vida,
ficou tocado ao ver o amigo de tantos anos sem vida, os filhos entregues ao
desespero. Haja coração para também não sucumbir.
Joaquim, homem feito que era, logo montou no cavalo e saiu pela redondeza para
avisar que o pai havia falecido. Momentos depois, a casa começou a encher de
gente. As mulheres na cozinha preparavam a comida, enquanto os homens foram
providenciar madeira para fazer o caixão. O morto jazia numa cama de solteiro,
que fora colocada na sala.
Sabina, já recuperada do desmaio, chorava sem parar. Lamúrias pela
dúvida do futuro.
— O que vou fazer agora sem o meu Bide? Tô sozinha com oito filhos pra
criar.
Não faltaram palavras de conforto.
— Cumadi, graças a Deus, seus filhos tão tudo criado, não tem
nenhuma criança mais.
— É verdade, cumadi Sabina. Seus filhos vão te ajudar,
eles vão cuidar da lavoura, da criação.
Já era final de tarde quando o caixão ficou pronto, coberto
por um tecido roxo brilhoso. Arrumaram o morto de tal maneira, que até a viúva
pareceu satisfeita.
— Até que o meu Bide tá bonito dentro do caixão.
O corpo foi velado durante toda a noite, enquanto uma chuva torrencial
caiu sobre a região.
— Tá vendo, cumadi Sabina? Até Deus tá chorando por causa do
cumpadi.
Sabina, olhos marejados, concordava com a cabeça, enquanto se
agarrava ao corpo do marido.
Já amanhecendo, a chuva parou. Os homens foram abrir a
sepultura no cemitério da região, que ficava a duas léguas do sítio. Às onze
horas, saiu o cortejo fúnebre. Sabina precisou ser puxada pelos filhos para
apressar o passo, pois a última coisa que a mulher queria era enterrar seu
amado Bide.
Já no cemitério, as mulheres fizeram as últimas rezas,
enquanto o caixão foi depositado na cova. Sabina entrou em desespero e precisou
ser segurada pelos presentes.
— Bide, meu amor, me leva com você! Não vou aguentar ficar aqui sem
você! Me leva junto, por favor!
Nisso, a terra ao redor da sepultura,
que estava molhada, afundou um pouco e lá foi a viúva cair em cima do caixão.
Quando a mulher percebeu onde estava, entrou em desespero.
— Pelo amor de Deus, me tire daqui! Os meus filhos não
podem ficar sem pai e sem mãe. Me tirem daqui! Cruz-credo!
Os homens, que estavam mais perto, pularam em cima do
caixão, que deu um estalo. Tiraram a comadre Sabina lá de dentro. A viúva,
assim que se viu fora da cova, nem esperou que enterrasse o marido. Saiu
correndo para casa.
Aquele teatro virou piada por muitos
quilômetros ao redor. Até os mais próximos sorriam às escondidas, apesar de compadecidos
com a dor de Sabina. E, após quase um ano do enterro, compadre Felismino foi
tomar café no sítio da viúva.
— E aí, cumadi, a senhora queria ir embora com o cumpadi Bide, mas na
última hora desistiu.
— Cruz-credo, cumpadi! Naquela hora que caí naquela sepultura, me gelei
toda, meus ossos endureceram. Aquilo num é lugar pra vivo, não.
- Nota de esclarecimento: O conto "Comadre Sabina e o defunto" foi publicado por Notibras no dia 11/3/2025.
- https://www.notibras.com/site/historia-de-comadre-sabina-e-o-defunto-bide/
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