quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Birigui e as metáforas

    Birigui levava tudo ao pé da letra. Se ouvia dizer que alguém era que nem chiclete, ele imaginava a pessoa sendo mastigada até que lhe fizesse de bola, que estouraria de tanto assoprá-la. Não tardaria, seria cuspida. O moleque não entendia as metáforas da vida, mesmo por mais absurdas que fossem. 

    Os amiguinhos de Birigui, sabendo dessa sua característica, adoravam lhe pregar peças. Vale aqui lembrar da vez que ele ganhou de presente uma camisa do Fluminense. Ele, que era Botafogo, fez cara de poucos amigos, até que a sua mãe lhe disse: "Meu filho, cavalo dado não se olha os dentes!" Pra quê? Dizem que o menino ficou no quintal por três dias esperando alguém entrar portão adentro com um belo alazão. 

    Outra história que aconteceu foi quando ele assistia a uma aula de geografia. A professora disse para a turma que, caso fosse possível cavar um buraco até o outro lado do planeta, se chegaria ao Japão. Esse foi o estopim para que Birigui arquitetasse sua nova empreitada. 

    Mal chegou à sua casa, pegou seu baldinho e sua pá de plástico e foi direto pro quintal. Sua mãe parece que gostou de ver o filho entretido com aquela brincadeira, que ela mal sabia no que iria dar. A mulher até pensou em perguntar pro garoto o que ele estava fazendo, mas o feijão no fogo a impediu de fazê-lo. 

    Birigui começou a cavar um buraco, que, a princípio, mal dava para colocar o pequeno vira-lata da casa. No entanto, com o passar dos dias, já era possível o próprio menino se esconder ali com certo conforto. Não satisfeito, continuou a aprofundar ainda mais aquele buraco.

    Cavou tanto, que chegou do outro lado do planeta. Olhou aquele monte de gente de olhos puxados e pensou que estivesse na Liberdade, famoso bairro de São Paulo. Por mais incrível que aquilo fosse, Birigui havia chegado ao Japão. Se era realidade ou sonho, talvez até devaneio, não importava. Isto é, até que o menino começou a ficar incomodado com o próprio xixi, que agora ficara gelado e, então, despertou.
  • Nota de esclarecimento: O conto "Birigui e as metáforas" foi publicado pelo Notibras no dia 29/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/cavalo-dado-buraco-e-chegada-ao-japao/

 

domingo, 22 de outubro de 2023

Lyssa, a detetive mirim

    

    Lyssa! Incomum? Sim, é verdade, mas bem que o nome daquela menina combinava com seu jeito peculiar de enxergar o mundo ao seu redor. Uma verdadeira detetive, seja por conta do DNA herdado de algum antepassado curioso, seja por causa das diversas histórias de mistério que o avô adorava lhe contar. 

    Seis anos! Pouca idade? Talvez, mas nada que a impedisse de vasculhar por pistas para resolver os casos, que lhe surgiam como piolhos na cabeça de gente miúda. Sangue doce, alguns costumam dizer.

       Os coleguinhas da escola, assim que algo sumia, já sabiam a quem procurar. De tão confiantes com os ótimos serviços prestados pela Lyssa, esta era tratada a pão de ló. No entanto, naquele dia, algo mais urgente que lápis, borrachas ou lanches perdidos havia sumido. 

    Acreditem, pois o caso era realmente sério! Tanto é que foi a própria Maricota, a professora, que veio pedir socorro para a Lyssa. Isso mesmo que você ouviu! A professora! Mas voltemos alguns instantes antes disso acontecer. 

    Pois bem, lá estava a professora Maricota com um pacote cheio de folhas com desenhos de animais para que os alunos pudessem pintar. Ela distribuiu as folhas para os alunos, mas algo aconteceu. Não pense você que é mentira, mas todos os desenhos haviam desaparecido. Que mistério!

    _ Lyssa, não entendo! Eu imprimi tudinho ontem. 

    _ Hum. E conferiu, professora?

    _ Sim! Lá estavam o tatu, a coruja, o macaco, a onça-pintada e até o jacaré. 

    _ Hum. Estranho, mas posso pegar o caso.

    A professora apertou a mão da detetive, que, sem perder tempo, já retirou a lupa do bolso. Afinal, uma boa profissional precisa estar sempre preparada para o inesperado, que, vez ou outra, cisma em acontecer quando menos se espera. E não é que aconteceu de novo?

    A detetive pegou as folhas e as examinou uma a uma, sem deixar passar nem um centímetro quadrado sequer. Isso porque as pistas costumam se esconder nas minúcias, lição mais que aprendida após ter resolvido diversos casos. Que fosse um cisco, uma migalha, um risco ou um traço, aquilo poderia levar à solução do mistério. 

    A pequena Lyssa, após olhar com aqueles olhos de lince cada pedacinho daqueles papéis, encarou a professora. Esta, ansiosa por uma solução, não se conteve.

    _ Então? O que aconteceu com aquele monte de desenhos?

    _ Preciso ver a impressora que a senhora usou.

    Alguns minutos depois, lá estavam a professora e todos os alunos na sala da direção, onde se encontrava uma grande máquina de impressão. Lyssa, com sua providencial lupa à mão, observou toda aquela enorme estrutura que tem a função de fazer impressões atrás de impressões. 

    A detetive pegou uma cadeira para alcançar o local onde era colocado o molde para tantas cópias. Repousou a palma da mão sobre o vidro, ao mesmo tempo em que acionou o botão para impressão. A máquina estava funcionando, como provou a cópia da pequena mão da garota no papel que saiu na bandeja ao lado. 

    Lyssa pensou, pensou, pensou. Ela sabia que o problema não estava na impressora, que, como provado, funcionava perfeitamente. Enquanto isso, todos a observavam, certos de que ela seria capaz de resolver aquele mistério. 

    Inteligente como ela só, Lyssa, com ajuda da sua lupa da sorte, vasculhou toda a sala e, finalmente, pareceu resolver o mistério. Eureka! 

    _ Professora, por acaso a senhora esteve aqui hoje antes de ir para a sala de aula?

    _ Sim, Lyssa. Precisava pegar o pacote com os desenhos.

    _ Mais um caso solucionado, professora!

    _ Como assim?

    _ A senhora se confundiu ao pegar o pacote. Eis o que está com as folhas impressas. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Lyssa, a detetive mirim" foi publicado pelo Notibras no dia 22/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/lyssa-holmes-e-o-misterio-do-sumico-dos-bichos-na-aula/

    

sábado, 21 de outubro de 2023

A inacreditável jornada do violão de um certo rapaz de costeletas

    

    Há uma lenda de que, logo após se apresentar no Grand Ole Opry, de Nashville, no dia 2 de outubro de 1954, um certo rapaz de costeletas tenha sido aconselhado pelo empresário Jim Denny a desistir da carreira e voltar a ser motorista de caminhão. Em seguida, ainda de acordo com a narrativa, o cantor, já sozinho no camarim, teria, em um estado de fúria, estraçalhado o seu violão nas paredes. 

    Pois é, os restos mortais daquele instrumento teriam parado no lixo, caso não fosse por um detalhe. O faxineiro, de nome Arthur Johnson, ao contrário de Denny, teria ficado tão impressionado com a atuação do rapazola de costeletas e, por essas situações que acontecem somente a cada cem anos, resolveu catar aquelas lascas de madeira e levá-las para a sua casa. 

    O então jovem Arthur, apaixonado por quebra-cabeças, conseguiu, milagrosamente, juntar aqueles cacos. No entanto, ele, que não sabia fazer um dó, muito menos um lá e um mi, resolveu pendurar aquela preciosidade na parede do seu quarto. E ali ficou por um bom tempo.

    Arthur, alguns anos após, conheceu a bela Aretha James. Enamorados que estavam, casaram-se antes que a barriga da moça despontasse. Diante daquela correria, parece que todos acreditaram que Anna Mae havia nascido prematura, apesar dos 50 centímetros e quase quatro quilos. 

    O jovem casal, precisando de mais espaço, acabou por retirar vários objetos da casa, que não era das maiores. Tudo foi parar no porão, inclusive aquele instrumento de cordas. Os anos seguintes voaram, até que Arthur, já perto de completar 80, cerrou os olhos pela última vez. 

    Aretha até pensou em se desfazer da casa, mas a manteve por alguns verões. Acabou se mudando para a residência de sua filha, que morava ali no mesmo bairro. Quanto à sua casa, resolveu transformá-la em pouso para os viajantes. Dessa forma, conseguiu angariar alguns dólares para pagar as contas. 

    Pois bem, um desses peregrinos que passou por Nashville foi justamente um dos meus grandes amigos, o Marcio Petracco, que estava perambulando pelos Estados Unidos em busca de novos sons. Ao lado de outros músicos, o Marcio passou uma noite na tal hospedaria. Como estava com menos grana que os demais, acabou instalado no porão. 

    Já que lenda pouca é bobagem, aqui vai outra. Lá estava o meu amigo sonhando o sonho dos forasteiros. Tudo parecia tranquilo, até que ele começou a ouvir uma voz rouca e aveludada, que lhe soprou nos ouvidos: "Take the guitar! Take the guitar!"

    Assim que amanheceu, o Marcio despertou como se nada tivesse acontecido. No entanto, logo em seguida, ele se recordou daquelas palavras. Ele olhou ao redor e notou um amontoado de coisas num dos cantos do porão. Ergueu seu corpo e, para seu espanto, lá estava um violão debaixo daquilo tudo. Não teve dúvida, tratou logo de pegá-lo e, por impulso, o dedilhou. Ficou maravilhado com aquele som cheio de ecos, provavelmente por conta do ambiente quase hermeticamente fechado em que se encontrava. 

    Quando já estava de saída, o Marcio trocou algumas palavras com a velha Aretha, que pareceu ficar feliz por se livrar daquele violão. Ela até insitiu para que o meu amigo o levasse de graça. No entanto, ele retirou sete dólares do bolso e pagou pelo instrumento. Aretha sorriu, como se tivesse ganho na loteria, enquanto o Marcio, apesar de ter entregue todo o dinheiro que possuía, se sentiu o maior sortudo do mundo. Duro, é verdade, mas, mesmo assim, um sortudo!

    De volta a Porto Alegre, o meu amigo não desgrudava daquele instrumento. Ele passou a conhecer todo o corpo daquele violão, inclusive percebeu que havia as iniciais EP incrustadas logo abaixo do braço. É verdade que ele não se deu conta do significado daquilo por alguns meses, até que, finalmente, o Marcio, no meio de um dos seus shows, soltou um "Como sou burro! Aquela voz! É óbvio que o violão era dele!"

    Mas não pense você que essa história acaba por aqui. Afinal, nem tudo são flores, ainda mais quando o personagem é o Marcio Petracco. Eis que, num desses dias em que a tal Lei de Murphy está espreitando à espera de qualquer deslize, o meu amigo, inocente, puro e besta, resolveu levar seu violão para uma festa. O problema, diga-se de passagem, não era a festa, muito menos o violão, mas o meu amigo, que, naquele momento, tão raro em sua vida, se encontrava pra lá de Bagdá, com o nível etílico capaz de saturar o mais tarimbado dos etilômetros. 

    Para ir direto ao ponto, durante a festa, eis que o Marcio resolveu amarrar o violão em uma corda presa a uma árvore. Como não havia feito nó de marinheiro, não tardou, o instrumento despencou de uma altura de mais de dois metros e, pasmem, se estatelou todo no solo duro. Abriu-se uma cratera enorme no fundilho do violão.

    Não se pode dizer que o meu amigo tenha ficado triste por isso, já que nem se deu conta do ocorrido. Somente depois de alguns dias é que, ao se lembrar de procurar seu violão, é que se lembrou de que o havia levado para a tal festa. Foi atrás do dito cujo, quando, então, foi informado por um quase desconhecido, que lhe disse que o violão havia se quebrado todo e alguém o teria jogado na lata de lixo. 

    O Marcio, completamente desolado, sofreu pelos próximos oito anos. Ele se sentia culpado e, ao mesmo tempo, um completo desmerecedor de possuir tamanha relíquia. Todavia, como já dito anteriormente, lenda pouca é bobagem, eis que, nesses dias, aconteceu algo inesperado. 

    Pois é, lá estava o folclórico músico gaúcho em mais uma de suas apresentações, quando, então, precisou se hospedar em um motel de beira de estrada. De tão extenuado que estava, tratou logo de se deitar naquela cama fria e desconhecida. Não tinha motivos para sonhar, mas sonhou um sonho há muito sonhado. Isso mesmo, aquela voz rouca e aveludada lhe soprou novamente nos ouvidos as seguintes palavras: "Take the guitar! Take the guitar!"

    Na manhã seguinte, o Marcio acordou e, antes que chegasse a se levantar, se lembrou do sonho. Ele olhou ao redor, olhou debaixo da cama, mas nada de violão. Cadê? Ele se questionou. Tratou logo de arrumar as coisas para pegar a estrada quando, já na recepção, percebeu algo há muito desaparecido. Acredite ou não, lá estava o violão, aquele mesmo violão, todo empoeirado, pendurado em uma parede. 

    O meu amigo, com os olhos pregados naquele antigo companheiro, perguntou para a atendente quanto devia pela hospedagem. A moça respondeu e, em seguida, ela e o Marcio tiveram o seguinte interlúdio.

    _ E quanto devo pelo violão?

    _ Que violão?

    _ Aquele ali pendurado.

    _ Ah, você vai me fazer um grande favor se sumir daqui com ele.

    Se isso aconteceu exatamente desse modo, não posso lhe afirmar. No entanto, é assim que o meu amigo, o grande Marcio Petracco, me contou ontem aqui no cachorródromo do Tesourinha, na linda Porto Alegre. E, para completar, ele ainda me solta essa.

    _ Dudu, fiquei tão eufórico, que liguei na mesma hora para a minha mãe e lhe disse: That's all righ, Mama!

  • Nota de esclarecimento: O conto "A inacreditável jornada do violão de um certo rapaz de costeletas" foi publicada pelo Notibras no dia 21/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/jornada-sonora-do-violao-de-um-rapaz-de-costeletas/

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Amarildo, Ismênia e Filó

 

    Amarildo Almeida, no alto dos seus 80 anos, não era adepto de bebidas alcoólicas, apesar das iniciais do seu nome pudessem sugerir o contrário. Seja como for, de vez em quando, bebericava algo, mas apenas nas situações especiais. Uma tacinha de vinho tinto ou, então, aquela cervejinha estupidamente gelada durante os jogos importantes do seu Vasco. 

    O velho gostava mesmo era de caminhar acompanhado da sua inseparável Filomena, uma buldogue que havia ganho de sua filha há quase dois anos. Rechonchuda, a Filó, como era carinhosamente chamada, adorava os mimos que recebia daquelas mãos cada vez mais trêmulas. Quanto à esposa, a quase septuagenária Ismênia, esta parecia não gostar muito desse apego do marido por uma cachorra. Todavia, apesar de gostar de reclamar até de uma rara poeira sobre os móveis, preferia se manter muda nessa situação. 

   A vida daquele trio parecia destinada à mesmice, como se todos estivessem de acordo com os eventos. Amarildo levantava bem cedo para sair com a Filó, que saltitava de alegria no encalço do velho. Ismênia permanecia até mais tarde na cama e, ao se levantar, o esposo já havia preparado o café da manhã.

  Enquanto degustava seu dejejum, a velha observava o marido com a Filó no colo. Aquilo a irritava tanto, que a sua boca se retorcia, como se estivesse tendo um derrame. Ela não entendia como é que alguém podia amar tanto um bicho, ainda mais uma cachorra de cara amassada. Entretanto, preferia se manter calada a ter um imbróglio com o cônjuge. Preferia guardar a saliva para brigas mais importantes. 

   E foi justamente naquele dia, um sábado, que algo inesperado aconteceu. Os velhos receberam a visita da Gertrudes, amiga de longa data que há pouco havia se tornado viúva. Os três estavam sentados à mesa da sala tomando um chazinho de ervas especiais. Quanto à Filó, lá estava ela toda preguiçosa estirada no sofá, com aquela cara cheia de rugas. O seu ronco fazia companhia àquelas três vozes tão gastas por décadas e mais décadas.

   Depois de quase uma hora, eis que a cachorra abre os olhos, espreguiça-se e encara a face envelhecida do Amarildo. Ismênia logo manda o marido sair com a Filó. Ele obedece sem titubear. Então, assim que Amarildo fecha a porta, a Gertrudes faz um comentário sobre a Filomena.

   _ Que cachorra mais feia!

   Não se sabe ao certo se tais palavras afetaram a Ismênia. Em todo caso, a partir desse dia, ela passou a ter um chamego com a Filó. Tanto é que até o Amarildo anda com ciúme, pois a cachorra passou a dividir as lambidas entre os dois velhos. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Amarildo, Ismênia e Filó" foi publicado pelo Notibras no dia 23/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/amarildo-filo-e-o-milagre-com-dona-ismenia/

    

    



quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O que é isso, José?

 

      José era perseguido por duas compulsões, mas já havia tido outras. Dessa forma, restaram apenas o trabalho e o cigarro e, até onde se tem notícia, não é certo qual se faz mais presente.

    Perto de completar 72 anos, quase todos muito bem vividos, o homem queria porque queria esticar ao máximo seu dia. Por isso, acabou por criar horários esdrúxulos para trabalhar. Dormia quase religiosamente às 20h quando dava, o que era praticamente nunca. 

    No entanto, era certo que, já às 5h30, encontrava-se aceso como seus inúmeros cigarros para começar a labutar em seu computador. Daí em diante, entre uma tragada e outra, percorria as horas tentando ser mais rápido do que o tique-taque do relógio pendurado na parede. De gosto duvidoso, alguém poderia dizer. Todavia, uma relíquia, por sinal, adquirida pela vultosa quantia de 20 mangos num camelô da praça do Relógio, em Taguatinga. 

    Além do trabalho e do cigarro, José possuía dois mimos, que, outrora, também tiveram lugar de compulsão. Hoje, entretanto, eram apenas momentos de lazer. Seja como for, serviam de válvula de escape para esse ser humano, às vezes mais ser do que humano, mas, vez ou outra, também o contrário.

    Um desses regalos era a Fórmula 1, que o gajo assistia desde os tempos em que os pilotos aceleravam as suas baratinhas. "Não tô pra ninguém!", dizia com aquela voz carregada de alcatrão. José, cinzeiro ao lado, refestelado que nem menino diante de pote de sorvete, esparramava-se no confortável sofá para assistir aquele festival de sonoridades mecânicas na enorme televisão na sala. Um cinema!

    O segundo mimo era o xadrez. José, que gritava aos quatro cantos que havia sido campeão desse esporte olímpico, conheceu, por esses tempos, um adversário à altura. Para falar a verdade, esse competidor possui nome e sobrenome. Um tal André Montanha, que, vez ou outra, tem aplicado uma série de reveses ao nosso herói. 

    Não obstante tais acontecimentos, reservo-me o direito de terminar essa história com um acontecimento, que, soube por fontes fidedignas, aconteceu ontem. Sim, ontem mesmo, dia 11/10/2023. Quem me disse e como fiquei sabendo, isso é segredo e, obviamente, segredos devem ser guardados a sete chaves. Mas vá lá! Deixemos essas quimeras de lado e vamos aos fatos, que, pleonasticamente, são verídicos. 

        José chegou ao seu amplo apartamento em Águas Claras. Retirou os sapatos e, sem forças para atirá-los longe, os deixou onde caíram. Pegou o maço no bolso da camisa e sacou um cigarro. Em seguida, pegou o isqueiro e, com um giro mágico, fez o fogo. 

        Tudo parecia dentro dos conformes, até que o homem soltou um baita palavrão, que, obviamente, não direi qual foi, mesmo porque algum leitor poderia ficar constrangido e parar por aqui mesmo a sua, espero, agradável leitura. Mas posso falar o motivo, a causa, a motivação, o gerador e o porquê daquele turpilóquio. Em vez de colocar o cigarro na boca e depositar o maço sobre o sofá, José fez justamente o contrário. O resultado é que quase ateou fogo na barba. 

        Quem me disse isso? Reservo-me o direito de manter em sigilo as minhas fontes. Ah, logo após o ocorrido, o próprio José me telefonou e me contou detalhadamente. Ainda por cima, me mandou essa: "Edu, pela primeira vez na vida, me senti um velho!" 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "O que é isso, José?" foi publicada pelo Notibras no dia 12/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/nem-tedio-nem-cigarro-ze-vai-morrer-trabalhando/
  • A crônica "O que é isso, José?" faz parte da Coletânea de Cronistas Contemporâneos 2024, da editora Persona.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Apolônio, o sonhador

    Apolônio era, antes de qualquer coisa, um sonhador. Mesmo acordado, não era raro divagar sobre situações pelas quais ele jamais havia passado e, possivelmente, nunca iria viver. Os mais chegados, então, nem ligavam para aquelas fantasias, tamanha a capacidade dele de borboletear, como gostava de dizer dona Gertrudes, sua mãe.  

   Trabalhava como escrevente num cartório. Passava o dia inteiro conferindo assinaturas, batendo carimbos, rubricando aquela rubrica sem floreios. Um simples A com três pontos no cantinho esquerdo. Diante de tanta empolgação, é de se admirar que ainda tivesse tempo para se imaginar surfando altas ondas no Havaí, escalando o Monte Everest três vezes antes mesmo do café da manhã, pulando de um cipó direto num rio para lutar contra crocodilos famintos. Os devaneios povoavam a mente daquele homem.

     Os relacionamentos amorosos não duravam muito. Não por culpa das mulheres, que até insistiam para que o namoro persistisse. Todavia, após algum tempo, nem as mais apaixonadas conseguiam resistir a abandonar aquele desvairado. Apolônio, a princípio, ficava tristonho, mas logo achava até bom ficar sozinho, pois, assim, poderia sonhar sem ser interrompido por um beijo em um momento inoportuno como, por exemplo, quando estava saltando de paraquedas. 

       Depois dos 40, Apolônio deixou de aceitar convites até para casamentos, quanto mais para enterros. A rotina era da casa pro trabalho, do trabalho pra casa. Não via a hora de se aposentar para não precisar sair de casa. Talvez apenas uma chegada até a esquina para comprar pão para a semana inteira. Faria torradas, caso o pão ficasse duro. Torradas durante uma semana, torradas por um mês. Quem ligava se comesse torradas por um ano ou mais?

        Durante as férias, fez um grande estoque de pães de todos os tipos. O forno trabalhou intensamente para produzir tantas torradas. Trinta dias trancafiado dentro daquele apartamento com poucos móveis. O mínimo necessário. Afinal, ele poderia ser convocado para uma missão para salvar o mundo a qualquer momento. E parece que esse dia havia chegado.

        E lá estava o Apolônio montado em um lindo cavalo negro para enfrentar um bando de criminosos. Além de assaltarem o único banco da cidade, os bandidos ousaram em raptar a mais linda donzela da região. Ele precisava enfrentar aquele perigo sozinho, pois ninguém mais queria arriscar a vida. Destemido como ele só, eis que o herói, depois de um tiroteio de quase uma hora, conseguiu prender todos os assaltantes. 

        Apolônio, com uma corda, amarrou os salafrários, ao mesmo tempo em que a população inteira da cidade chegou ao local. Todos o aplaudiram. O herói, então, caminhou tranquilamente até a donzela raptada e a libertou do cativeiro. Seu nome era Eugênia. Ela sorriu e o abraçou. Em seguida, os dois, mãos dadas, surgiram diante da plateia eufórica. Os aplausos se intensificaram. Todos o admiravam!

        Apolônio assoviou para o garanhão negro, que correu veloz e parou diante dos pés de seu dono. O homem montou no lindo cavalo. Ele puxou Eugênia pela mão. No entanto, assim que ela subiu na garupa do cavalo, este desabou ao mesmo tempo em que Apolônio caiu no chão duro e frio da sacada. Um dos ganchos da rede havia rompido.
  • Nota de esclarecimento: O conto "Apolônio, o sonhador" foi publicado pelo Notibras no dia 14/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/heroi-imaginario-cai-na-real-com-tombo-da-rede/

         
 

domingo, 8 de outubro de 2023

Irmãos em conflito

    

    Nos idos dos anos 1980, aqueles dois irmãos, Tonho e Juca, apesar de mineiros, eram torcedores de times de outros estados. O mais velho era flamenguista, enquanto o menor, talvez influenciado por glórias passadas, torcia fervorosamente pelo Palmeiras. O pai até que gostava de futebol, mas a mãe, mais sábia, queria paz. 

    Durante os campeonatos estaduais, a discórdia entre os meninos era mínima. No entanto, bastava começar o campeonato brasileiro, perigava sair até faísca. Juca, no auge da sua meninice, passou perrengue de ver seu time do coração ser massacrado até que, já um jovem rapaz, passou a cantar de galo, quando o Palmeiras venceu e venceu e venceu. 

    É certo que aconteceram outros altos e baixos de Flamengo e Palmeiras. Tonho, mais afeito a brincadeiras, adorava quando conseguia deixar o irmão emburrado. Na verdade, nem precisava fazer grande esforço para atingir seu intento. Se o Palmeiras perdesse até mesmo um simples amistoso, Juca fazia aquele bico. Era a deixa para que o mais velho caísse matando e, não raro, a mãe precisava intervir para garantir que a prole saísse ilesa.

    Já homens feitos, casaram, tiveram filhos e foram morar em São Paulo. No entanto, voltavam para as comemorações de Natal, quando a mãe preparava um delicioso  pernil à pururuca. Momento de reencontros, abraços, beijos, choros, promessas de união, até que, perto da meia-noite, os presentes foram distribuídos.

    A mãe, que não estava encontrando os óculos, acabou se confundindo na hora de entregar os embrulhos para os filhos. Eles, sorrisos francos estampados nos rostos barbados, abriram os presentes sem se darem conta do equívoco da matriarca. Pra quê? Tonho logo percebeu o verde daquela camisa e, sem perder a oportunidade, emendou: "Mamãe, que bom! Adorei! Lá em casa estamos mesmo precisando de pano de chão". 

    Juca, percebendo a atrapalhada da mãe, rasgou o pacote e atirou a blusa do Flamento pela janela. Foi um escarcéu, até que a velha, cansada daquela desavença, gritou tão alto, que até despertou o velho gato, que dormia preguiçosamente no cesto no canto da sala.

    _ Chega!!! Já não aguento mais essa besteira de time! 

    Os marmanjos, constrangidos pelo papelão, ainda tentaram se desculpar. Falaram que o futebol era algo que aflorava as emoções. A velha, ao ouvir isso, olhou para os filhos e, sem perda de tempo, emendou:

    _ Se vocês não conseguem viver civilizadamente com essas emoções, que façam como eu. 

    _ Como assim, mamãe? - perguntou Tonho.

    _ Simples! Não tenham time!

    _ Ou, então, que vão torcer pro Real Madrid - emendou o pai.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Irmãos em conflito" foi publicado pelo Notibras no dia 09/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/presente-trocado-acirra-disputa-entre-irmaos/

       

    


quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Verônica, a aposentada

    Verônica ainda não contava com seis outonos quando largou os brinquedos que nunca teve e começou a labutar. Da vassoura passou para o pano de chão, aprendeu logo a ajudar na cozinha e nos afazeres da casa onde sua mãe trabalhava como doméstica. Os calos em suas pequenas mãos a tornaram dura com o passar dos anos, enquanto os filhos da patroa se formaram e contribuíram para dar sustento à tal meritocracia. 

    Aos 16, enterrou a genitora, acometida por males da pobreza. A velha patroa, que alardeava pelos quatro cantos que a falecida era da família, parece que não pensava o mesmo sobre a agora órfã. Não teve dúvida e a despachou sem o menor remorso. 

    Sem ter para onde ir ou parentes que a acolhessem, se viu no olho da rua. Passou frio, passou fome, passou por perigos inimagináveis para os que adormecem em berços esplêndidos. No entanto, a despeito das nefastas probabilidades, sobreviveu. Não se sabe ao certo como.

    Aqui não vale mencionar os trabalhos realizados pela quase menina, agora quase mulher. Dos mais antigos até os mais simples, como, por exemplo, garçonete em restaurante de quinta categoria. Serviu e foi servida como prato do dia ou da semana passada. Iguaria, na certa, é o que não era. Não mesmo!

    Labutou, labutou, labutou por anos a fio. O que não poderia deixar de fazer era labutar, mesmo porque agora, aos quase 20, não estava mais só. Precisa alimentar o pequeno Joaquim, fruto de um amor qualquer. Dessa incerteza, restou certidão com pai não declarado. Que fosse assim. 

    O tempo passou, o moleque cresceu parrudo às custas do suor de Verônica. Ele estudou um tanto, o suficiente para não se deixar enganar pela vida. Tanto é que, aos 13, foi descoberto por um olheiro de um grande time. Com isso, já nas categorias de base, faturava muito mais do que a sua mãe conseguia esfregando chão pelas casas das madames.

    Por conta de tanto dinheiro, Joaquim, agora aos 16, estava prestes a assinar um contrato milionário com um time da Europa. Pois é, o rapazola iria ludibriar os marcadores pelos gramados do Velho Mundo. Por isso, não teve dúvida e, mesmo a contragosto da orgulhosa mãe, quis porque quis que ela se aposentasse. 

    Verônica, que durante toda sua carcomida vida havia labutado mais do que a maior parte de todos nós, ainda assim pensou em pendular sua cabeça. Todavia, já exausta, acenou positivamente para o filho. Aposentou-se!

    A mulher, apesar de vislumbrar uma vida de luxo que passou a viver, começou a se incomodar com a barriga, que parecia dar sinais de querer crescer. Como dinheiro é o que não faltava, tratou logo de contratar um personal trainer. 

       Já na primeira aula, surgiu uma desavença entre Verônica e Diego, o tal personal. Pois é, diante de tantas ordens para pular, correr, levantar pesos, esticar daqui, esticar dali, houve o seguinte interlúdio.

        _ Chega!

        _ Verônica, você precisa trabalhar essa região para perder essa barriguinha.

        _ Diego, você não tá entendendo. Eu sou aposentada. Só faço o que eu quero! 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Verônica, a aposentada" foi publicado pelo Notibras no dia 06/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/veronica-trabalhou-aposentou-e-deixou-barrica-saliente/

Daniel Da Getúlio

    Vir a Porto Alegre e não conhecer o Daniel Da Getúlio é o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa, tamanha é a importância desse ícone da capital gaúcha e, em especial, do bairro Menino Deus. Tanto é que, assim que vim para cá, cansei de passar por ele, mas sem nunca ter parado para conversar. É verdade que, quase sempre, trocávamos cumprimentos como quem se conhece de vista. Entretanto, aquele cara misterioso ainda era um desconhecido para mim.  
    
    Minha mulher, a Dona Irene, muito mais inteirada sobre o local, um dia veio me contar que o Daniel era cantor e até possuía um canal no Youtube. Fiquei confuso, pois não liguei o nome àquele cara de bigode vistoso por quem eu passava quase todos os dias.
    
    _ Daniel? Que Daniel?
   
    _ Aquele homem que sempre está aqui na rua.

    Não demorou, ela me mostrou alguns vídeos do Daniel, em que ele canta e toca violão. Gostei de cara daquele estilo lobo solitário de se apresentar. Tanto é que curti e fiz alguns comentários por lá. E, assim que o encontrei novamente, ali em frente ao Bar do Vavá, atravessei a rua e fiz questão de ir cumprimentá-lo.

    A partir desse dia, trocamos algumas palavras de vez em quando, até que, ontem, conversamos por algum tempo, quando, então, pude entender um pouco sobre esse personagem icônico do bairro mais tradicional de Porto Alegre.

    _ Dudu, a música não é para principiante. Tem muitos artistas por aí, mas eles não estão preparados. É um trabalho muito difícil e até perigoso, É difícil gravar. Você pode ver que não tem mais CD,

    _ E você se apresenta em algum lugar?

    _ Faço shows, às vezes me apresento ali no Shopping Total.

    Não sei se você já veio a Porto Alegre, mas, caso venha, saiba que por aqui temos o Daniel Da Getúlio, um homem simples, simpático, muito querido pela maioria e que gosta de mostrar a sua arte para quem quiser assistir. 
  • Nota de esclarecimento: A crônica "Daniel Da Getúlio" foi publicada pelo Notibras no dia 4/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/um-lobo-solitario-que-canta-para-agradar/

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Aqui se faz, aqui se paga

    

    Vicente havia herdado a soberba do pai, que, mesmo precisando contar os vinténs nos dias finais do mês, parecia ter o rei na barriga. É certo que nunca teve que passar fome, mas penava aos montes para se manter na tão sonhada classe média. E, até agora, aos 42, havia conseguido, apesar de altos e baixos, por conta de conjunturas econômicas, que o obrigaram a fazer um furo mais para cá, outro para lá em seu cinto, o que ajudou a manter as calças quase firmes em sua cintura. 

    O homem, no final das contas, trabalhava em uma repartição pública. Na verdade, não era o melhor local para se ficar rico, ainda mais porque a sua conduta era de alguém como um qualquer de nós, ou seja, quase honesta. No entanto, o pingado, mesmo que parco, caía religiosamente todos os meses. 

    Contas pagas, até que sobrava alguns trocados para certas estripulias, desde que não muito fora do esperado. Todavia, os genes malditos que herdara do pródigo genitor, às vezes, eram mais fortes do que a razão. E foi justamente o que aconteceu nesses dias, quando o gajo conheceu Helena, que trazia a beleza além do nome. 

    Vicente não estava sozinho nessa batalha, pois outros homens a cortejavam. Temendo que a mulher pendesse para um lado ou outro, tamanha a concorrência, eis que o nosso herói decidiu fazer um convite irrecusável, pelo menos aos olhos da plebe. Um jantar em um chique restaurante da cidade. Não um que vendesse comida a quilo, como se fosse um fetiche de cumbucas repletas de alfafa para saciar a fome da ralé que se enfileira, como gado, tampouco um prato feito destinado a trabalhadores braçais.

    O homem, de tão ansioso, já estava diante do edifício de Helena meia hora antes do combinado. Por impulso,  meteu a mão no bolso para buscar um cigarro. Nada encontrou, até que se lembrou que havia largado o vício há quase seis meses, após várias tentativas frustradas. Aparentemente, estava livre da nicotina, mesmo que ainda sonhasse quase todas as noites com ela. 

    Pensou em ligar o rádio para escutar as últimas notícias. Não o fez, pois se lembrou que a bateria do carro não estava lá muito boa. Se o automóvel enguiçasse justamente naquele dia, seria o fim de um próspero futuro ao lado da quase amada. Vicente não tinha dúvida de que ela buscaria os braços de outro mais endinheirado. 

    Depois de arrancar as cutículas com os dentes, esfregar as mãos, estalar os dedos, passar o pente por dezenas de vezes nos cabelos, buscar os melhores ângulos no espelho do carro, baforar inúmeras vezes na palma da mão para sentir o próprio hálito, agora faltavam cinco minutos. Vicente se perguntou se era prudente chegar alguns minutos antes ou no horário. Na dúvida, abriu a porta do veículo e se dirigiu à portaria do prédio em frente, onde tocou o interfone e ouviu a voz pela qual tanto ansiava. 

    Durante o trajeto, o casal trocou algumas palavras. Ele, nervoso, fazia um esforço mental para não confundir os pedais de freio, embreagem e acelerador, tamanha a tremedeira em suas pernas. A mulher, aparentando maior confiança, sorria e soltava frases aleatórias, apenas para manter o fluxo da conversa. 

    Mais 20 minutos, os dois chegaram ao destino. Uma pequena fila de carros aguardava a vez de estacionar. Dois homens de terno e gravata apareceram ao lado do automóvel de Vicente.

    _ Sejam bem-vindos ao Don Francesco. O senhor pode deixar, que estaciono o veículo, enquanto o meu colega irá acompanhá-los até a mesa reservada. 

    Vicente, mesmo não estando acostumado com tantas regalias, se sentiu muito bem, ainda mais porque percebeu o sorriso de uma encantada Helena. Ele estava certo de que os dois passariam uma bela noite e, em seguida, enlaçariam um romance, que, era óbvio, prosperaria até a formação de uma linda e invejada família. 

    Acomodados em cadeiras acolchoadas de couro fino, os pedidos foram feitos. Iguarias jamais degustadas por aqueles dois. Sorrisos de cumplicidade, tilintares de taças de vinho, um quase beijo solto no ar. Vicente, talvez mais liberto por conta da bebida, tomou coragem e encostou a mão na da amada. Ela retribuiu o gesto e sorriu.

    _ Hum, estou me sentindo uma rainha!

    A noite prometia. Depois do jantar, ainda veio a sobremesa. Até Vicente, que não era muito chegado a doces, quis acompanhar o desejo de Helena. Degustaram, cada qual, um camafeu.

    Entretanto, existe um famoso ditado que diz aqui se faz, aqui se paga. Não tardou, chegou a hora da conta. Assim que viu aqueles números tão distantes da sua vida prosaica, Vicente sentiu que o efeito do vinho havia se evaporado por completo. Não chegou a engasgar por simples falta de saliva. 

    O homem, constrangido pela surpresa, buscou o cartão de crédito em sua carteira. Ainda pensou em parcelar o valor em seis vezes, mas não teve coragem diante de Helena. Passou-lhe pela cabeça a ideia de pedir para retirar a gorjeta, mas logo suprimiu tal pensamento. Pagou tudo à vista.

    Na saída do restaurante, Helena, ainda embriagada pelo jantar dos sonhos, envolveu o braço direito de Vicente com os seus. Ela recostou a cabeça no ombro do homem. O plano de Vicente, parecia, havia funcionado. Tanto é que ela repetiu a frase que, há pouco, encheu de esperança o coração do gajo.

_ Hum, estou me sentindo uma rainha!

_ E eu, um plebeu.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Aqui se faz, aqui se paga" foi publicado pelo Notibras no dia 03/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/vicente-faz-tudo-para-ser-plebeu-da-rainha-helena/

domingo, 1 de outubro de 2023

A futura Marta

    
    A Malulinha, nem completou um mês, já está sendo disputada pelos maiores times do Brasil, sem falar daqueles outros, ainda mais ricos, lá do outro lado do Atlântico. A Dona Irene, no entanto, bateu o pé e disse que a nossa filha só sai do berço para assinar contrato com o Palmeiras. Então, nada de Botafogo, Vasco ou Corinthians. 

    Vestida com a 10, que outrora trajou o gigantesco Ademir da Guia, a Malulinha me confidenciou, entre sorrisos, choros e caretas, que pretende ser maior até que a Marta. Pois é, que a Marta! Talvez, por isso, meu olhar de pai logo tenha percebido uma certa habilidade da Malulinha com a canhota.

    Não sei se a minha caçulinha será tão boa como a maior craque que o mundo conheceu. Creio que é muito cedo para fazer tamanha previsão, apesar de toda a euforia da minha esposa. Aliás, como a Dona Irene adora falar, sonhar pouco é bobagem. Por isso, eis que me vejo sonhando acordado com os dribles desconcertantes da Malulinha, sempre em direção ao gol e, obviamente, estufando as redes, para desespero das torcidas adversárias.

    Outra questão que levantei aqui em casa é sobre a possibilidade da Malulinha escolher torcer para outro clube. Obvivamente que essa possibilidade não existe. Não que aqui tenhamos a obrigação de sermos palmeirenses. Não se trata disso. A minha esposa, posso lhe garantir, presa pela democracia e, para não me deixar mentir, tem o discurso prontinho na ponta da língua.

    _ Dudu, preste bem atenção! A Malulinha vai ter total liberdade de torcer para qualquer time.

    _ Que bom, meu amor!

    _ Mas só vou fazer uma exigência, que, como mãe, tenho esse direito.

    _ E qual é?

    _ Ela terá que torcer pro Palmeiras!
  • Nota de esclarecimento: A crônica "A futura Marta" foi publicada pelo Notibras no dia 02/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/malulinha-pela-e-de-esquerda-vai-estufar-redes/