segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Cúmplices do 13!!!

 

    Os brasileiros viveram ontem, 30/10/2022, um dos dias mais importantes de sua história. Conseguimos, apesar das falcatruas orquestradas por um governo facínora, eleger pela terceira vez o maior presidente desta terra chamada Brasil. Aliás, para aqueles que não sabem, Brasil significa vermelho como brasa. 

    Pois bem, assim como milhões de outros conterrâneos, fui votar, mais uma vez, no 13, o emblemático número do PT, o partido do Luiz Inácio Lula da Silva. Muito emocionado e com um livro do Machado de Assis nas mãos, entrei na cabine e teclei o 13. Treze!!! Que número mágico!!! É o número que combate o fascismo, a homofobia, a misoginia, o racismo, a pedofilia, o analfabetismo, a cruel desigualdade socioeconômica.  

    Assim que saí da sala de votação, eis que me deparo com uma jovem mulher cheia de adesivos e adereços do Lula. Ela sorriu para mim e, então, tivemos um pequeno interlúdio.

    _ Sei que você é petista porque o gado não gosta de ler. 

   _ Sabia que quase roubei a urna por causa  da foto do Lula? Eita, que homem mais lindo!

  A mulher abriu um largo sorriso com essa minha brincadeira e, cúmplices, nos despedimos fazendo um L com a mão esquerda. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Cúmplices do 13!!!" foi publicada pelo Notibras no dia 30/10/2023. Por uma questão de adaptação do texto à data de sua publicação, foi feita pequena alteração no primeiro parágrafo.
  • https://www.notibras.com/site/eleitor-queria-levar-urna-da-cabine-para-ter-lula-em-casa/

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Magnólia, a esposa dedicada

     Magnólia, desde praticamente toda sua existência, só se lembrava de ter sido dedicada. Fora filha dedicada, irmã dedicada, neta dedicada, mãe dedicada, avó dedicada, há mais de 40 anos, para inveja de todos, também era uma esposa dedicada. Nelson, o marido, havia feito uma pequena fortuna graças ao tino comercial, talvez herdado dos seus antepassados, parte judeu, parte turco.  

     Como matriarca daquela enorme família, todos os anos era sua responsabilidade servir a ceia de Natal. E que ceia! Comida sortida para gostos variados. Se alguém não gostasse do bacalhau, se servia do pernil assado; se por acaso tivesse alergia a nozes, eis que logo ali poderia se fartar com frutas diversas da estação. Sorrisos pra cá, gargalhadas pra lá, cochichos acolá, todos pareciam se divertir à generosidade de Magnólia e Nelson, o casal perfeito, que todos invejavam e almejavam se tornar. Que lindo de se ver! Mais de quatro décadas de harmonia! Ninguém se lembrava de uma só briga entre aqueles dois velhos pombinhos. Na verdade, nem mesmo Magnólia era capaz de se recordar de uma, simplesmente porque nunca havia acontecido. 

        Fim de mais uma festança daquelas! Nelson e Magnólia pareciam satisfeitos por mais um encontro da família. Eles trocaram olhares, como cúmplices de algo que sabiam ter conseguido preservar, apesar daquele aparente inabalável quase meio século. Era a tradição se perpetuando naquele lar, doce lar. Tamanha felicidade que poderia ser sentida por toda cidade. 

       Nelson parecia ainda mais feliz, dedilhou de leve o fino bigode e, ao subir os degraus da escada em forma de caracol, lançou um olhar, apesar de gasto, ainda sedutor para Magnólia. Esta, acostumada àquela situação, tratou logo de retocar o perfume para se deitar ao lado do esposo. Tiveram uma noite quase de núpcias, se não fossem pelos corpos já definhados pela longa jornada. 

      O marido despertou e logo percebeu que o calor do outro lado do colchão havia se evaporado. A princípio não estranhou, até que notou um bilhete cuidadosamente depositado na mesinha ao seu lado. Antes de tocá-lo, imaginou que se tratava de dizeres apaixonados da Magnólia. Todavia, um aperto no coração quase o enfartou ao ler as poucas palavras escritas por aquela letra tão conhecida: "Nelson, cansei! Cansei de tudo! Cansei de fingir essa tal felicidade que nunca tivemos!"

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Magnólia, a esposa dedicada" foi publicada pelo Notibras no dia 24/01/2023. Por solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/magnolia-esposa-dedicada-finalmente-caiu-na-real/

sábado, 22 de outubro de 2022

Betina, a mulher sem amarras

    Betina, apesar do nome pouco comum, não parecia se diferenciar de outras crianças da rua, fossem irmãos, primos, parentes de consideração, amiguinhos ou até completos desconhecidos. Nas brincadeiras, se divertia como todos. Na escola, apesar da paixão por história e biologia, não se destacou entre tantos outros alunos. Aliás, quem sempre tirou as maiores notas, especialmente em matemática, foi a Taís, sua vizinha de carteira. 

    Veio a adolescência, seguida de transformações, que, de certa forma, a envergonharam. Todavia, depois de alguns anos, ela se apaixonou por si própria. Totalmente despida, olhava-se diante do espelho. Linda! Maravilhosa! 

    Não demorou muito, os amigos de infância todos foram se aprumando com alguém. Casamentos cheios de amor e promessas, outros nem tanto, alguns até por conveniência ou, então, simples arranjos entre famílias. E foi justamente na festança do casório da Taís, aquela que fizera companhia para Betina na escola, que o fato se deu. 

    Pois é, parece que Taís errou os cálculos na hora da famigerada tabelinha, embuchou e, antes que alguém percebesse, sua mãe a obrigou a se casar com o Albertinho, filho do seu Alberto, neto do seu Albertão, que também herdou o nome de algum ancestral. Gente sempre daquele lugar. 

    Aquele mundaréu de conhecidos, aquela quantidade de comida capaz de saciar a fome de um pequeno povoado. E lá estava a Betina, com um copo de licor entre os dedos, quando o Olavo, irmão do noivo, se aproximou. Ele já estava de olho naquelas carnes há tempos, mas Betina nunca lhe deu trela. Seja como for, o rapazola tentou mais uma investida, agora apelando para os brios da jovem mulher, no auge dos seus 29 anos.

    _  Já está indo pro caritó, hein, Betina!

    _ Tô indo tomar conta da minha vida!

    E foi justamente o que ela fez. Mudou-se da cidade e, até onde se sabe, nunca mais voltou.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Betina, a mulher sem amarras" foi publicado pelo Notibras no dia 21/09/2023.
  • https://www.notibras.com/site/entre-olavo-e-carito-betina-preferiu-outra-cidade/

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Tonico Pereira, muito além do Zé Carneiro

 


    O primeiro contato que tive com a figura tão carismática do Tonico Pereira talvez tenha sido com o Zé Carneiro do "Sítio do Pica-Pau Amarelo". Anos depois, me diverti muito vendo as peripécias do Mendonça tentando passar a perna no quase ingênuo Lineu de "A Grande Família". Não há como negar que o Mendonça passou a ser o novo contraponto do Lineu nesse seriado. O outro, obviamente, era a Nenê, personagem divinamente interpretada (como se fosse possível não o ser) pela enorme Marieta Severo. 
    
    Que trio!!! Esse sim é o ataque dos sonhos, ao contrário daquele outro, que mostrou ser um desastre, talvez pelos egos exacerbados dos atletas que não causaram nada além do que chacotas por parte dos torcedores do Botafogo, do Vasco e do Fluminense. 

   Mas voltemos ao Tonico Pereira. Querer determinar que ele é simplesmente um ator talvez seja limitar o seu universo de possibilidades. Não que ser ator signifique tolhimento. Pelo contrário, é expansão, como bactérias que se multiplicam aos milhões num piscar de olhos. Tanto é que esse homem transita por campos diversos, inclusive no comércio. 

    Hoje é dono do Brechó TPM em Botafogo, mas já mexeu com boteco e até peixaria, além de ter lançado um livro sobre filosofia. Sim, filosofia! E, se houvesse mesmo a tal máquina do tempo, não seria de se estranhar que o Tonico fosse tirar um dedinho de prosa com o Sócrates, aquele mesmo da Grécia Antiga. E, com a lábia que possui, é bem provável que o nosso gênio das artes cênicas convencesse o velho filósofo a desistir de beber a tal cicuta. 

    Outra curiosidade sobre o Tonico é que ele é ferrenho torcedor do Goytacazes. Não há nem um dia sequer que ele não se sinta cada vez mais certo de que seu time é o maior de todos. Repare que eu disse maior e não melhor. Este, por sinal, pode ser qualquer um Barcelona da vida, que, por um instante ou outro, vence tudo como se fosse algo jamais visto. Mas isso ocorre de tempos em tempos. Já o Goytacazes, no imaginário do Tonico, é o maior porque não precisa ganhar nem sequer um campeonato estadual para ser objeto de paixão de seus torcedores. E como duvidar?  

   Aliás, pensando bem, o Tonico não é comerciante, não é filósofo, não é nada além de ator. Vou explicar, antes que alguém venha me agredir com palavras de baixo calão. Seja como for, não me calarão! O Tonico é um ator e ponto final ou, caso prefira, ponto de exclamação ou interrogação, talvez até uma infinidade de reticências. É que esse conterrâneo do mestre Didi, tal qual folha seca, sobe e desce, suave, onde e quando bem desejar, talvez pela simples ânsia de nos surpreender. Quer apostar? 

  • Nota de esclarecimento: O texto "Tonico Pereira, muito além do Zé Carneiro" foi publicado pelo Notibras no dia 13/05/2023.
  • https://www.notibras.com/site/lineuzinho-vai-muito-alem-do-ze-carneiro/

domingo, 16 de outubro de 2022

Chassi de Grilo

  Nasceu Oswaldo Agripino das Chagas, abaixo de dois quilos, parto difícil, peito praticamente sem leite, desacreditado pela parteira, nenhum choro, apenas um quase inaudível silvo, que cismava sair dos pulmões ligeiramente sem vida. Sobreviveu à custa de muitas rezas da benzedeira do povoado. Do nome pomposo, passou toda a infância apenas acompanhado das chagas, que ora quase o desacreditaram, ora o castigavam naquele mais um eterno dia de sofrimento perene. 

    Aos 12, parecia que mal chegara aos 6, tamanha a falta de carnes naqueles ossos tão frágeis. Daí surgiu o primeiro apelido, que ficou: Chassi de Grilo. Até a mãe, de tanto ouvir o povo chamar seu rebento assim, acabou por se acostumar e, sem qualquer cerimônia, arrebatava o menino da cama logo cedo para ajudá-la nos afazeres: "Chassi, vem me ajudar a cuidar das galinhas". Oswaldo caiu no esquecimento, até que chegou a época de se alistar. 

    Lá estava aquele rapaz, mais mirrado que todos, no meio de tantos outros. Um a um eram chamado pelo nome, até que o sargento, prancheta na mão, gritou.

    _ Oswaldo Agripino das Chagas!

    Ninguém moveu uma palha, o que fez com que o militar voltasse a gritar, agora mais alto.

    _ Oswaldo Agripino das Chagas!!!

    Nada! Até que o Juvenildo, vizinho do Chassi de Grilo, deu uma cutucada nele e falou baixinho.

    _ Chassi, o homem tá te chamando.

    Chassi de Grilo, como se acordado de um sono profundo, acabou se lembrando do próprio nome e, finalmente, levantou o braço esquerdo que, de tão fino, parecia mais um galho seco. Ao perceber aquele que era apenas pele e osso, o sargento olhou com desdém e,  com a boca retorcida de puro sarcasmo, disse.

    _ Você é tão ruim, que não serve nem pra descascar batata!

   Dispensado de servir a pátria, lá foi o Chassi de Grilo voltar para o lar. Cabisbaixo, não sabia se aquilo era bom ou ruim. Todavia, aquelas palavras do homem de farda o incomodaram por um período. Ele repetiu para si próprio, talvez em voz alta, que sabia descascar batata, sim. Sabia até descascar cana, macaxeira, o que viesse. 

   O tempo passou, a vida do Chassi não mudou muito, a não ser pelo fato da sofrida mãe, coração maior que o próprio peito, ter morrido de chagas. Nem teve tempo de chorar, tamanha a secura da roça. Aos 25 foi tentar a vida na cidade. De bico em bico, acabou sobrevivendo dos restos jogados no lixo. 

  Chassi de Grilo teve que aprender a vencer a ligeireza dos ratos para não passar fome. Às vezes chegava a entrar em vias de fato com um mais atrevido ou, em comum acordo, dividia um naco de pão com os companheiros de esgoto. E foi justamente num desses banquetes no beco que aconteceu algo que, definitivamente, transformou a vida daquele homem que mal chegara a 1,50 metro. 

    Três homens entraram nos domínios do Chassi de Grilo, que, antes de ser percebido, se embrenhou atrás do enorme container de lixo. O maior deles parecia ser forçado a seguir na frente, enquanto os outros dois, olhando para todos lados, sussurravam algo praticamente inaudível aos ouvidos do assustado Chassi. O grandão foi empurrado de encontro ao enorme muro e, então, o Chassi pode notar um revólver prateado nas mãos de um dos outros homens. 

    _ Vai morrer, desgraçado! 

   Sem tempo para raciocinar, Chassi de Grilo, com um pedaço de pau na mão, acertou a cabeça do homem armado. O outro foi dominado pelo grandão, que lhe desferiu um forte murro nas fuças. Tombou já desacordado, a cabeça explodiu no duro asfalto. O sangue escorreu, o corpo já sem vida. 

    O grandão tomou o pedaço de pau das mãos do Chassi e, em seguida, desferiu vários golpes na cabeça dos dois homens. Encarou os olhos enegrecidos da franzina criatura diante de si e teve ânsia de fazer o mesmo com ele. Todavia, talvez por gratidão, puxou-o pelo braço e disse.

    _ Vamos sair logo daqui.

    O grandão se chamava Antônio Carneiro, filho de dona Antônia, pai não declarado, mas que todos sabiam ser o pastor Ezequiel, que passou por aquelas bandas há pouco mais de 30 anos. Antônio Carneiro era nome de registro, todos o conheciam por Tamanduá. O motivo? Bem, não se sabe se essa história era verdadeira ou não, mas se falava que era por conta de uma disputa à mão nos tempos de adolescência, quando ele teria esmagado o tórax de um homem feito apenas com a pressão dos braços. Seja verdade ou não, Tamanduá era o cabeça da bandidagem daquela região.

    Chassi de Grilo, de mero protegido, subiu rapidamente na hierarquia. Agora era o braço direito do Tamanduá, que a tudo lhe confiava. Isso, aliás, trouxe autoestima para o mirrado, agora cultivando até um fino bigode debaixo da fuça. Revólver na virilha, mandava e desmandava, já que Tamanduá não queria se preocupar com esses pequenos aborrecimentos. 

    Depois de quase dez anos, Tamanduá viu a organização crescer de maneira vertiginosa. Até o juiz do local sabia quem mandava e desmandava, a polícia não se atrevia a enfrentar o chefe mor do crime. Todos o tinham na mais alta conta, seja por respeito, seja por puro medo. Por isso, não era raro alguém ir lhe pedir um favor. E foi justamente num desses dias que aconteceu algo que encheu o coração do Chassi de Grilo de regozijo. 

    Aquele mesmo sargento, que havia humilhado o braço direito do Tamanduá, foi até o escritório do crime pedir um favor. Agora reformado, o homem foi reclamar que sua filha adolescente havia sido molestada por um vizinho. Tamanduá não quis saber dessa conversa e logo falou para o Chassi de Grilo resolver aquela pendenga. E, assim que viu aquele homem suplicando por ajuda, Chassi o observou minuciosamente. 

    _ Pode ficar tranquilo, vou dar um jeito nesse homem que fez mal pra sua filha.

    _ Muito obrigado, senhor! Não sei nem como agradecer o senhor.

    _ Pois eu sei como.

    O homem arregalou os olhos e, passivamente, apenas aguardou que o Chassi de Grilo lhe falasse o que ele deveria fazer. O braço direito do Tamanduá, por sua vez, dedilhou suavemente a ponta do fino bigode e, com um sorriso de vingança, disse.

    _ Tá vendo aquelas batatas ali no canto? Quero elas bem descascadinhas. Hoje tô com vontade de comer umas fritas.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Chassi de Grilo" foi publicado pelo Notibras no dia 29/12/2022. Por conta de uma solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/chassi-de-grilo-se-farta-com-batata-do-velho-sargento/
  • O conto "Chassi de Grilo" compõe 14º número da Revista Fluxos, do projeto A Liter Ação.
  • O conto "Chassi de Grilo" faz parte da antologia "Enterre-os bem fundo", da editora Triumphus, 2024.
  • O conto "Chassi de Grilo" faz parte do livro "EDUARDO MARTÍNEZ E OUTROS AUTORES Projeto Literatura na escola PROJETO LITARATURA NA ESCOLA 1".
  • https://www.calameo.com/books/006803069f3f5db711eee

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Raquel (texto original do romance policial lançado em 2012)

 


Prólogo


            Alguns dizem que as pessoas que moram fora da cidade do Rio de Janeiro devem estar loucas ou aplicando uma piada de mau gosto.  Outras, no entanto, afirmam que loucos são os que ainda conseguem viver na Cidade Maravilhosa, mesmo depois da série de assassinatos misteriosos ocorridos nos últimos meses.  Certos ou errados, bem, isso não importa, pois você já se tornou cúmplice desta história, que caiu no imaginário dos cariocas de nascimento ou de adoção.

O nascimento de uma assassina

Sábado, 25 de janeiro de 2003, 00h36...

            O som do salto alto quando se choca com o piso de cerâmica chama a atenção do porteiro.  Ele apenas vê as ancas dançantes que emolduram o lindo vestido vermelho, que acompanha o gingado invulgar de sua dona.  Lá está ela, esperando pelo elevador, que a levará ao encontro de mais um de seus inúmeros clientes.

            Raquel, se é que podemos chamá-la pelo seu nome de guerra, não está há muito tempo nessa vida tão comum a tantas e tantas pessoas, sejam mulheres, sejam homens, sejam travestis, sejam o que for mais cômodo para a sua imaginação.  Ela caminha há passos vigorosos, altivos, é a dona da situação, verdadeira loba cercada de cordeiros.  E ela gosta disso, sente que nasceu para o que está fazendo.  Raquel, Raquel, tu sabes mesmo por onde andas?  Sim, ela sabe ou, pelo menos, pensa que sabe.

            O elevador, enfim, chega para pegar a dama da noite.  O porteiro estica o pescoço para dar a derradeira olhada naquele monumento de mau caminho, já que pedaço é muito pouco para Raquel.  Antes de apertar o botão do sexto andar, ela se olha no espelho do elevador.  Tudo em ordem, ela pensa.  Esboça um sorriso.  Aperta o botão. 

            A porta pantográfica range ao se abrir.  Raquel sai do elevador e caminha em direção ao apartamento 601.  Toca a campainha, que faz blim-blom, blim-blom.  Raquel nota que alguém se aproximou da porta e a está observando através do espelho mágico.  A porta se abre.

            _ Boa noite... Raquel.  É esse o seu nome, né?

            _ Sim, meu bem.

            _ Eu sou Arnaldo – diz o cliente, enquanto inclina o rosto para dar os tradicionais dois selinhos nas faces da profissional.

            Arnaldo é um homem relativamente baixo, não deve ter 1,65 metro, uns cem quilos, mas tem um certo ar de elegância, traços finos, nariz aquilino, maçãs proeminentes enfeitam seu rosto redondo.  Anda com desenvoltura, apesar do corpo roliço, não aparenta seus sessenta e poucos anos.

            O acerto financeiro desse tipo de serviço costuma acontecer antes do finalmente.  Raquel gosta de manter a tradição nesse quesito.  Recebe o combinado anteriormente e guarda a féria na bolsa prateada. 

            O gorducho oferece licor de menta a Raquel, que não hesita em aceitar.  Ela sorve o líquido verde fazendo biquinho, saboreia a bebida em todos os cantos da sua língua.  Raquel observa o seu cliente, percebe que não se trata de alguém vulgar, mesmo tendo lhe oferecido licor de menta.  Ela até gosta dessa bebida.  Finalmente ela deixa o líquido descer pela garganta, o que lhe proporciona o primeiro prazer da noite.     

            Arnaldo liga o aparelho de som, pergunta se Raquel gosta de Julio Iglesias, ela diz que sim, talvez por educação, talvez porque realmente aprecie.  Ele coloca um CD do cantor espanhol, puxa com delicadeza uma das mãos de Raquel e a enlaça.  Dançam, dançam, logo seus lábios buscam os da sua par.  Beijos nessa profissão não são comuns, mas Raquel tem lá suas exclusividades.  Ela se entrega ao jogo de casalzinho apaixonado, deixa o amante da vez guiar o barco até certo ponto.  Logo, logo Arnaldo passará o timão à verdadeira capitã.  E ele gosta, e ela aprecia ainda mais.

            _ Vamos pro quarto, minha querida.

            Raquel acompanha o cliente, ele se senta na beirada da cama e retira a camisa.  Está ansioso, chega a arrancar dois botões que teimam em não abrir.  Abaixa a calça de tergal.  Ela observa o corpo do amante só de cueca, a enorme barriga com algumas estrias.  A figura lhe faz lembrar daqueles enormes lutadores de sumô, mas Raquel continua o ritual.  As mãos gordas de Arnaldo vão de encontro aos polpudos seios da profissional, que finge se excitar.  Ela mesma abre o zíper que está nas costas, abaixa as alças do vestido expondo as mamas de auréolas rosadas e bicos pontudos. 

            _ Vem! – Raquel o instiga a mamar seus peitos.

           Esse convite parece irrecusável ao cliente, que aproxima a boca dos seios de Raquel, suas narinas sentem o odor do perfume invulgar que exala da pele da amante.  Arnaldo suga os mamilos de Raquel, que começa a acariciar o membro do amante sob a cueca.  Não é dos maiores que viu, é até pequeno, mas logo dá sinal de vida.  Raquel se ajoelha, retira a última peça de roupa do cliente e começa a retribuir o carinho que recebeu de Arnaldo.  Ele se esvai em gemidos e urros de prazer.  Agora é Raquel que está no comando.  Ela pede, ou melhor, rainhas não pedem, não imploram...  Rainhas mandam!

            Raquel retira o vestido, joga-o sobre uma poltrona ao lado.  Ela pega dois macios travesseiros e se senta na cama.

            _ Dance pra sua rainha! – ela ordena.

            No mesmo instante o escravo está remexendo suas banhas.  Parece uma grande baleia branca, seu pênis fica ainda menor entranhado na gordura pubiana.  Seus peitos parecem os de uma índia velha.  As coxas pelancudas com pêlos irregulares, tudo pode ser repugnante aos olhos de uma jovem que sonha com príncipes encantados.  Raquel, no entanto, parece estar gostando da cena esdrúxula, seu corpo começa a mostrar os primeiros sinais de excitação. Talvez ela faça aquilo por prazer, talvez o dinheiro que recebe pelos serviços prestados seja apenas uma agradável conseqüência.   

            Depois de quase 20 minutos dançando para Raquel, o gorducho está encharcado em suor.  Ela finalmente lhe ostenta o brinquedinho que tem em sua mão. Arnaldo sorri já prevendo o que vai acontecer.

            _ Minha deusa, mas é muito grande!  Não sei se vou aguentar tudo isso! – o gorducho finge estar assustado com o que vê.

            _ Vou te enrabar, seu cachorro sarnento! – enquanto profere tais palavras, Raquel desfere um forte tapa na cara gorda de Arnaldo, o que parece excitar ainda mais o seu cliente, gotículas da próstata lustram a glande peniana.

            As palavras de Raquel não demoram a se concretizar.  Arnaldo está de quatro, a enorme bunda virada para sua rainha, que não se inibe, pelo contrário, está cada vez mais excitada.  Logo a operação é iniciada, o que faz o gorducho se transformar no ser mais submisso da Cidade Maravilhosa.  As estocadas cada vez mais fortes o fazem chorar de alegria, não demora muito e ele despeja toda a felicidade sobre o lençol florido que cobre a cama.   O enorme corpo desaba fazendo a estrutura da cama estremecer.

            Raquel observa o amante da ocasião estatelado na cama, parece adormecido.     Ela vai ao banheiro da suíte, lava o seu brinquedindo que tanto prazer deu ao gorducho.  Volta para o quarto onde veste a calcinha e o lindo vestido vermelho.  Calça o sapato salto 15, pega sua bolsa prateada e retorna ao banheiro.  Saca seu batom vermelho e passa cuidadosamente em seus lábios cada vez mais experientes.  Ajeita o cabelo loiro.  Está pronta para sair, confere mais uma vez as seis notas de R$ 50,00 que recebeu por mais uma noite de trabalho e se vira para ir embora.

            _ Onde você pensa que vai, sua vaca? – é o gorducho, que acabara de despertar de seu cochilo pós-orgasmo.

            _ Você já teve o... – antes mesmo de Raquel terminar a frase, recebe um tapa no seu lindo rosto, ainda mais forte do que o que há pouco havia desferido na cara do cliente.

            _ Cala a boca, sua vagabunda!!! – Arnaldo em nada lembrava aquele cliente delicado e submisso de instantes atrás.  Estava totalmente transtornado, seus olhos congestos pareciam querer saltar da sua cara redonda.

            _ Vou te ensinar como se trata um homem de verdade!!! – o gorducho continuava a gritar para Raquel, que se encontrava pela primeira vez em apuros em toda a sua trajetória de “vida fácil”, se bem que estava há não mais de um ano em tal profissão.

            Arnaldo pegou Raquel pelos cabelos, mas não eram os verdadeiros de Raquel.  O gorducho ficou assustado por meros segundos com a peruca loira da profissional em suas mãos, tempo suficiente para que Raquel pegasse um vidro de loção de barbear e acertar a cabeça do agora rival.  Em seguida dá-lhe um chute no meio das pernas, fazendo com que Arnaldo caia de joelhos gemendo de dor.  Ela aproveita e sai correndo para a sala, onde tenta abrir a porta desesperadamente, mas antes que consiga sair é agarrada pelo gorducho, que a puxa pelo braço e desfere-lhe um soco no olho, fazendo a dama da noite cair perto da cozinha.  A partida parecia já ter um vencedor, quando Raquel vê uma faca de carne em cima da pia.  Ela agarra a arma branca e, antes que Arnaldo perceba, desfere-lhe um golpe na garganta, cortando-lhe as jugulares, a traquéia e o esôfago, fazendo o sangue jorrar.  O gorducho não consegue proferir uma única palavra, nem um som sequer, mas seus olhos de desespero e angústia dizem tudo.  Seu corpo de hipopótamo tomba.  Ele sabe que o fim está próximo, o que logo se concretiza.

            Raquel está exausta, mal consegue controlar a respiração ofegante.  Ela olha seu adversário caído, o sangue espalhado pelo piso da cozinha, respingado nas paredes.  Há sangue em suas mãos, ela liga a torneira da cozinha e as lava.  Lava também a faca.  Depois segue para a suíte, onde pega as suas coisas, coloca a peruca loira, lava o rosto, retoca o batom em frente ao espelho...  Sorri.

            A dama da noite volta para a cena do crime, observa o corpo inerte de Arnaldo.  Profere algumas palavras de insulto.  Já está de saída, quando se lembra da faca.  Ela quer a faca.  Talvez como um troféu.

Inspetor Medeiros

Segunda-feira,  27 de janeiro de 2003, 7h32...

            O sol entra pela janela do quarto e reflete no rosto anguloso, bigode vasto de pontas caídas, barba por fazer, nariz de ventas largas, queixo quadrado.  O cabelo está começando a rarear, o que é facilmente notado pelas entradas acentuadas. 

            _ Merda! – o inspetor Medeiros se levanta com raiva e fecha a cortina, que esqueceu aberta na noite anterior, quando fumava um dos inúmeros cigarros que traga diariamente.  Mas, antes mesmo que volte para a cama, o telefone toca.  Ele atende contrariado.

            _ Alô!

            _ Medeiros, te acordei?

            O inspetor reconhece a voz de Tereza, a mulher com quem vem saindo há quase três anos.  A relação dos dois anda meio desgastada, “precisando de um tempo”, como ele mesmo costuma dizer.

            _ Acordou, mas tudo bem.  Tenho de levantar mesmo, já estou até atrasado.  O que você quer? –

            _ Puxa, você tá tão grosso!

            _ Desculpa – Medeiros acende o primeiro cigarro da manhã.

            _ Só queria saber como você está.  A gente já não se vê há quase uma semana.  Estou com saudade.

            _ Tereza, depois a gente conversa.  É que estou com pressa...

            _ Puxa, meu amor, você não tem um tempinho pra mim?  Já arrumou outra, é?

            _ Que outra o quê?          

            _ Tá, tá, me desculpe, não quero brigar outra vez.  Mas estou sentindo a sua falta, meu amor.

            _ Tereza, vamos fazer o seguinte: hoje à noite a gente se fala. 

            _ Não dá pra gente se ver?

            _ Vou ver, não prometo, mas vou ver.  Tá bom assim?

            _ Tá, meu amor.  Então, fico esperando você me ligar.

            _ Então, tchau, Tereza!

            _ Tchau, meu amor.  Um beijo.

            O policial desliga o telefone, pega a toalha de banho pendurada na porta do armário, onde se olha no espelho.  Ele é moreno, quase 1,80 metro, tórax musculoso coberto de pêlos pretos.  Uma barriga proeminente o incomoda, da mesma forma que a calvície que a cada dia lhe parece mais presente.  Antes de ela aparecer, ele fazia a barba diariamente.  Passou a usar bigode nos últimos dois anos, talvez como forma de compensar o avanço da calvície.  O homem de 44 anos segue para o banheiro, onde atira o cigarro na privada.  O banho é mais demorado do que de costume, pois decide, hoje, fazer a barba.  Ele gosta de se barbear dentro do chuveiro, hábito que cultiva há anos. 

            Quase uma hora depois, Medeiros, com mais um cigarro entre os dedos médio e indicador da mão esquerda, está no seu carro rumo à 12ª DP (12ª Delegacia de Polícia), em Copacabana, onde está lotado há seis anos.  É policial civil há 15.

* * * * *

            _ Estava justamente te esperando, Medeiros.

            _ O que houve, delegado?

            _ Degolaram um cara na rua Dias da Rocha.  A perícia já está lá, mas quero que você e o Felício acompanhem o caso.

            Marcos Alexandrino era delegado há poucos anos.  Um pouco mais alto que Medeiros, sempre bronzeado de praia, cabelos quase loiros, olhos cor de mel, praticante de musculação, o que se reflete no seu corpo musculoso.  Ainda não completou 30 anos e é adepto de comida natural.  Vive implicando com a compulsividade de Medeiros por cigarros.

             Felício entra na sala do delegado, onde é cumprimentado por Medeiros, seu parceiro há cinco anos.  Ele tem uns 70 quilos bem distribuídos em seu 1,65 metro de altura.  É negro e careca, mas diferentemente de Medeiros, que já está no oitavo cigarro da manhã, é careca por opção.  E antes que Felício e Medeiros saiam da sala, Alexandrino faz uma última recomendação.

            _ Ei, Medeiros!

            _ Mais alguma coisa, delegado?

            _ Esse seu cigarro ainda vai matá-lo!

Medeiros acena contrariado para o delegado Alexandrino.  Depois ruma com seu parceiro para o local do assassinato ocorrido. O trajeto é curto demais para surgir uma conversa mais profunda.  Apenas alguns comentários sobre os últimos acontecimentos, mas nada que valha a pena mencionar.      

* * * * *

9h41...

Medeiros e Felício estão em frente ao edifício, onde se encontra uma pequena multidão, a maioria de curiosos, que são barrados pelo cordão policial.  Os dois abrem caminho entre as pessoas, se identificam para os policiais do cordão de isolamento, tomam o elevador até o sexto andar.  Em menos de cinco minutos já estão dentro do apartamento 601 da rua Dias da Rocha.  Eles são logo recebidos pelo perito Raul Teixeira.

_ Arnaldo Quintana – diz o perito.

_ O quê? – pergunta Medeiros acendendo mais um cigarro.

_ O nome da vítima.  Tinha 63 anos, era professor universitário aposentado, viúvo, sem filhos.  Professor de filosofia – esclarece Raul.

Medeiros e seu parceiro observam o corpo da vítima.  Mesmo depois de tantos anos na atividade policial, Medeiros não deixa de sentir certo mal estar com a cena.   Felício é mais frio, talvez por ter trabalhado por alguns anos na Baixada Fluminense, onde crimes com requintes de crueldade são comuns.  Talvez o parceiro de Medeiros tenha mesmo os nervos mais tesos.

_ Como descobriram o corpo? – indaga Medeiros.

_ A faxineira hoje pela manhã.  De acordo com o seu testemunho, assim que ela entrou no apartamento e viu o corpo do patrão, chamou o porteiro e depois ligou para a polícia.  Confirmamos a história com o porteiro da manhã, que a viu chegando um pouco antes de telefonar. 

_ A arma do crime? – Felício pergunta ao perito.

_ Não foi encontrada.  Com certeza ela levou a arma, que possivelmente era uma faca ou navalha bem afiada.

_ Ela?  Como você sabe que é ela – quis saber Medeiros.

_ O porteiro disse que uma mulher estava com a vítima – respondeu Raul.

_ Que mulher? – perguntou novamente Medeiros.

_ Ele não sabe, mas pela descrição trata-se de uma prostituta.

_ E o circuito interno de TV?  Você já examinou as imagens? – perguntou Felício.

_ Infelizmente está quebrado há três meses, conforme informou o síndico.

_ E o porteiro consegue fazer um retrato falado da tal prostituta? – quis saber Felício.

_ Bem, ele me disse que ela era um mulherão, usava um vestido vermelho, tinha uma bunda maravilhosa...  Mas não prestou atenção no rosto.  Disse que era loira.  E só!

_ Droga!  Então temos uma assassina loira que tem bunda, mas não tem rosto.  Se fôssemos partir desse ponto, teríamos de prender metade das mulheres da cidade – desabafou Medeiros.

_ Só metade das prostitutas – corrigiu Felício.

_ Obrigado por me lembrar disso, cara!  Talvez encontremos a desgraçada que fez isso daqui uns 30 anos – ironizou Medeiros.

_ Podemos rastrear os telefonemas dados pela vítima nas suas últimas 24 horas – lembrou Felício.

_ O telefone foi cortado por falta de pagamento há seis meses – informou o perito.

_ Algum vizinho viu ou ouviu alguma coisa? – perguntou Felício.

_ Nada!  É um prédio de idosos, a maioria se recolhe bem cedo.  O vizinho mais novo da vítima é o do 606, que mesmo assim saiu à noite toda, só voltou quando o dia já estava amanhecendo.  Confirmei essa informação com o porteiro da noite – Raul respondeu. 

_ Bem, mas venham por aqui.  Pelos indícios, os dois tiveram uma noite de amor, pois há licor de menta em dois copos.  Também há um CD do Julio Iglesias no aparelho de som.  A capa está aberta sobre o aparelho.  A cama está desarrumada, há uma mancha de esperma no lençol – Raul foi informando as descobertas aos dois policiais.

_ Houve roubo? – perguntou Felício.

_ Aparentemente não.  Mas olhem isto! – Raul pegou o vidro de loção de barbear que já estava dentro de um saco plástico e iria para a perícia laboratorial.

_ Encontrou digitais? – perguntou Medeiros.

_ Sim, há digitais nos copos e no vidro.  O Araújo já providenciou tudo. Ele irá confrontar as digitais encontradas com as da vítima.  Caso haja outra digital, tentaremos confrontar com o banco de digitais. 

_ Banco de digitais?  Raul, você quer enganar quem?  Desde quando o nosso banco de digitais funciona? – ironizou Medeiros.

_ Talvez não funcione como deveria, mas funciona.  Não vamos ser pessimistas, meu amigo – disse o perito.

_ Tá, não vamos entrar em atrito por causa disso, né? – Felício botou panos quentes na situação.

_ Bem, continuando...  A assassina acertou a vítima com o vidro de barbear.  A prova é um hematoma na testa do defunto.  Depois os dois foram para a sala, onde continuaram a briga.  Talvez a assassina tenha tentado escapar com algum pertence da vítima; talvez a vítima tenha tentado fugir da assassina, que estava armada.  Não houve briga entre a suíte e a porta de entrada, pois os objetos estão todos no lugar, não há desarrumação, não há coisas no chão.  A luta reiniciou somente na porta de entrada ou na  cozinha, que é onde o corpo se encontra.  A vítima teve todos os principais vasos do pescoço seccionados, sem falar do esôfago e da traquéia.  Foi uma morte horrível.  A vítima teve forte hemorragia, como vocês podem notar pela quantidade de sangue espalhada pelo chão.  Pelo estado do cadáver e pelo depoimento do porteiro, o assassinato ocorreu entre 11 horas da noite e 3 da madrugada de sábado para domingo  – concluiu Raul, na mesma hora que chegava a maca para levar o corpo ao Instituto Médico Legal (IML), onde seria feita a necropsia.

Tereza

Ainda 27 de janeiro de 2003...

Medeiros chegou ao seu apartamento por volta das 21h.  Havia tomado uns chopes com Felício no Benfica, bar localizado na rua Figueiredo Magalhães, ali mesmo em Copacabana.  Depois passou no supermercado para comprar o jantar: lasanha de queijo e presunto.

_ Boa noite, rapaziada! – Medeiros cumprimentou o grupo de garotos que batia papo na entrada do seu edifício.

_ Boa noite, Medeiros! – os adolescentes responderam quase em uníssono.

O policial entrou no elevador e por pouco não caiu com o movimento de subida.  Teve de se apoiar na parede do elevador, estava sentindo os efeitos dos incontáveis chopes que havia tomado.  Uma ânsia de vômito tomou conta de seu corpo.  O elevador para, ainda não é o oitavo andar, mas o quinto.  Algumas crianças entram e ficam observando o policial em estado etílico.  Medeiros observa os rostos deformados dos meninos, que devem ter entre 8 e 10 anos.  A vontade de vomitar é ainda maior, mas Medeiros tenta ao máximo se controlar.  Um pouco do suco gástrico sobe para a sua boca.  Ele sente o ardor em sua garganta, consegue devolver o líquido para onde veio.  Finalmente o elevador chega ao oitavo andar, Medeiros abre a porta e se dirige a passos largos para o apartamento 804.  Mal tem tempo de abrir a porta e vomita em cima do vestido vermelho de Tereza, que já o esperava há quase uma hora.    

_ Medeiros! – Tereza quase grita. 

Quando o policial termina o que havia começado, ele observa o rosto assustado da amante.  Não parece haver nojo na expressão de Tereza, apenas preocupação com o estado do homem por quem é apaixonada.

_ O que você está fazendo aqui, Tereza?

_ Ué, você disse que ia me ligar.  Pensei que você havia se esquecido.  Então, vim lhe fazer uma visita surpresa.  Como você não havia chegado, resolvi preparar um jantarzinho para nós dois, à luz de vela.  Gostou?

Medeiros só então observou a mesa posta.  Havia filé de peixe, arroz branco e salada de alface e tomate.  Não havia apetite em seu olhar, mas mesmo assim ele agradeceu a preocupação da namorada. Tereza sugeriu que ele fosse indo tomar um bom banho, enquanto ela limparia toda a sujeira provocada pelo vômito.  Medeiros achou por bem obedecê-la.

Quando o policial saiu do banheiro enrolado na toalha, já de banho tomado, Tereza apareceu somente de calcinha e sutiã.  Seu vestido havia se sujado, ela não tinha outra roupa.  Tirou a toalha que estava no corpo de Medeiros, deixando-o em pelo, aliás, pelo era o que não faltava no corpo do amante.  Este já parecia recuperado, seus hormônios demonstraram que nada é melhor do que um bom banho depois de uma sessão de vômito.  Tereza fingiu não notar a ereção do policial e entrou no box, ligou o chuveiro, deixou a água morna cair pelo seu proporcional corpo bronzeado, 1,60 metro, 58 quilos, seios tipo pera, barriga de dançarina do ventre, pelos pubianos descoloridos e bem aparados, bumbum empinado e firme, onde uma fina penugem dourada teimava em se deixar ficar, descendo pelas coxas bem torneadas da jovem de 28 anos.  A morena parecia ainda mais linda debaixo do chuveiro, seus olhos castanhos sorriram matreiros quando Medeiros puxou a cortina do box e foi esfregar as costas da namorada.          

* * * * *

O casal está jantando.  Medeiros precisa recuperar a energia gasta durante o dia e, especialmente, na última hora.  Tereza parece satisfeita, talvez nem tanto pela performance do amante, mas por voltar às boas com ele.

_ Preocupado?

_ Um pouco – ele responde enquanto pega o maço de cigarros e acende um.

_ Com relação à gente?

_ Não, não...  É coisa do trabalho – Medeiros mente.

_ O que houve?  Você quer se abrir comigo, meu amor? – ela toca a mão esquerda de Medeiros com as suas.

_ Depois eu te falo, Tereza. 

O jantar prossegue quase em total silêncio.  Coisas passam pela cabeça de Medeiros, outras pela de Tereza.  Ele não sabe como explicar que está vivendo um momento muito difícil da sua vida, está vivendo a crise dos 40, não se conforma que está envelhecendo, apesar de ainda ser jovem.  Começa a não gostar do próprio corpo, sempre motivo de orgulho há tão pouco tempo.  Para piorar a situação, ainda há o problema da calvície.  Tereza não parece dar importância a essas coisas, ela parece amá-lo com ou sem barriga, de cabelos dançando ao vento ou, então, sendo todos carregados por ele.  Medeiros talvez tenha medo de Tereza, talvez tenha medo do dia em que não mais corresponderá à natureza fogosa da amante.  Talvez seja esse o verdadeiro motivo dele querer “dar um tempo na relação”, essa é a expressão sempre usada pelo policial. 

Depois do jantar, Medeiros e Tereza vão para o quarto, onde ligam a televisão.  Está passando um épico antigo, mas os dois continuam com a mente ocupada com outras coisas.  O policial está fumando o último cigarro do dia, quase não tem forças para tragar, repousa a guimba no cinzeiro e adormece antes da namorada, que logo depois pega o controle remoto e dá uma passada por todos os canais.  Nada de interessante!  Ela desiste e desliga a televisão.  Não demora muito e adormece.  A mesa de jantar continua posta, não tiveram ânimo para desfazê-la.

Necropsia

Quinta-feira, 30 de janeiro de 2003, 09h50...

_ Felício, onde está o Medeiros? – perguntou o delegado Alexandrino.

_ Está ali no telefone, delegado – o parceiro de Medeiros responde apontando para a outra sala.

_ Chame-o imediatamente! 

Felício entra na sala onde Medeiros continua falando ao telefone, tendo um cigarro entre os dedos da mão esquerda.  Ele espera o parceiro acabar de falar, mas Medeiros logo percebe a aproximação do colega.

_ Mãe, tenho de desligar agora.  Depois eu ligo pra senhora.  Ligo assim que der.  Um beijo na senhora e no pai.

Assim que Medeiros põe o telefone no gancho, Felício diz que o delegado quer vê-lo.

_ Você sabe o que é?

_ Não, mas deve ser algo relacionado ao assassinato daquele professor de psicologia...

_ De filosofia, Felício – corrige Medeiros.

_ É... 

Medeiros dá dois leves toques na porta, já aberta, da sala do delegado Marcos Alexandrino.  Este o manda entrar.  Felício já está dando meia volta quando o delegado o chama.

_ Quero conversar com os dois, Felício.

_ Sim, senhor – diz o parceiro de Medeiros fazendo continência em tom de brincadeira.  

 _ Por favor, sentem-se. 

Os policiais obedecem ao pedido do delegado.  Logo são servidos com café pelo próprio Alexandrino, que, no entanto, prefere tomar chá de camomila com adoçante.  O superior volta a falar.

_ Bem, quero que vocês compareçam ao IML agora.  Vocês vão com o Raul Teixeira.  Lá quero que procurem o Dr. Antônio Manoel, que poderá lhes esclarecer mais detalhes da morte do professor Arnaldo Quintela.

Os dois policiais saem da sala do delegado, passam na do perito Raul, não o encontram, apenas o seu ajudante.

_ Lima, onde está o Raul? – Felício perguntou.

_ Ele foi rapidinho ali na cantina pegar... – mas antes mesmo do ajudante completar a frase, o franzino perito Raul Teixeira aparece com uma garrafa térmica na mão.

_ Querem café?

_ Não, obrigado, Raul – agradece Felício.

_ O delegado quer que você vá com a gente lá no IML falar com um tal Antônio Manoel – informa Medeiros.

_ Tô sabendo.  Deixa eu só pegar umas coisas e a gente já vai – o perito fala enquanto coloca a garrafa térmica sobre uma mesinha no canto.  Depois abre uma gaveta e pega sua carteira de documentos.

* * * * *

Em menos de uma hora os dois inspetores e o perito da Polícia Civil estão dentro do IML diante do Dr. Antônio Manoel e o cadáver de Arnaldo Quintela.  O forte cheiro de formol parece não incomodar os policiais.  A palavra é do médico, que tenta evitar o uso de jargões para não confundir os policiais.

_ Como os senhores podem ver, o golpe único e fatal foi provocado por objeto cortante, possivelmente uma faca de cortar carne bem afiada.  A pessoa que fez isso não é alguém de estrutura frágil e é canhota, já que o golpe foi desferido de frente para a vítima, da direita para a esquerda, levando-se em conta a posição do assassino. Foram seccionados esôfago, traquéia, jugulares internas e externas, aorta ascendente, entre outros vasos de menor calibre.  A vítima morreu em decorrência de monstruosa hemorragia e asfixia.  Vocês já estiveram em um matadouro?

_ O quê? – perguntou Medeiros.

_ Num matadouro?  Onde se abatem bois, vacas... – disse o médico.

_ Não, nunca – respondeu o parceiro de Felício, que estava doido para fumar, mas foi proibido pelo médico do IML.

_ Pois bem, é dessa forma que os bois que têm a carne exportada para Israel são abatidos.  Há todo um ritual de afiação da lâmina destinada a degolar os animais.  Assim que o animal cai de um alçapão de fundo falso, o responsável pela degola passa a lâmina afiada no pescoço do bicho.  Enquanto isso, outro homem prende uma corrente numa das patas de trás do animal, que é suspenso.  Enquanto a corrente desliza pelo trilho carregando o boi, este fica se debatendo em agonia, seu sangue jorra como cachoeira pelos vasos rompidos.  Junto com o sangue também vem o vômito dos animais.  É um espetáculo selvagem, meus senhores.  Desde que presenciei tal cena, nunca mais coloquei um pedaço de carne na boca – explicou o Dr. Antônio Manoel.

_ Então, o senhor acha que a assassina pode ser judia? – perguntou Medeiros, que não conseguiu deixar de lembrar do vômito que tivera há dois dias.

_ Assassina?  Não, meu caro, não creio que seja uma assassina – disse o médico.

_ Não?  Mas por que não? – quis saber Raul.

_ Bem, pelo menos não uma mulher como nós conhecemos – continuou fazendo certo mistério o médico legista.

_ Seja mais claro, doutor – intimou Felício.

_ Falo que não é uma assassina porque ela teria de ter um pênis – disse o Dr. Antônio Manoel enquanto observava as caras de espanto dos três homens a sua frente.

O silêncio tomou conta da sala fria onde se encontravam os cinco homens, sendo que um deles jazia estirado em cima de uma maca.  Até que um deles, mais precisamente o inspetor Medeiros, esboçou algumas palavras.

_ Um travesti?  O senhor está falando que o assassino é um travesti?

_ Exatamente, inspetor! – disse o médico.

_ Mas baseado em quê o senhor faz tal afirmação – quis saber Felício.

_ Bem, a vítima foi sodomizada.  Há lesões ao redor do ânus, além de restos de fezes, o que caracteriza sodomia.  Não foi encontrado vestígio de esperma do assassino, mas as evidências são claras. Posso afirmar categoricamente que a vítima era praticante dessa vertente sexual – concluiu o Dr. Antônio Manoel, enquanto seus ouvintes continuaram boquiabertos.

Felício e Raul saíram do IML intrigados com a revelação de que o assassino era um travesti.  Medeiros estava preocupado com outra coisa, tanto é que saiu do instituto quase correndo:  não via a hora de dar suas tragadas, abastecendo seu organismo de nicotina.

O começo de uma rotina

Sábado, 08 de fevereiro de 2003, 22h25...

_ Raquel? – perguntou o homem de enormes costeletas e basto bigode.  Ele vestia um pobre vestido amarelo com flores azuis e amarelas de gosto duvidoso.

_ Almir? – respondeu com outra resposta a elegante loira de pele bronzeada e corpo estonteante.

O homem convida a profissional da dita “vida fácil” a entrar em seu pequeno, porém aconchegante, apartamento na rua Voluntários da Pátria, nas proximidades da estação do metrô, em Botafogo.  A noite corre fria lá fora.  Há uma certa ansiedade no ar, tanto o cliente quanto a prestadora de serviço estão desejosos.  O primeiro quer ter suas fantasias saciadas, a outra não está apenas atrás de dinheiro.  Aliás, este talvez seja apenas mais um atrativo da profissão, porém nunca o mais importante.  O pagamento do serviço é somente a entrada do banquete que em breve terá início.

_ São R$ 300,00, não é, minha flor? – pergunta o cliente.

_ Exatamente, meu bem – confirma a profissional.

_ O preço é meio salgado, não? – Almir faz um pequeno protesto. 

_ Não se preocupe, meu amor, pois eu valho cada centavo – Raquel rebate as palavras do cliente.

Depois que o acerto financeiro é consumado, o homem de pouco mais de 1,70 metro e doces olhos cor de mel assume o papel de uma histérica mulher.  Raquel, mesmo acostumada com os tipos mais estranhos, não deixa de achar graça nos trejeitos do novo cliente.  Ele caminha de forma rebolativa sobre o carpete azul desbotado da sala. 

_ Você acha que eu não tenho sentimentos?  Você pensa que eu sou uma dessas suas amiguinhas que você come na rua?  Eu não me casei com você pra ter de suportar tudo isso, Pedro Paulo!  Eu quero você, eu desejo você!  Sou uma mulher ferida!  Sou uma mulher que quer ser comida pelo seu homem!  - Almir encena seu papel com uma voz feminina.

_ Cale-se, sua puta!!! – protestou Raquel, que entrava em cena com seu papel de marido sem muito tempo para as crises existenciais de sua mulher.

_ É só isso que você sabe falar, Pedro Paulo!  Eu sou sua mulher!!!  Eu sou a mãe dos seus filhos!!!  Se você não me comer hoje eu juro que vou dar pro vizinho!

_ Você cala essa boca, sua vagabunda!!! – protestou mais uma vez Raquel, desta vez esbofeteando a cara rosada do cliente, fazendo com que ele despejasse lágrimas de felicidade de seus olhos agora com a expressão ainda mais doce.

O próximo passo da profissional foi arrancar o vestido vulgar do cliente.  Depois lhe desferiu mais um ou dois tapas na cara, chegando a abrir-lhe o canto do lábio superior.  Um filete de sangue escorreu pela boca.  Os olhos da “esposa” submissa encontraram os do “marido” violento no mesmo momento em que este tinha numa das mãos um enorme brinquedinho, a outra deixava cair no carpete sua bolsa prateada.  Almir se desfez em felicidade.

_ Chupe!!! – ordenou Raquel.

Depois de mais de vinte minutos se deliciando com os 22 centímetros do brinquedo de Raquel, Almir se posicionou de joelhos e, apoiando as duas mãos no gasto carpete, implorou para que fosse sodomizado.  Mas o pedido veio de forma não muito comum, como bem mostram suas palavras:

_ Pedro Paulo, por favor, coma a boceta da sua mulherzinha!

Raquel se posicionou atrás do amante da ocasião e lhe sodomizou de forma violenta, proporcionando-lhe o mais desvairado dos orgasmos.  E antes mesmo daquele corpo submisso tombar de exaustão, a dama da noite retirou de sua bolsa uma faca já assassina e degolou o amante.  O sangue jorra e inunda o velho carpete azul lhe dando novo colorido.  Nenhum som sai da boca da pobre “mulher” que só queria ser amada pelo cruel “marido”...  que ela cismava em chamar de Pedro Paulo.    

De especulação à prova

22h47... 

Naquela mesma noite, Medeiros e Felício pararam a viatura na rua Rainha Elizabeth,  esquina com a av. Atlântida, em Copacabana, onde um transexual de nome Samanta fazia ponto há algum tempo.  Felício fez um sinal com a mão direita e chamou a profissional dos prazeres carnais.

_ O que você quer, tira? – quis saber Samanta, que já conhecia de vista os dois policiais.

_ Calma, não precisa ficar assustada, minha querida.  Não queremos aprontar com você.  Só estamos atrás de algumas informações – falou Felício convidando o transexual a entrar na viatura.

Samanta olhou desconfiada e tentou se livrar o mais rápido possível dos dois policiais.

_ Olha aqui, meu querido, ainda não fiz nem um cliente sequer hoje.  Se é dinheiro que vocês estão querendo, pegou a menina errada – disse Samanta.

_ Não queremos seu dinheiro, só queremos conversar.  Agora, se você preferir, a nossa conversa pode ser lá na delegacia – ameaçou Felício.

A boneca pensou por alguns instantes.  Ela não queria parar outra vez na delegacia, onde seria tratada como um ser alienígena.  Além do mais, poderia ser colocada numa cela com outros presos, o que poderia significar o seu fim.  Algumas de suas amigas de profissão já tinham apanhado e sido abusadas quando foram presas.  Acabou aceitando o convite de Felício e entrou no carro, sentando no banco de trás.

_ Qual é o seu nome? – perguntou Medeiros oferecendo um cigarro ao transexual.

_ Samanta, bonitão – respondeu o transexual pegando o cigarro da mão do policial.

_ Muito bem, Samanta, nós só queremos fazer algumas perguntas.  Se você for boazinha, vai poder voltar mais rápido para o seu local de trabalho – disse Felício.

_ O que vocês querem?

_ Olha, houve um assassinato no bairro há duas semanas – falou o parceiro de Medeiros.

_ Meu querido, todos os dias morrem milhões de pessoas em todo mundo -  Samanta cortou o policial.

_ Deixe de gracinha e cale essa boca! – gritou Medeiros.

_ Calma, cara!  Sei que ela vai nos contar tudo o que sabe.  Não é Samanta?

_ Cla...claro que vou, querido – concordou o transexual quase deixando o cigarro escorregar entre os dedos.

_ Samanta, o que nós queremos saber é se você sabe de alguma coisa relacionada ao assassinato cometido na rua Dias da Rocha há duas semanas – falou Felício. 

_ Por acaso você está falando daquele coroa que teve a garganta cortada?

_ Isso mesmo!  Você sabe de alguma coisa? – perguntou novamente Felício.

_ Sei o que todo mundo sabe, que o tal sujeito foi encontrado pela empregada.  Não sei de mais nada, a não ser as coisas que saíram nos jornais.  Falaram até que foi uma prostituta que fez isso, não foi?

_ Isso, mas tenho razões para desconfiar de alguma amiguinha sua – continuou Felício.

_ Amiga minha?  Imagina, querido!  Por que alguma biba faria uma coisa dessas?

_ Não sei.  Talvez pra se defender...  Você sabe de algum travesti novo nas ruas?  Algum travesti mais violento?  Algum travesti que se passaria facilmente por mulher?  Loira? – disse Felício.

_ Bem, menina nova nas ruas...  Sei de duas que estão nas ruas há mais ou menos uma, duas semanas no máximo.  Uma veio do nordeste, acho que de Pernambuco ou Paraíba, não sei direito.  Não sei se é violenta, mas não é muito bonita, nem chega aos meus pés.  Já a outra é de Minas.  Sei disso porque a conheci na casa de uma amiga.  O nome dela é Pamela.  É bonita, tem um corpão, é loira e engana muito bofe.  É, acho que ela passa facilmente por mulher – informou Samanta.

_ E onde posso encontrá-la? – perguntou Felício.

_ Sei que ela faz show lá na boate Galaxy, no Lido.  Ouvi dizer que ela tem caso com um ricaço.  Bem, acho que é só!  Vocês acham que foi ela que matou o tal coroa?

_ Estamos investigando, Samanta. Meu nome é inspetor Felício, meu amigo é o inspetor Medeiros.  Aqui está o telefone da delegacia.  Se você souber de mais alguma coisa, nos procure.  Por enquanto, obrigado pelas informações.  Obrigado e boa noite – disse o policial entregando um cartão com o telefone da delegacia ao transexual.

Boate Galaxy

23h28...

As pessoas se aglomeravam na entrada da boate Galaxy, onde se apresentam as bonecas mais belas do Brasil, segundo o cartaz ao lado.  Nele há fotos de transexuais vestindo plumas e paetês coloridos.

Medeiros e Felício estão em frente à boate observando o movimento.  Relembram o pequeno interrogatório que fizeram há pouco.

_ Felício, o que você achou da história do traveco?

_ Bem, talvez essa história dessa tal Pamela seja apenas especulação, mas é o que temos até o momento.  E aprendi na polícia que se não temos algo palpável, podemos partir de uma especulação e chegarmos a uma pista.  Da pista acharemos os indícios e, dependendo da consistência destes, até mesmo pela sua obviedade, poderemos encontrar o que estamos procurando, ou seja, a prova.

_ É, não custa tentar... – concordou Medeiros, dando um peteleco na guimba do cigarro que acabara de fumar.

Desceram do carro e entraram na boate apenas mostrando as insígnias de policiais ao enorme segurança postado na porta.  Sentaram no bar da boate, onde pediram duas cervejas.

_ Ei, meu chapa, quem vai se apresentar hoje? – perguntou Felício.

_ A Doroth Star e a Sabrina Hill – informou o barman.

_ E a Pamela? – quis saber o parceiro de Medeiros.

_ Qual Pamela?  A mineirinha?

_ É essa mesma.

_ Acho que não.  Ela teve de sair hoje e desmarcou a apresentação.

_ Você sabe aonde ela foi?

_ Ei, quem são vocês?  Canas? – desconfiou o barman levantando a voz.

Felício nem respondeu, apenas mostrou a insígnia policial.  O barman, então, baixou o tom de voz.

_  O que vocês querem com a Pamela? – quis saber o barman.

_ Só queremos conversar com ela, amigo.  Pode ficar tranqüilo – Medeiros colocou panos quentes na conversa, enquanto acendia um cigarro.

_ Olha aqui, não sei onde ela está.  Só sei que recebeu um telefonema e teve de sair mais cedo – finalmente respondeu o homem do bar, enquanto preparava uma bebida para um freguês.

_ E quais são os dias dos shows dela? – continuou Medeiros.

_ Terça, quinta e sábado, ás vezes na sexta também. 

_ Obrigado, amigo – se despediu Medeiros bebendo o último gole da sua cerveja.

Assim que os dois policiais se levantaram e viraram as costas para sair, o barman levantou o dedo médio da mão direita em direção a eles.  Ele completou o gesto com as seguintes palavras proferidas em resmungo: _ Cornos filhos da puta!

O segundo cadáver

Quarta-feira, 12 de fevereiro de 2003, 11h55...

As sirenes das viaturas policiais se confundem com a do rabecão.  Os carros são obrigados a subirem na calçada, pois não há estacionamento na rua Voluntários da Pátria.

O apartamento estava tomado de um cheiro de carne podre.  O sangue havia transformado o azul desbotado do carpete em um tom amarronzado.  O cadáver da segunda vítima de Raquel jazia fúnebre.  

_ Mais uma vítima da boneca degoladora – disse Raul assim que viu Medeiros e Felício entrarem no apartamento.

_ Mesmo método? – perguntou Medeiros tragando seu vício.

_ A vítima foi degolada com um só golpe – confirmou o perito.

_ E quem encontrou o corpo? – quis saber Felício.

_ A vizinha reclamou com o síndico do mau cheiro vindo do apartamento.  O síndico e o porteiro tocaram a campainha, mas como ninguém atendeu, resolveram chamar a polícia.  E aqui estamos na presença de mais uma vítima desse travesti escroto – explicou Raul.

_ Dá pra saber há quanto tempo ele foi assassinado? – perguntou novamente o parceiro de Medeiros.

_ Há pelo menos três dias, talvez mais.  Como tem feito um calor infernal, não dá pra saber com tanta precisão.  Só depois do exame cadavérico – disse Raul.

_ Ele tinha parentes?  - perguntou Medeiros.

_ Mãe, pai, irmãos...  Mas ninguém mora aqui no Rio.  Ele era de Itaguaí.  Chamava-se José Almir de Medeiros, era corretor de imóveis, 45 anos, relativamente bem de vida.  Ajudava a família, principalmente os pais e uma irmã.  Quem disse isso foi o porteiro – informou o perito.

_ Alguma coisa roubada? – nova pergunta do policial Felício.

_ Aparentemente nada!  Nem sinal de briga há no local.  Parece que a vítima foi degolada logo após chegar ao orgasmo, já que parece haver esperma no carpete – disse Raul.

_ Notei que não há câmeras no prédio...

_ Isso mesmo, Felício.  Esse travesti deve estar escolhendo suas vítimas de acordo com a segurança dos edifícios – supôs Raul.

_ Alguém viu o traveco entrar no prédio? – perguntou Medeiros.

_ Não, mas viu sair.  Foi uma senhora do quarto andar, mas ela não soube precisar se foi na noite de sábado ou de domingo.  Segundo as palavras dela, era uma mulher muito chamativa, dessas de reputação não muito ilibada.  No popular, era uma prostituta, mas a testemunha é uma senhora de mais de 70 anos e um pouco avessa a palavras de baixo calão – explicou o perito.

_ Essa é boa.  Digitais? – Medeiros fez nova pergunta.

_ Existem impressões digitais na maçaneta da porta, que iremos confrontar com as encontradas no apartamento da primeira vítima.  Tenho certeza de que são da mesma pessoa – informou o perito.

_ Não vai me dizer que o telefone daqui foi cortado por falta de pagamento?

_ Não!  Simplesmente, a vítima não tinha telefone, Medeiros! 

_ Um corretor de imóveis sem telefone? – estranhou Felício.

_ Pois é, usava apenas celular.  E todas as chamadas foram apagadas.  Vamos ver se conseguimos com a operadora as últimas ligações feitas e recebidas.

_ Excelente! – exclamou Medeiros acendendo um cigarro.

O pessoal do rabecão foi autorizado a remover o corpo, que seria transportado até o IML a fim de ser realizada a necropsia. 

O quebra-cabeça

Ainda quarta-feira...

 Medeiros e Felício saíram da rua Voluntários da Pátria e foram direto à 12ª DP, onde fizeram o relatório do caso.  O delegado Marcos Alexandrino estava furioso com os dois assassinatos ocorridos num intervalo de menos de 15 dias.

_ Olha aqui, Medeiros, quero esse travesti engaiolado em 48 horas!  A imprensa já está em cima de mim.  O secretário de segurança está me pressionando.  E eu não vou segurar essa barra sozinho!  Quero o assassino em dois dias!  Façam o que for preciso, mas quero essa bicha degoladora atrás das grades!

_ Estamos fazendo o possível, delegado – se defendeu Medeiros.

_ Então, façam o impossível! – protestou o delegado Alexandrino, que logo em seguida foi para a sua sala e fechou a porta.  Pela parede envidraçada deu para ver que ele pegou o telefone e fez uma ligação.

Felício, vendo a cara de desânimo do parceiro, o chamou para tomar um chope.  Medeiros, não tendo melhor programa, aceitou o convite.  Mas assim que se preparavam para colocar o pé na rua, avistaram um redemoinho de repórteres e cinegrafistas tentando entrar na delegacia.

_ E aí, companheiro, o que a gente faz? – perguntou Felício.

_ Por mim, a gente abre caminho – respondeu Medeiros.

Os dois policiais foram de encontro à multidão de jornalistas, que tentaram entrevistá-los, mas sem sucesso.  Eles pediram licença e foram passando sem maiores problemas, mesmo porque em quem os repórteres estavam de olho era no delegado Marcos Alexandrino.

* * * * *

Já devidamente acomodados em uma mesa num boteco qualquer de Copacabana, os dois policiais degustam os primeiros goles dos chopes geladíssimos.

_ Ah, nada como um chopinho depois de um dia cheio! – suspira Medeiros dando mais uma tragada em um cigarro.

_ É verdade!  Mas me conta! O que você está achando desse caso?

_ Está tudo meio embaralhado na minha cabeça.  Mas estive pensando nessa tal Pamela.  Penso que ela é o nosso ponto de partida para resolver esse caso. 

_ Também acho isso.  Talvez ela seja mesmo a chave desse mistério.   Vamos dar um pulo lá naquela boate amanhã. 

_ Pois é, amanhã é quinta, dia de show da tal Pamela.

_ Eu sei, eu sei... Amanhã a gente vai lá sem falta!  E se tivermos sorte, conseguiremos uma confissão da boneca.

O celular de Medeiros toca.  Ele olha no visor e reconhece o telefone da Tereza.  Ele não quer atender, mas acaba fazendo-o por insistência de Felício.  Mas mesmo assim é monossilábico com a amante.  Depois que desliga o aparelho, Medeiros observa o sorriso sarcástico do parceiro.

_ Do que você está rindo?

_ Da sua cara, Medeiros.  O que houve entre você e a Tereza?  Não vai me dizer que você tá dispensando aquela gata?

_ Não é isso...

_ Ah, não?  Então o que é?  Arrumou outra?

_ Puxa, você tá até parecendo a Tereza falando.  Ela me perguntou a mesma coisa.

_ E nós temos motivo?

_ Não, dessa vez não!  Há mais de seis meses só tenho saído com ela. 

_ Ah, então o garanhão está andando na linha!?

_ Não enche, Felício! 

_ O que está havendo, então?

_ Nada!  Poxa, não posso dar um tempo?  Estou precisando de um tempo, cara!

_ Tudo bem, meu irmão.  Não tá mais aqui quem falou.

_ Às vezes dá até vontade dela arrumar outro!

_ Não olhe pra mim, cara!  Não gosto de ir contra a minha natureza!

_ Do que você está falando, Felício?

_ Nada!  Apenas não ia trair a confiança de um amigo – desconversou o parceiro de Medeiros.

Os dois colegas preferiram não esticar muito a sessão de chopes e, depois de mais algumas rodadas, resolveram ir embora.  Medeiros morava na rua Siqueira Medeiros; Felício, na rua Barata Ribeiro, esquina com a rua Hilário de Gouveia.

Um suspeito

Quinta-feira, dia 13 de fevereiro de 2003...

Meia-noite, a viatura da Polícia Civil para em frente à Galaxy.  Medeiros e Felício observam o movimento na entrada da boate, a enorme maioria de homens, mas algumas mulheres também se aproximam para apreciar os dotes artísticos das ditas mulheres de tromba, como alguns indiscretos costumam se referir aos transexuais.

_ Preciso comprar cigarro, Felício.

_ Agora??? 

_ Pô, fazer o quê?  Tô com vontade de fumar!

_ Tá, tá!  Então, vai logo, cara, pois já está na hora de agir.

Medeiros abre a porta do carro e ruma em direção ao boteco na esquina.  Em cinco minutos já está de volta tragando um cigarro.  Nem entra no carro, faz apenas um sinal para o colega.  Os dois entram na Galaxy, nem precisam mostrar as insígnias policiais. 

A boate não está tão cheia como da vez que estiveram ali, num sábado.  Os policiais se dirigem ao balcão, onde Felício faz um sinal ao mesmo barman que lhes dera as informações sobre a transexual Pamela.

_ A mineirinha está aí – o barman disse antes mesmo dos policiais perguntarem.

_ Chame-a! – mandou Felício.

_ Será que não dá pra esperar até ela acabar o show?  Veja, ela já está entrando.

Felício e Medeiros se viram e ficam admirados com a beleza estonteante do lindo transexual.  O elegante vestido vermelho com plumas e paetês prateados realça ainda mais o corpo escultural de Pamela.  Ela dubla Timi Yuro interpretando Hurt.  Suas pernas são torneadas, musculosas sem serem masculinizadas, os seios fartos parecem querer saltar do generoso decote, as nádegas dignas das melhores mulatas do Sargenteli. 

_ Cara, nunca vi uma boneca como essa! – fala um embasbacado Medeiros.

_ Muito bonita – concorda Felício.  

_ Essa aí me engana direitinho.

_ É uma mulher!  Só que não tem xoxota.

Pamela nota Medeiros e Felício na platéia, nem imagina que são policiais e estão ali atrás dela.  O transexual joga charme para os dois, enquanto faz os últimos movimentos labiais de sua primeira performance da noite.

_ Obrigada, muito obrigada!  Vocês são ma-ra-vi-lho-sos! – Pamela agradece os aplausos entusiasmados das pessoas presentes.

Medeiros observa a artista deixar o palco.  Por um instante esqueceu o verdadeiro motivo por estar ali.  De repente Felício dá um toque em seu ombro, despertando-o para a situação.  Os dois se dirigem ao barman, que acena com a cabeça, logo se dirigindo ao camarim para chamar o transexual.

_ Pamela!

_ O que é, Chico?

_ Tem dois canas aí querendo falar com você.

_ Canas?  Você sabe o que eles querem?

_ Não, mas já vieram aqui outra vez te procurando, mas você não estava.

_ Uai, o que será que eles querem comigo?

_ Não sei, mas acho melhor você ir lá falar com eles.

_ Tá bom, diga a eles que já vou.

O barman retorna e informa aos policiais que Pamela já está vindo.  Enquanto isso, Medeiros pede duas cervejas e acende mais um cigarro.  Não demora muito e aparece a loira que passaria facilmente por uma mulher, segundo a opinião de Medeiros.  Mulher sem xoxota, como disse Felício.

_ Boa noite!  São vocês os policiais que querem falar comigo?

_ Sim, somos nós – responde Felício, enquanto Medeiros observa o transexual quase não acreditando que não está diante de uma mulher.

_ E o que vocês querem, posso saber?

_ Já vai saber, minha querida.  Onde podemos conversar? – perguntou Felício.

_ Hum... No meu camarim, se vocês não se importarem.

_ Tudo bem – concordou Felício.

Pamela deu meia volta e se dirigiu ao camarim, sendo seguida pelos dois policiais.  Ao entrarem, Shirlley Midler, também artista da casa noturna, estava dando os últimos retoques na maquiagem.

_ Uau, Pamela!  Mas que gatos são esses? – perguntou Shirlley.

_ Nada do que você está pensando, querida!  Você pode nos dar licença um minutinho?  É que a gente precisa tratar de um assunto – pediu Pamela.

_ Tá bom, já entendi o porquê da fama que o mineiro tem de comer quieto – Shirlley se referiu à naturalidade da colega, saindo às gargalhadas do camarim.            

_ Não liga, ela é meio maluca – se desculpou Pamela pelas palavras de Shirlley. 

_ Pamela, onde você estava nas noites dos dias 25 de janeiro e 08 de fevereiro? – Felício perguntou.

_ Por quê? 

_ Foram as noites em que houve dois assassinatos, sendo um aqui no bairro – respondeu Medeiros.

_ E o que eu tenho a ver com isso?  Vocês não estão pensando que eu matei alguém... Ou estão?

_ Tudo vai depender do que você responder – disse Medeiros.

_ Vinte e cinco de janeiro, 08 de fevereiro...  Que dia caiu?

_ Sábado – respondeu Felício.

_ Hum... Puxa, o que é que eu fiz nesse dia?  Ah, já sei, fiquei em casa.

_ Alguma testemunha? – perguntou Medeiros.

_ Não, eu estava sozinha.  E isso importa?

_ Você mora aqui mesmo no bairro? – perguntou Felício.

_ Moro.  Moro na rua Barata Ribeiro.

_ O porteiro do prédio pode confirmar que você ficou em casa? – perguntou Medeiros acendendo um cigarro.

_ Acho muito difícil aquele babaca se lembrar até do que comeu hoje no almoço.  Ele fica bêbado o tempo todo!       

_ Você sempre veste vermelho? – perguntou Felício.

_ Vermelho é a cor da paixão, querido!  E eu sou uma mulher sempre apaixonada!

_ Qual o número da Barata Ribeiro que você mora? – perguntou Felício.

_ Cento e noventa e quatro.  Apartamento 210.

O parceiro de Medeiros pegou um bloco e uma caneta no bolso da camisa, entregou os objetos ao transexual e lhe pediu que anotasse o seu endereço e nome completo.

_ Muito bem.  É só isso.  Talvez a gente volte a te procurar, Pamela – disse Felício já se virando para ir embora.

_ Ei, vocês não me disseram quem foi assassinado!

Felício, já na porta do camarim, voltou o rosto para Pamela e disse: _ Você deveria ler mais jornal, querida. 

A obviedade dos indícios

Sábado, 15 de fevereiro de 2003, 8h52...

O telefone toca insistentemente, enquanto o homem está debaixo do chuveiro.  Ele deixa escapar um palavrão sem grandes conseqüências morais, se enrola na toalha e sai patinando pelo apartamento até chegar ao aparelho.

_ Alô!

_ Alô!  Medeiros?  Sou eu, Felício.

_ Fala, meu irmão.  O que houve?

_ Olha, estou aqui em frente ao IML.  Não passe na delegacia, venha direto pra cá.

_ Já tá sabendo de alguma novidade?

_ Ainda não, mas o Raul tá aqui comigo.  A gente só tá esperando o Dr. Antônio Manoel chegar pra ele expor o resultado da necropsia.

_ Só vou colocar a roupa e já tô saindo.  Dentro de meia hora estou chegando.

_ Mas vê se não demora!

_ Pode deixar, já tô quase chegando aí.

_ Um abraço.

_ Outro.

Medeiros nem volta para acabar seu banho.  Termina de secar o corpo e veste a primeira camisa que encontra.  Veste-se em menos de cinco minutos.  Pega a carteira, a pistola e as chaves do carro.  Mais cinco minutos e já está no trânsito a caminho do IML, onde chega um pouco depois do tempo combinado com o colega.  Logo avista o perito Raul conversando na portaria do IML com o Dr. Antônio Manoel.  Não vê Felício, que com certeza deve estar por perto.

_ Bom dia, Raul!  Bom dia, doutor!

_ Bom dia – o perito e o médico respondem quase ao mesmo tempo.

_ Cadê o Felício?

_ Foi ao banheiro, mas já deve estar voltando – respondeu Raul.

Quando o parceiro de Medeiros aparece, os dois inspetores e o perito seguem o Dr. Antônio Manoel até a sala onde está o corpo de José Almir de Medeiros, a segunda vítima de Raquel.  Lá chegando, os três policiais não se sentem incomodados com o forte cheiro de formol.  O médico do IML já nem se dá conta do odor característico do produto químico, haja vista tantos e tantos anos trabalhando com cadáveres.

_ Meus amigos, como vocês podem ver, o assassino usou a mesma técnica do primeiro caso.  Isto é, com um detalhe... – Dr. Antônio faz uma pausa com intuito de causar certo suspense e, até mesmo, valorizar seu ofício.

_ Que detalhe? – perguntou Felício.

_ A vítima estava de costas quando foi atacada – revelou o médico.

_ Como o senhor pode saber disso?

_ Simples, inspetor Medeiros.  Levando-se em conta que o assassino é canhoto, e o golpe foi desferido da direita para a esquerda, tanto faz levando-se em conta a posição do assassino quanto da vítima.  Este último foi sodomizado, pois também foram encontrados restos de fezes ao redor do ânus, que estava com a anatomia um pouco comprometida.   Além disso, foram encontrados vestígios de sêmen no carpete do apartamento da vítima, sendo que o corpo estava em decúbito ventral.  Posso até lhes garantir que o assassinato ocorreu logo após a vítima ter chegado ao orgasmo.  Como no outro caso, não foi encontrado vestígio de sêmen do assassino.  Provavelmente ele tem um controle muito grande até sobre a sua pré-ejaculação. Porém o mais certo mesmo é que ele tenha usado preservativo. 

_ Fantástico! – exclamou Medeiros.

_ Não creio que chegue a tanto, mas muito obrigado pelo elogio.  Diria apenas que segui a lógica da situação encontrada.

_ E o senhor seria capaz de precisar o horário do assassinato? – quis saber Felício.

_ Levando-se em conta o estado do corpo, diria, sem medo de ficar muito longe da verdade, que o óbito se deu entre as 18 horas do último sábado e as 6 da manhã de domingo. 

_ O senhor nos esclareceu muitas coisas, doutor! – Felício ficou entusiasmado.

O perito e os dois inspetores agradeceram à aula do Dr. Antônio Manoel e voltaram para a delegacia.  Durante o percurso, Felício foi o primeiro a puxar conversa.

_ Raul, você conseguiu descobrir as últimas ligações do celular do José Almir de Medeiros?

_ A operadora telefônica ficou de me enviar um fax hoje.  Assim que chegarmos na delegacia, vou verificar.

_ Excelente!      

_ E os exames das digitais? – perguntou Medeiros.

_ Idênticas!  O assassino é o mesmo! – garantiu Raul.

_ Muito bem!  Acho que já ultrapassamos o estágio da especulação, meus amigos.  Diria até que temos provas suficientes para prender o assassino! – exaltou-se Felício.

_ E quem é o assassino? – perguntou Raul.

_ Se não estou enganado, é o traveco que nós estivemos investigando – arriscou Medeiros.

_ Exato, parceiro!  Você se lembra de quando pedi para a Pamela escrever o nome e o endereço dela?  Pois é, ela é canhota!  E ela adora vermelho, a mesma cor do vestido usado pelo travesti que matou o professor de psicologia.

_ Filosofia, Felício – corrigiu Medeiros – tragando seu cigarro.

_ Sim, sim, professor de filosofia – consertou Felício.   

Assim que chegaram à delegacia, Raul foi verificar se já havia chegado o fax da companhia telefônica.  Enquanto isso, Felício e Medeiros foram contar as últimas novidades ao delegado Marcos Alexandrino.

_ Vocês têm certeza?

_ Claro, delegado!  Só pode ser ela a assassina – confirmou Felício.

_ Ótimo!  Vou providenciar o mandado de prisão.  Quero essa boneca hoje mesmo atrás das grades.  Hoje a imprensa vai ter de me aplaudir! – disse Alexandrino.    

A quase prova

11h40...

Raul entra na sala onde já estão o delegado Alexandrino e os inspetores Medeiros e Felício. 

_ Eis as ligações dos últimos dois dias do celular da segunda vítima! – disse um exultado Raul balançando o papel do fax que acabara de receber.

No fax constavam informações preciosas para a investigação policial: vários números de telefones e seus respectivos proprietários.  Felício correu os olhos pela lista, mas não encontrou o nome de registro de Pamela.  “Com certeza o celular que ela portava era comprado de terceiros, daí não estar em nome de Paulo César Soares, o verdadeiro nome do transexual”, pensou o parceiro de Medeiros.  “A menos que Pamela estivesse mentindo quanto ao seu verdadeiro nome...”, concluiu.

Em menos de uma hora, o delegado recebeu o mandado de prisão em nome de Paulo César Soares.  Medeiros e Felício estavam tomando um cafezinho.  Medeiros, com um cigarro entre os dedos, soltava mais uma baforada.

_ Vamos, parceiro – disse Felício.

Em pouco tempo os dois policiais estavam a caminho do apartamento de Pamela.  Não demoraram muito, não mais que 20 minutos, já que a delegacia fica próxima.  Talvez, se fossem a pé, levariam menos tempo.  Estacionaram a viatura em local proibido, mas policiais são policiais, a eles são permitidas certas transgressões em nome da lei e da ordem.

A fachada do edifício não atrairia nem mesmo o comprador menos exigente.  O porteiro não estava na entrada, o ambiente cheirava a mofo.  Tentaram o único elevador, mas ele estava fora de serviço.  Foram pela escada, a maioria dos bocais de energia sem lâmpadas ou com as mesmas queimadas formava uma penumbra propícia a delitos.  Tateando as paredes pelas sombras, os policiais conseguiram chegar ao segundo andar.  Agora era só encontrar o apartamento 210.  A maioria das portas estava sem número.  Havia apenas os números 203, 207 e 208.  Seguindo a lógica sequencial, os dois deduziram que o apartamento de Pamela estava atrás de uma velha porta de compensado barato.  No lugar onde deveria estar a campainha, apenas um buraco com alguns fios soltos.  Bateram na porta.  Nenhuma resposta.  Bateram outra vez, agora mais forte.  Nada. 

_ É...  Parece que a boneca não está em casa – disse Medeiros já dando meia volta.

_ Espere!  Acho que ouvi algo – falou Felício.

Passos vindos de dentro do apartamento confirmaram a suspeita do parceiro de Medeiros.  Logo a porta se abre.  A imagem de Pamela àquela hora da manhã em quase nada lembrava a da glamourosa artista da boate Galaxy.  Vestia uma camisola de seda, é verdade, mas seus belos cabelos loiros deram lugar a uma carapinha.  Profundas olheiras completavam a imagem nua e crua da criatura que saiu de Bicas, interior das Minas Gerais para tentar a sorte grande na Cidade Maravilhosa.

_ Ah, são vocês!  O que querem a esta hora da madrugada?

_ Considere-se detida! – intimou Felício.

_ O quê?  Mas por que vocês estão me prendendo?

_ Dois homicídios!  Inspetor Medeiros, leia os direitos do acusado.

A cena que se seguiu foi a histeria de Pamela, ou melhor, Paulo César Soares, acusado de ser o responsável pelos assassinatos ocorridos em Copacabana e Botafogo.  Medeiros teve de usar a força para imobilizar o acusado, enquanto Felício colocava as algemas nos pulsos de Pamela, os mesmos pulsos onde costumavam trincolejar um emaranhado de pulseiras de gosto duvidoso.

Pamela foi arrastada até a viatura.  As pessoas, na rua e nas janelas dos edifícios, paravam suas atividades para verem a tentativa dos policiais de colocarem o transexual dentro do carro.  Gritos de “prende esse veado”, “não deixe a bicha fugir” dividiam os sons do meio-ambiente com as buzinas e os motores dos carros.  Copacabana parou, mesmo que por apenas alguns instantes.

Quando a viatura estacionou em frente à delegacia, os jornalistas que aguardavam a chance de entrevistar o Dr. Marcos Alexandrino transferiram seus olhares para os dois policiais e o transexual.  Felício de um lado, Medeiros do outro, os dois inspetores quase erguiam Pamela, que mal tocava o chão. 

_ É esse o Degolador? – perguntava um repórter.

_ Como vocês chegaram a ele? – outro repórter queria saber.

_ Ele confessou os assassinatos? – mais um repórter tentava arrancar alguma informação preciosa.

_ Eu sou inocente!  Sou inocente! – gritava Pamela.

Nada.  Nenhuma palavra dos policiais, enquanto iam abrindo caminho entre a barreira de jornalistas.  Finalmente conseguem entrar na delegacia, onde alguns policiais fazem um cinturão impedindo a entrada dos profissionais da imprensa.  

_ Eis o nosso homem, delegado! – afirma Felício apontando para o transexual.

_ Então, senhor Paulo César Soares, o que te levou a cometer esses assassinatos? – perguntou o delegado.

_ Não matei nem uma barata.  Esses dois sujeitos apareceram no meu apartamento e me prenderam sem mais nem menos.  Sou inocente! – falou Pamela entre soluços e lágrimas.

_ Não adianta negar, Paulo César.  As provas contra você são substanciais! – falou um extasiado Alexandrino.

_ Que provas?  Que provas? Como pode haver provas se não fui eu que fiz aquilo com aqueles caras?

_ Inspetor Felício, apresente as provas contra o acusado – mandou o delegado.

_ Bem, segundo a perícia policial, os assassinatos foram cometidos por um travesti, que manteve relações sexuais com as vítimas.  De acordo com as informações das testemunhas, o perfil do assassino bate com o do senhor Paulo César Soares, vulgo Pamela.  Inclusive, segundo a perícia, o assassino é canhoto, da mesma forma que o suspeito, que também não possui álibi algum.  Portanto, de acordo com as provas, pela minha experiência policial, afirmo que estamos diante do assassino de Armando Quintela e José Almir de Medeiros. Apenas como prova conclusiva, mais como rotina, o acusado terá suas impressões digitais confrontadas com as encontradas nos locais dos crimes – concluiu o confiante Felício.

_  Isso é um absurdo! - tentou se defender Pamela.

_ Leve o suspeito para as averiguações, Felício – disse o delegado, enquanto pensava o que diria à imprensa, que tanto o vinha massacrando nos últimos dias. 

Digitais conclusivas

15 h...

Pamela foi levada para a sala do papiloscopista Araújo, que foi logo pegando as mãos do transexual e borrando seus dedos.

_ Alguma vez na vida você já tocou piano? – perguntou Araújo, enquanto apertava cada dedo de Pamela em uma folha própria para impressões de digitais.

_ Não – Pamela respondeu meio contrariada

_ Pois é, sempre tem a primeira vez – disse o papiloscopista.

_ Araújo, em quanto tempo saberemos se as digitais dela batem com as encontradas nos locais dos crimes? – quis saber Felício, que estava muito confiante em sua tese.

_ Em cinco minutos. 

_ Vocês querem café? – Lima ofereceu aos dois inspetores.

_ Aceito – disse Medeiros enquanto sacava um cigarro.  Seu companheiro apenas fez um sinal de positivo com a cabeça.

Felício estava ansioso, não via a hora de ter a prova cabal dos assassinatos que estavam mexendo com a opinião pública nos últimos dias.  Seria a consagração tão sonhada em tantos anos de profissão.  Claro, ele já havia desvendado homicídios, aliás, era o que vinha fazendo desde que entrou para a Polícia Civil.  No entanto, a descoberta do Degolador da Zona Sul, alcunha criada pela imprensa carioca, seria a consagração de sua carreira.

_ Felício.

_ O que foi, Araújo? – o inspetor não gostou do tom de voz do papiloscopista.

_ Venha aqui um minuto.

Felício entra numa saleta dentro da sala de Araújo.  É onde o papiloscopista estava fazendo a comparação das digitais encontradas nos locais dos crimes com as de Pamela.  A expressão no rosto do parceiro de Medeiros é tensa, ele olha para Araújo em busca da confirmação de que sua tese é sustentável.

_ Não é ele!

_ Como não é ele?  Você deve estar errado!  Não é possível! – Felício vê todas as condecorações descerem pelo ralo.

O inspetor dá as costas ao papiloscopista, passa por todos na sala e se dirige ao seu parceiro.

_ Fique de olho no suspeito.  Tenho de falar com o Alexandrino.

_ O que foi, Felício? – quis saber Medeiros.

_ Logo você vai saber, meu amigo – o inspetor respondeu já no corredor.

* * * * *

Já na sala do delegado Marcos Alexandrino, Felício conta a última novidade.

_ Mas como não é ele?  Como vou explicar isso ao secretário de segurança?  E o que o governador vai falar? A imprensa vai cair de pau em cima de mim! – lamentava Alexandrino.

_ Temos de soltar o suspeito.  Não temos motivo para mantê-lo preso – disse Felício.

O telefone toca.

_ Espere um instante, Felício – pede o delegado, enquanto pega o aparelho.

Alexandrino reconhece a voz do secretário de segurança.

_ Como vai o senhor, seu Bambinni?

_ Depende do que você tem a me dizer em relação ao suspeito.  Então, os seus homens estavam certos mesmo?

_ ... Infelizmente...

_ O que você quer dizer com infelizmente, Alexandrino? 

_ Bem, as digitais do suspeito não conferem com as encontradas.

_ Que porcaria é essa?  Você está me dizendo que seus homens falharam?  Você está de brincadeira comigo?

_ ... Infelizmente, não, senhor.

_ E quem mais sabe que as malditas digitais não conferem?

_ Somente eu, o papiloscopista e os policiais responsáveis pelo caso, senhor.

_ Não faça coisa alguma até a segunda ordem.  Mantenha essa informação sob o maior sigilo.  Retorno daqui a pouco para dar as coordenadas.

_ Mas e o suspeito?  Não posso mais mantê-lo detido.

_ Segure as pontas, Alexandrino!  E bico calado!  Ligo daqui a pouco! – logo em seguida o secretário de segurança Antenor Bambinni desliga o telefone.

Felício observa o seu superior.  Ele nunca havia visto o delegado Marcos Alexandrino tão nervoso.  O inspetor sabe que algo está para acontecer e, com certeza, não é coisa boa.  A bomba pode estourar a qualquer momento, e quem estiver por perto vai ser atingido pelos estilhaços.  Os minutos passam lentamente, aumentando ainda mais o clima tenso na sala do delegado.  Finalmente o telefone volta a tocar, Alexandrino nem espera dar o segundo toque para atender. 

_ Pronto!

_ Alexandrino, deixe a coisa como está! – disse o secretário de segurança. 

_ Não estou entendendo, senhor secretário.

_ Meu filho, ninguém precisa saber que não foi essa bicha que assassinou aqueles dois.  Vamos manter a história como está.  Se mexermos mais nisso, vai feder.  Quero que você apresente esse veadinho como sendo o autor desses crimes.

_ Mas...

_ Não tem mais nem menos, Alexandrino!  Ou você quer perder o seu emprego? 

_ Não...  Claro que não, senhor.

_ Então, siga as ordens.  O próprio governador Rosendo Matheus me disse agora mesmo que quer jantar assistindo à prisão desse veadinho no Jornal Nacional.

_ Sim, senhor.  Vou providenciar para que o governador tenha a sua vontade atendida.

_ Muito bem, Alexandrino.  Você ainda é jovem, mas já está aprendendo como a banda toca – falou o secretário de segurança desligando o telefone em seguida.

O delegado Alexandrino vira-se para Felício.

_ Ninguém mais pode saber do que você acabou de me contar, Felício.

_ Como assim, delegado?  Não estou entendendo.

_ Coloque o suspeito numa cela.  Quero-o sozinho.  Depois chame todos que sabem do resultado do confronto das digitais.  Quero todos aqui agora!

Felício logo percebeu que o delegado estava sendo coagido pelo secretário de segurança.  Ele se dirigiu à sala da papiloscopia, onde encontrou Medeiros, Araújo, Lima e Pamela.

_ Medeiros, o delegado falou pra prender o suspeito.  E depois ele quer conversar com a gente.

_ Eu também? – perguntou Araújo.

_ Todos nós.  Você também, Lima.

_ Puxa, até comigo?  A coisa deve ser séria! – exclamou o auxiliar do papiloscopista.

* * * * *

Os quatro homens da polícia estão na sala do delegado.  Felício é o único que se mostra preocupado, pois já está mais ou menos a par da situação, pois ouviu parte da conversa telefônica do delegado com o secretário de segurança.  A sua experiência de anos na polícia parece avisá-lo de que a sujeira vai ser jogada para debaixo do tapete.  Só Alexandrino parece tão ou mais nervoso que o parceiro de Medeiros.

_ Bem, não vou enrolar muito.  Recebi ordens de cima, do próprio governador.  Ele não quer descartar o nosso suspeito. 

_ Mas, delegado, as digitais não são dele! – protestou Araújo.

_ Eu sei disso!  O Felício já me disse!  Mas o que eu posso fazer?  Você quer que eu ignore as ordens do governador e solte o suspeito?

_ Eu não entendo dessas coisas políticas, delegado.  Mas sei que o suspeito é inocente.  E é isso que importa pra mim – continuou protestando o papiloscopista.

_ Araújo, não estou dizendo que iremos manter o suspeito preso indefinidamente.  É apenas pra ganharmos tempo.  A imprensa está em cima, tá todo mundo em cima, o Bambinni está me pressionando, o governador está me pressionando.  Preciso da cooperação de vocês.  Tempo, é isso que estou pedindo! 

_ E se o degolador continuar agindo?  Vamos passar por idiotas! – foi a vez de Medeiros fazer coro aos protestos de Araújo.

_ Estou contando com você e Felício pra pegarem esse maldito assassino antes dele agir novamente – disse Alexandrino.

_ Você vai apresentar o suspeito à imprensa como o degolador? – quis saber Felício.

_ Não!  Apenas vou dizer que temos um suspeito.

_ E como vai mantê-lo preso? – quis saber Araújo.

_ Há fortes indícios de que ele é o degolador.  Baseado nisso vou mantê-lo detido até resolver esse caso – respondeu o delegado.

_ Vai colocá-lo junto com os outros presos? – perguntou Lima.

_ Não, claro que não!  Por isso mandei colocá-lo sozinho em uma cela.  Não quero que ele se machuque.  Sei muito bem o que os outros vagabundos fariam com um travesti.  Ponham uma coisa na cabeça: estou sendo pressionado por alguém bem mais forte que todos nós.  Não tenho como ir contra uma ordem dessas.  Estou fazendo o jogo do governador, só que há maneiras e maneiras de se jogar.  Então, posso contar com a ajuda de vocês?

Os quatro homens da polícia olharam para o rosto de galã de novela mexicana do delegado.  Nenhuma palavra pronunciada, nem um sussurro sequer.

_ Então, homens?  O que vocês me dizem? – insistiu Alexandrino.

_ Bem, acho que podemos sustentar essa história por algum tempo.  Pelo menos até o assassino voltar a agir – ironizou Araújo.

_ É, acho que dá pra ganhar um tempo – concordou Lima, não entendendo as ferinas palavras do papiloscopista.

_ Eu e o Felício vamos fazer o possível pra resolver esse caso antes que o assassino mate outra vez, delegado – respondeu Medeiros.

_ Excelente!  É disso que preciso!  Uma equipe! – Alexandrino tentou animar os quatro homens.

A vida de Felício

19h36...

Medeiros se despede do amigo, que desce do carro e segue andando pela calçada tomada de gente de todo tipo.  Ele está apreensivo com os últimos acontecimentos.  Se não bastasse a furada em sua investigação, ainda terá de manter uma mentira praticamente insustentável.  Não que Felício seja um poço de honestidade, se bem que sente certo remorso por participar dessa farsa contra Pamela, afinal, ele sabe da inocência do transexual.  No entanto, Felício está mais preocupado consigo mesmo, já que basta uma única coisa acontecer para que toda essa história inventada perca a credibilidade: o degolador voltar a agir.  E pensar que ele poderia ter evitado toda essa confusão se tivesse atentado para o fato de que já tivera a oportunidade de verificar as digitais de Pamela, quando ela escreveu o seu endereço com a caneta de Felício no primeiro dia em que se falaram, ainda na boate Galaxy.

Felício Mascarenhas Júnior nasceu em Nogueira, distrito de Petrópolis, em 1960.  Hoje está com quase 43 anos.  Mora sozinho desde que se separou da mulher, uma tal Dorotéia.  Não tiveram filhos, talvez mal tiveram tempo para se conhecerem, logo se separaram.  Dizem que Dorotéia não aceitou o modo de vida do marido, que era dado a escapadas noturnas com amigos estranhos.  Seja como for, o policial morava em um pequeno quarto e sala na rua Barata Ribeiro. 

O parceiro de Medeiros entra no apartamento, retira o coldre que carrega sob o braço direito, coloca-o sobre a mesa da sala.  Liga o rádio, que toca um pagode de um grupo qualquer; nem ele, que admira o gênero, sabe quem está cantando.  Tira a roupa, está só de cueca, pega a toalha de banho, acende o aquecedor a gás, liga o chuveiro.  Retira a última peça de roupa e entra no box, onde a fumaça anuncia um banho quente e relaxante.

* * * * *

Ainda dia 15 de fevereiro, 21h...

Em frente à televisão, Felício come calmamente um sanduíche de atum e maionese.  Ao lado está um copo de suco de laranja.  O policial continua pensativo, sabe que a farsa sobre o Degolador não vai dar certo.  Irritado, Felício larga o último pedaço do sanduíche, pega o telefone e liga para Medeiros.  O telefone toca insistentemente.  Medeiros atende.

_ Alô!

_ Medeiros!  Sou eu, Felício!  Atrapalhei alguma coisa?

_ Não, que isso, você nunca atrapalha, meu irmão! – Medeiros mente, pois na verdade fora interrompido justamente quando fazia amor com Tereza, que espera impaciente na cama a volta do amante.

_ Sabe o que é?  Bem, não estou conseguindo tirar da cabeça essa história que o Alexandrino quer armar pra cima daquele traveco.

_ Sei...  Eu tava pensando justamente nisso – Medeiros novamente falta com a verdade.

_ Pois é, imagina se esse degolador mata mais alguém?  Como é que a gente vai ficar nessa história?

_ É verdade...  Felício, estão batendo na porta.  Depois eu te ligo pra gente conversar – Medeiros inventa mais essa mentira, pois Tereza o está puxando para cama pelo pênis.  Ela quer, ou melhor, ela precisa continuar o que fora interrompido pelo inoportuno telefonema de Felício.

_ Tá bem, meu amigo.  Um abraço.

_ Até mais – Medeiros coloca o telefone no gancho e se entrega à luxúria.

Do outro lado da linha, Felício continua no seu martírio.  As horas passam e nada do Medeiros lhe retornar.  Ele acaba adormecendo no sofá da sala, ao lado do telefone.

Uma gargalhada na praia de Copacabana

Domingo, 16 de fevereiro de 2003, 10h11...

Um grupo de rapazes joga futebol na areia da praia de Copacabana; mais adiante, um casal se diverte em uma disputada partida de frescobol; uma linda morena passa saltitante com seu cachorro de pelos dourados; uma multidão entra na água para se refrescar, pegar jacaré ou até mesmo para aliviar um pouco a bexiga, já cheia pelas águas de coco, cervejas.  Nada diferente dos muitos e muitos dias ensolarados na praia mais famosa do mundo.

            _ Biscoito Globo!  Vai um biscoito Globo, gatinha? – é um vendedor ambulante oferecendo sua mercadoria a mais alguém.  Entre vindas e idas, ele já deve ter percorrido uns dez quilômetros esta manhã.

            _ Não, obrigada – responde a tal gatinha, que continua entretida com o jornal.  Ela só tira os olhos da matéria que está lendo para dar um gole na água de coco que comprara há poucos minutos na barraca ao lado. 

            A leitora contumaz larga o jornal que traz a matéria sobre a prisão do Degolador e corre para a água, onde fura uma onda que vem em sua direção com intenção de derrubá-la.  Ela sai vitoriosa desta batalha contra o Oceano Atlântico.  Depois sacode os cabelos  e solta uma gostosa gargalhada.  Mas não é uma gargalhada como as das malvadas das histórias infantis, ela não é a madrasta da Branca de Neve ou da Gata Borralheira.  Ela é única, ela é Raquel!      

As investigações continuam

Segunda-feira, 17 de fevereiro de 2003, 10h15...

Medeiros e Felício estão na sala de Paulo Negrão, outro inspetor de Polícia, que está repassando as informações sobre as últimas ligações do celular da segunda vítima de Raquel, o corretor de imóveis José Almir de Medeiros.

            _ Nos últimos dois dias a vítima fez 14 ligações e recebeu outras 23 – informou Negrão.

            _ Puxa, o cara gostava mesmo de falar!

            _ O homem era corretor de imóveis, Medeiros.  E com quem a vítima falou nesses dias? – perguntou Felício.

            _ A maioria era cliente.  Também teve uma ligação da mãe e duas da ex-mulher.  Aparentemente, nenhum travesti falou com a vítima nesses dias – disse o perito.

            _ Nenhum suspeito? – perguntou Medeiros.

            _ Enquanto não acharmos uma pista, todos são suspeitos – respondeu Negrão.

            _ E por quem você acha que devemos começar?

            _ Tem um tal Rodolfo Simplício Marques.  Ele me parece o mais apropriado a ser investigado primeiro.  É um arquiteto que compra imóveis, depois reforma e revende.  Até aí, nada suspeito.  Só que o cara tem 34 anos, é solteiro, frequenta ambientes para homossexuais e já foi fichado por agressão.  E o melhor: o telefonema foi feito na noite do dia 08 de fevereiro, o dia do assassinato da segunda vítima do Degolador.

            _ Como você soube disso tudo, Negrão?

            _ Felício, você se esqueceu de que também trabalho na polícia? – respondeu o inspetor com um sorriso estampado no rosto marcado pelo tempo.

* * * * *

14h...

Já dentro da viatura a caminho do escritório de Rodolfo Simplício Marques, localizado na rua Buenos Aires, no Centro, os inspetores Felício e Medeiros comentam sobre a possibilidade do arquiteto ser o assassino.

            _ Era tudo o que eu queria, Medeiros!

            _ O quê?

            _ Que esse tal engenheiro fosse o assassino.

            _ Arquiteto, Felício.  O homem é arquiteto.

            _ Ah, arquiteto, engenheiro, decorador!  Qual é a diferença?  O que importa é se ele é ou não o degolador!  

             O carro da polícia para na esquina da av. Rio Branco com a rua Buenos Aires.  Medeiros e Felício abrem caminho entre os pedestres e logo estão no prédio do escritório do suspeito.  Os dois policiais apertam o quarto andar no elevador quase deserto, se não fosse pela presença de uma senhora de mais de 70 anos, tez alva, cabelos azulados, quase da mesma cor dos profundos olhos que miram a figura de ébano e cara de poucos amigos de Felício.  Ela tanto se distrai e acaba se esquecendo de apertar o botão do segundo andar, onde faria uma visita de rotina ao cardiologista.

            _ Chegamos! – disse Medeiros.

            _ É – concorda Felício procurando a sala 418, logo encontrando com o auxílio de setas indicativas.

            Tocam a campainha e são atendidos por uma linda ruiva. 

            _ Pois não? – pergunta a mulher com um sorriso de marfim. 

            _ Nós somos os inspetores de Polícia Felício e Medeiros.  Gostaríamos de falar com o senhor Rodolfo Simplício Marques – falou Felício, pois Medeiros está embasbacado com a formosura da ruiva.

            _ Bem, não sei se o Dr. Marques poderá atendê-los, já que está com a agenda lotada.  Eu não poderia ajudá-los?  Caso vocês queiram me adiantar o assunto... 

            _ Não, não...  O assunto é de foro íntimo, seria só com ele mesmo – insistiu Felício.

            _ Bem, vou ver o que posso fazer pelos senhores.  Queiram aguardar um instante, por favor.  Os senhores gostariam de um suco, um café, uma água?

            _ Dois cafés, por favor – respondeu Felício.

            A estonteante mulher, então, dá meia volta e se dirige à porta ao lado de sua mesa.  Os olhos de Medeiros aproveitam a oportunidade e se atiram sobre o lindo volume que estufa o vestido de cor bege.  A ruiva dá uma leve batida na porta e entra.

            _ Você viu, cara?  Puxa, que avião!!!

            _ Vi, vi sim essa sua cara de babão – Felício recrimina o amigo.

            _ Meu irmão, é como eu sempre digo: 99% das ruivas são feias, mas quando aparece uma bonita...  Aí, não tem pra ninguém, nem pra morena, nem pra loira, nem pra japonesinha...

            _ Tá, tá bom, mas guarde suas filosofias baratas pra mais tarde.  Agora a gente tá trabalhando, Medeiros!       

               Em instantes reaparece a nova musa do policial Medeiros.  Ela está com o mesmo sorriso emoldurando o lindo rosto.

            _ O Dr. Marques irá atendê-los – fala a secretária, abrindo a porta para que os dois policiais possam entrar.

            _ Muito obrigado – Medeiros agradece lançando um sorriso e um olhar um tanto malicioso para a ruiva.

* * * * *

14h38...

_ Senhor Rodolfo Simplício Marques? – Felício pergunta o óbvio.

            _ Sim, sou eu.  O que os senhores querem comigo?  Por acaso cometi algum crime nesta semana?

            _ Não estamos aqui pra brincadeira, senhor Rodolfo – responde com firmeza Felício.

            _ Desculpe, não quis ofendê-los.  Mas é que não costumo receber visitas da polícia.  Mas o que os senhores desejam?

            _ Sou o inspetor Felício e esse é o inspetor Medeiros.  Estamos investigando dois assassinatos ocorridos nos últimos dias.  O senhor deve estar a par desses crimes, pois foram divulgados por diversos jornais.

            _ Inspetor, sou arquiteto, não tenho o hábito de me prender aos noticiários policiais. 

            _ Por acaso o senhor está a par dos crimes do Degolador, como a imprensa está chamando o assassino que já fez duas vítimas até o momento? – perguntou Medeiros.

            _ Sim, ou melhor, sei por alto.  Mas até onde sei, o criminoso já está preso.  Não é um travesti?

            _ É um suspeito.  O caso ainda não está totalmente solucionado – respondeu Felício.

            _ Tá, mas e daí?  Onde é que eu entro nessa história? – o arquiteto começa a se irritar. 

            _ Bem, o celular da última vítima do Degolador recebeu uma ligação de um telefone que está no seu nome – falou Felício.

            _ No meu nome?  Impossível!  Nem conhecia esse sujeito! – tentou se defender um transtornado Rodolfo Marques.

            _ Por acaso esse telefone não é do senhor? – Felício perguntou entregando um papel onde constavam alguns números.

            O arquiteto pegou o papel e ficou olhando, parecia não estar entendendo.  De repente começou a falar com um tom de surpresa.

            _ Não entendo, não entendo...  Como pode ser uma coisa dessas?  Não, não pode ser.  Alguma coisa deve estar errada, com certeza tudo não passa de um engano.

            _ Não há engano algum, senhor Rodolfo.  Se não foi o senhor que fez a ligação, foi alguém da sua casa – disse Medeiros.

            _ Não, não pode ser, moro sozinho...

            _ Um empregado? – perguntou Medeiros.

            _ Tenho uma senhora que faz a faxina no meu apartamento três vezes na semana.  Poderia ser ela.  Aliás, só pode ser ela!

            _ E quais são os dias que ela trabalha para o senhor? – Medeiros fez nova pergunta.

            _ Segunda, quarta e sexta-feira.

            _ E qual é o horário dela? – mais uma pergunta de Medeiros.

            _ Ela chega por volta das sete, oito horas e sai lá pelas 14.

            _ Ela tem as chaves do seu apartamento? – Felício perguntou.

            _ Tem.  Mas por que o senhor quer saber isso?

            _ Bem, é que se foi ela mesma que fez a ligação para o celular da última vítima, com certeza não foi no horário de trabalho.  O telefonema foi feito às 12h18 no dia do assassinato – concluiu Felício.

            _ O quê?  Não, não pode ser!  Ela nunca vai a essa hora à minha casa.

            _ Seja como for, senhor Rodolfo, não estamos aqui com um mandado.  No entanto, o senhor irá receber uma intimação para comparecer à delegacia para maiores esclarecimentos.  Por enquanto, muito obrigado.  Logo voltaremos a nos ver – disse Felício se voltando para a porta, deixando um perplexo Rodolfo estatelado na luxuosa cadeira de encosto alto forrada de veludo vermelho.

            Antes de saírem da sala, os policiais agradeceram também a prestativa secretária.

            _ Perdão, mas qual é a sua graça, senhorita? – quis saber um quase atrevido Medeiros.

            _ Graciele – respondeu uma ruborizada mulher, o que fez realçar ainda mais os fios vermelhos que emolduravam o lindo rosto.

* * * * *

Ainda dia 17 de fevereiro, 15h26...

Assim que saíram entraram na viatura...

            _ O que você achou desse tal Rodolfo? – Medeiros, pegando um cigarro no maço quase vazio, perguntou.

            _ Olha, posso até estar enganado, mas acho que ele é o nosso homem – respondeu Felício.

            _ É, também achei a mesma coisa. 

            _ Aquela cara de surpreso que ele fez quando falamos que houve uma ligação da casa dele para o celular da segunda vítima não me convenceu. 

            _ É, você tem razão, Felício.  Também não engoli aquele teatrinho fajuto.              

Outro cliente

Sábado, 08 de março de 2003, 12h11...

A construção da casa no Jardim Botânico era de longa data, anterior à Segunda Grande Guerra.  Ali moravam pessoas de certa condição, não se podendo dizer que eram ricas, mas estavam longe daquela casta que precisa contar as migalhas no final do mês.  Todos estavam viajando.  Todos é uma força de expressão, já que o chefe da família (se é que as feministas de plantão permitem esse termo já um pouco démodé) havia ficado para resolver algumas pendências.  Também havia empregados na casa, mais precisamente duas, sendo uma cozinheira e outra faxineira, mas ambas estavam de folga naquele dia.         

            A campainha toca!  A linda mulher, que espera na calçada pouco iluminada, observa o interior da casa pela cortina entreaberta da sala.  Ela percebe que acenderam a luz.  Em instantes a enorme porta de madeira de lei se abre, surgindo a figura de um minúsculo homem, pouco mais que um anão, raquítico, cabelos ralos e brancos que ainda teimam em resistir à calvície avançada.  Não se pode afirmar que se trata de um senhor idoso, mas a juventude já o abandonou há um bocado de anos.

            _ Boa noite.  Por favor, vamos entrando – disse o homem.  

            _ Boa noite – a mulher devolveu o cumprimento e adentrou.       

            O mais novo cliente da dama da noite puxou Raquel pela mão, mas essa logo se desvencilhou.

            _ Primeiro o pagamento, meu bem – Raquel foi incisiva.

            _ Claro, claro, me desculpe – disse o homem se dirigindo a outro aposento da casa.

            Em menos de dois minutos o cliente retornou com os R$ 300,00.

            _ Está aqui o seu pagamento.  O seu nome é Raquel, não é?

            _ Só pra você, meu amor.  E o seu é Rubens mesmo?

            _ Na verdade me chamo Sandoval, mas não gosto do meu nome.  Inclusive as pessoas me chamam de Pereira.

            _ Hum, Pereira!  Taí, gostei de você, Pereira. 

            Sandoval Pereira pareceu gostar do comentário de Raquel.  O quase anão abaixou os olhos e sorriu timidamente.

            _ O que você quer que eu faça com você, Pereira? – Raquel falou lançando um olhar irônico para o amante da vez.

            _ Quero que me castigue, pois tenho sido um mau menino há muito tempo.

            _ Um mau menino?  E por que você tem feito pra ser um mau menino, Pereira?

            _ Eu tenho me masturbado cheirando as calcinhas das empregadas.

            _ O quê?  Então, você gosta de ficar fuçando as calcinhas das criadas?

            _ Sim, eu gosto muito!

            _ E você quer cheirar a minha calcinha também?

            _ Se a senhora me permitir, eu cheiro com o maior prazer, minha rainha.

            _ Ah, Pereira, você realmente é um menino muito malvado – falou Raquel aplicando um bofetão no pequeno homem, que se curvou diante de tal demonstração de superioridade.

            _ Me desculpe, minha senhora – implorava o homem ajoelhado aos pés de Raquel.

            _ Seu verme!!! – gritou a profissional desferindo novo bofetão com a outra face da mão, fazendo com que sua vítima tombasse.

            Só então Raquel percebeu o volume que se formou sob a bermuda do cliente.  Não que fosse um volume descomunal, mas era maior do que ela supunha, levando-se em conta o porte de Pereira.     

            _ Ficou de pau duro, cretino?

            _ Nã-nã-não, minha senhora – gaguejou o homem.

            _ Não minta pra sua rainha, sua lombriga de estrume!  Tire toda a roupa antes que eu lhe arrebente a fuça!

            Em instantes a ordem de Raquel foi cumprida.  Então, até para espanto e deleite de Pereira, ela se ajoelhou e levou a boca até o membro em riste.  Ela sugou o sexo do amante com tamanha força que, por um instante, fez Pereira temer pela integridade do seu brinquedinho.

            _ Hum, que delícia! – disse Raquel interrompendo a felação.

            _ Por favor, minha senhora, continue – implorou o homem.

            _ Cale essa boca imunda, seu verme asqueroso – berrou Raquel presenteando mais uma vez as faces de Pereira com dois safanões.

            A prostituta se levantou, andou em volta de sua vítima como um tubarão escolhendo o melhor momento para atacar.  Pereira parecia mesmo assustado ou, talvez, fosse apenas encenação para o teatrinho que acreditava estar participando.

            _ De quatro!!! – Raquel ordenou, sendo logo atendida.

            A visão das nádegas brancas e descarnadas do pequeno homem fez a prostituta entrar em transe, tamanha sua excitação.  Ela besuntou seu brinquedinho com um pouco de pomada, depois passou o dedo médio ao redor do ânus de Pereira, que abaixou a cabeça para expor ainda mais seu traseiro.  Raquel deu um sorriso sarcástico e enfiou o dedo besuntado no orifício anal do homem, que soltou um leve gemido de prazer.  Ela pincelou a glande de seu enorme membro no ânus de Pereira e, talvez sem nem mesmo ele esperar, penetrou-o de uma só vez.  O homem apertou os músculos anais e se deixou cair por completo no chão da sala, sendo possuído de forma violenta pela amante.

Pereira teve um orgasmo logo após, o que fez todo seu corpo relaxar.  Raquel acabara de dar ao cliente o que ele queria.  Agora era a vez de realizar a sua fantasia.   Sem o amante perceber, ela abriu a sua bolsa, que estava ao seu lado no tapete, pegou a faca tipo magarefe e passou no pescoço de Pereira, que não teve tempo de esboçar qualquer reação. 

 

Mais um corpo

Segunda-feira, 10 de março de 2003, 08h40...

Medeiros e Felício já estavam de partida para mais uma diligência atrás de provas, quando foram chamados à sala do delegado Alexandrino.

_ O que houve, chefe? – perguntou Felício.

_ Parece que o Degolador fez mais uma vítima.  O filho da puta agiu de novo!

_ Onde foi? – quis saber Medeiros.

_ Numa casa no Jardim Botânico.  O Raul já está indo pro local.  Quero que vocês dois vão com ele.

_ Pode deixar com a gente, chefe – disse Felício.

_ Ah, e o traveco que prendemos?  Teremos de soltá-lo agora – lembrou Medeiros.

_ Eu sei disso.  O secretário de segurança já me ligou.  Ele quer que encontremos esse maldito Degolador o mais rápido possível.  A imprensa vai cair de pau em cima de mim – lamentou Alexandrino.

* * * * *

09h15...

Os cinco homens da Polícia Civil (Medeiros, Felício, Raul, Araújo e o ajudante Lima também) estão a caminho do local do crime. Raul puxa a conversa.

_ E aí, Felício, soube que você e o nosso amigo aqui fizeram uma visita a um suspeito.

_ Só fomos fazer uma sondagem de rotina.

_ E o que acharam do suspeito?

_ Não sei, Raul.  Depois da minha mancada com aquela história do travesti, estou mais cauteloso.

_ Não diria que foi mancada, mesmo porque houve ordem de cima pra que o traveco fosse apresentado à imprensa como o principal suspeito do caso.  O pior é que já sabíamos que ele era inocente – o perito tentou ser complacente. 

Não demoraram muito para chegar ao local do crime.  Havia uma aglomeração de pessoas na frente da casa do Jardim Botânico: policiais, familiares e amigos da vítima, o pessoal da imprensa e curiosos, aliás, muitos curiosos.

Já dentro da casa, Raul não perdeu tempo para começar o seu trabalho, sempre auxiliado por Lima.  Felício acompanha o trabalho do perito, enquanto Medeiros vai tentar arrancar alguma informação útil dos familiares, amigos e empregadas da vítima.

_ Veja, Felício!  O corpo está quase na mesma posição da segunda vítima.  Foi degolado logo após ter ejaculado, pois há esperma no tapete.

_ É o mesmo assassino, Raul? – quis saber Felício.

_ Provavelmente, muito provavelmente. 

_ Lima, pegue as digitais na maçaneta das portas.  Com elas poderemos ter certeza de que se trata do mesmo assassino – disse o papiloscopista Araújo.

_ Deixa comigo, chefe! – Lima, um rapaz de não mais de 25 anos, cabelos encaracolados, pele clara e corpo ligeiramente roliço, logo se prontificou a cumprir as ordens.

_ Encontrou mais alguma coisa, Raul? – Felício perguntou.

_ Não, aparentemente nada mais que possa ajudar nas investigações.  O mesmo ritual do segundo assassinato.  E parece que este aqui gostava de levar uns sopapos, pois seu rosto está com alguns hematomas.  É um homem pequeno e magro, tem certa idade...  Também parece que o nosso assassino tem gosto variado.

_ Aqui estão as digitais, chefe – era Lima segurando um pote com lâminas de vidro e fita tipo durex.

_ Muito bom, meu garoto, disse Araújo.

_ Agora pegue a câmera e comece a bater fotos do local e da vítima, pediu Raul. 

_ É pra já, chefe! – respondeu um entusiasmado Lima, que estava na Polícia Civil há pouco mais de um ano, mas já vinha demonstrando grandes qualidades no campo pericial. No entanto, ele era do quadro administrativo.

Depois de andar pela casa à procura de pistas e nada encontrar de substancial, Raul liberou o corpo da vítima para ser levado ao IML pelo pessoal da Defesa Civil. 

_ Vou tomar um cafezinho.  Vocês vêm comigo? – quis saber o perito.

_ Tô dentro! – respondeu Lima quase instantaneamente.

_ Vão indo, depois apareço lá.  Vou esperar pelo Medeiros, que parece já estar acabando de conversar com aquela senhora ali – Felício indicou com os olhos uma mulher de seus 45-50 anos, alta, corpulenta e que demonstrava estar realmente sentida pela perda de um ente querido.

_ Então, tá!  A gente vai ficar ali naquele boteco logo na esquina – disse Raul.

Mas antes mesmo do perito e de seu auxiliar virarem as costas, Medeiros já havia terminado a conversa com a senhora robusta e se dirigia à rodinha formada pelos três policiais e Lima.

_ E aí, Medeiros, conseguiu alguma coisa? – quis saber Felício.

_ Aquela senhora trabalha na casa há mais de cinco anos.  Foi ela quem encontrou o corpo esta manhã e avisou à polícia. 

_ Sem querer te cortar, vamos lá embaixo tomar um cafezinho, Medeiros? – falou o perito.

_ Tudo bem! – respondeu Medeiros já pronto para acender um cigarro ou, como ele mesmo gostava de dizer, um mata-rato.

* * * * *

Ainda dia 17 de março, 11h20...

No boteco da esquina...

_ O nome da vítima era Sandoval da Cunha Pereira, mais conhecido por Pereira pelos amigos e familiares ou, então, Dr. Pereira.  Aposentado do Banco do Brasil, 58 anos, casado, pai de três filhos.  Continuava trabalhando, pois era cirurgião-dentista.   Estava sozinho em casa, a família estava viajando e, anteontem à tarde, liberou as duas empregadas da casa.  Aparentemente fez isso para se entregar à putaria – informou o policial Medeiros.

Intimidação de um intimado

Dia 18 de março de 2003...

Era ainda manhã de uma terça-feira ensolarada quando o arquiteto Rodolfo Simplício Marques adentrou na 12ª DP em Copacabana.  Ele havia recebido uma intimação para comparecer naquela data para prestar esclarecimentos sobre os assassinatos ocorridos nos últimos tempos na Cidade Maravilhosa.  Sua fisionomia não era das mais tranquilas; poder-se-ia até mesmo afirmar que estava bastante perturbado pela situação que se encontrava.  De qualquer forma, lá estava o Dr. Marques, como sua secretária costumava chamá-lo, um homem de pouco mais de 1,70 metro de altura, uns 75 quilos, pele bronzeada, traços de uma beleza até mesmo feminina, as maçãs do rosto proeminentes, olhos quase negros, cabelos encaracolados e descoloridos.  Ele se dirigiu ao balcão, onde foi atendido por uma mulher macérrima e de feições grotescas.  

_ Bom dia. Recebi isso – o arquiteto falou enquanto entregava a intimação à atendente.

_ Queira aguardar, por favor – a mulher respondeu apontando um conjunto de cadeiras encostadas à parede.

Passaram-se quase 20 minutos até que a mesma mulher feia dirigiu a palavra ao arquiteto.  Quase 20 minutos, não mais que isso!  Tempo mais que suficiente para que mil coisas, inúmeras possibilidades passassem pela mente de Rodolfo Simplício Marques. 

_ Senhor, favor subir essa escada e entrar na segunda sala à direita.  O inspetor Felício está aguardando o senhor.

_ Ah, sim.  Obrigado – Rodolfo respondeu se levantando automaticamente.

* * * * *

O arquiteto deu duas leves batidas na porta entreaberta.

_ Entre! – o delegado Alexandrino, que estava acompanhado do escrivão Paulão e do inspetor Felício, intimou.

_ Licença.  Como vai o senhor, policial Felício?

Felício apenas acenou com a cabeça e saiu da sala.

_ Senhor Rodolfo Simplício Marques?

_ Sim, sou eu.  Como vai o senhor?

_ Bem, obrigado!  Pode se sentar nessa cadeira, seu Rodolfo.  Quer uma água, um café?

_ Não, obrigado.  Eu estou bem...

_ Muito bem.  Sou o delegado Marcos Alexandrino.  Aquele ali é o escrivão Paulo.  O senhor foi chamado pra prestar esclarecimentos sobre alguns crimes que estão ocorrendo. Acho que o senhor já deve estar sabendo que o Degolador agiu novamente.

_ Soube pelos jornais.  Atualmente não se fala em outra coisa, não é mesmo? – falou o arquiteto finalizando com um sorriso nervoso.

_ É...  Pois bem, seu Rodolfo...  Posso chamá-lo assim?

_ Claro!  Como quiser!

_ Pois bem, seu Rodolfo...  Onde o senhor se encontrava na noite do dia oito de março?

_ Oito de março?  Bem, deixe-me ver...  Hum, 08 de março caiu num sábado...  Me lembro perfeitamente, inspetor Felício.  Eu estava na casa de um amigo.

_ Que amigo?  E esse amigo poderia confirmar isso?

_ É um amigo um pouco reservado, se é que o senhor me entende...

_ Não, não entendo.  Seja mais claro, por favor.

_ Inspetor Felício, tento preservar minha vida particular e a de meus amigos...

_ Se você está se referindo à sua homossexualidade, nós já sabemos – disse Felício de supetão, o que causou surpresa e certo constrangimento ao arquiteto.

_ Tu... tudo bem.  Sou gay.  E ser assim não é fácil nessa sociedade hipócrita.  Não que não existam milhares, até milhões de homossexuais por aí, mas ninguém gosta de sair do armário, se é que você me entende.

_ Entendo sim, seu Rodolfo.  Mas isso não vem ao caso em questão.  O que importa é que o senhor é proprietário de uma linha telefônica de onde partiu uma ligação para o celular da segunda vítima do Degolador.  Então, por favor, e para o seu próprio bem, não esconda nada da Polícia.  Isso só viria trazer problemas para o senhor.  Quero saber com quem o senhor estava na noite do dia oito de março.

_ Quero colaborar com a polícia no que for possível, delegado.  Mas não gostaria de envolver outras pessoas, ainda mais alguém que ocupa certa posição na nossa sociedade.

_ Senhor Rodolfo, diga com quem você estava na noite do dia 08 de março! – disse asperamente Alexandrino.

Por alguns instantes se fez um silêncio na sala.  Até que as palavras começaram a brotar da boca do arquiteto.

_ Eu estava com o meu namorado num motel na Dutra.

_ E quem é o seu namorado?

_ Gostaria de manter o meu depoimento sob sigilo, pois a pessoa com quem venho saindo nos últimos três meses é alguém de certa notoriedade.

_ O seu depoimento é sigiloso, eu lhe garanto.

O arquiteto hesitou um pouco, mas acabou abrindo o jogo.

_ Meu namorado é Victor Torres.

_ O ator?! – quis saber um surpreso Alexandrino, olhando de relance para o escrivão Paulão, que até se atrapalhou na digitação.

_ O próprio – confirmou Rodolfo.

_ Mas ele não é o maior garanhão, o cara que sai com as mais belas mulheres? – Felício continuava incrédulo.

_ Tudo fachada armada pelo empresário do Victor.  Tudo em prol da imagem de galã, pois sem ela o Victor não arrumaria nem vaga de penico em comercial de papel higiênico – explicou o arquiteto.

_ Terei de confirmar essa história com o Victor Torres, senhor Rodolfo.

_ Mas você me prometeu que manteria o meu depoimento em sigilo – protestou Rodolfo.

_ Tentarei falar com o seu namorado fora da delegacia, isto é, se ele quiser falar comigo.  Caso contrário, terei que solicitar uma intimação para que ele compareça para prestar depoimento.  Se tudo sair como espero que saia, eu lhe garanto, o seu depoimento não sairá dos arquivos da polícia.  Claro, isso se o senhor for mesmo inocente e não estiver mentindo.

_ Não estou mentindo, inspetor.

_ Tudo bem. Acredito no senhor.  Vamos falar sobre as pessoas que têm acesso ao seu apartamento.  Quem mais, além do senhor, possui as chaves do seu apartamento?

_ Bem, além de mim e da senhora que faz a faxina...  Deixe-me ver...  Hum... Só o Victor.  Sim, acho que é só. 

_ Pense bem, senhor Rodolfo.  Ninguém mais?  Pense bem!

_ Tenho certeza.  Sim, são apenas essas pessoas que têm as chaves da minha casa.           

_ Você tem certeza de que não conhecia o senhor José Almir de Medeiros? 

_ Tenho!  Nunca vi esse homem em toda a minha vida!

_ E como o senhor explica que o celular dessa vítima do Degolador recebeu uma ligação do telefone da sua casa?

_ Não explico!  Simplesmente não sei como isso aconteceu!  Talvez tenha sido uma ligação errada, não sei, não entendo disso.  Só sei que não fui eu quem deu esse telefonema!

_ Talvez o Victor Torres... – sugeriu Alexandrino.

_ Impossível!  O Victor é uma pessoa maravilhosa!  Ele é incapaz de matar uma mosca, quanto mais assassinar alguém.  Absurdo!  O que o senhor está propondo é um disparate! – protestou um exaltado Rodolfo.

_ E a faxineira?  Poderia ser ela?

_ Uma senhora de quase 60 anos?  O senhor está querendo dizer que uma quase anciã é esse tal Degolador?

_ Não, mas talvez ela o esteja ajudando...  O Degolador não é mulher, ela não poderia ser ele.

_ E porque o senhor tem tanta certeza de que esse assassino é homem? Quero dizer... Não é um travesti?  Afinal, é homem ou travesti? O senhor pode me esclarecer isso?

_ Não... Sigilo policial, seu Rodolfo.  Gostaria de saber o nome completo e o endereço dessa senhora.  E caso o senhor também possa me informar o endereço ou telefone do Victor Torres, lhe agradeceria muito.

_ O nome dela é Maria Francisca dos Anjos.  Não sei exatamente o endereço dela, mas ela mora no Morro Pavão-Pavãozinho.

_ Eu poderia ter uma conversa com ela na casa do senhor?

_ Na minha casa?

_ Seria bem mais tranquilo, sem traumas...

_ Ok!  Ela estará amanhã pela manhã no meu apartamento.  O senhor poderá ir lá.

_ E o telefone do Victor Torres?

_ Vou ter que conversar antes com ele.  Do jeito que ele é, tão impulsivo, talvez ele mesmo o procure.

_ Ótimo! Muito obrigado! Por enquanto é só!  Talvez voltemos a nos falar em breve. 

_ Então, posso ir? – Rodolfo parece não acreditar que o seu depoimento tenha chegado ao fim.

_ Claro! Mas antes assine aqui, por favor.  É apenas pra constar que o senhor esteve aqui – o delegado Alexandrino passa o documento contendo o depoimento, que o escrivão acabou de bater, e uma caneta ao arquiteto.

 Depois de assinar o papel, Rodolfo se levanta, ainda desconfiado, gira o corpo em direção à porta e sai sem ao menos se despedir do policial.  Paulão acompanha o arquiteto até a saída.  Logo em seguida, o delegado chama o papiloscopista Araújo.  Este, em poucos minutos, já está em sua presença.

_ O que foi, doutor?

_ Pegue esta caneta e verifique as digitais.  Talvez já tenhamos encontrado o nosso Degolador.

O papiloscopista coloca a caneta num saco plástico e a leva ao laboratório.  Depois de algum tempo, Raul retorna à sala do delegado com o veredito.

_ Doutor, infelizmente, não é esse o nosso homem.

Alexandrino soca a mesa para tentar aplacar um pouco da sua frustração.  As cobranças continuariam até quando ele não sabia.  Talvez até mesmo o seu emprego poderia estar a perigo.

_ Por enquanto quero manter essa informação em sigilo!

_ Pode contar comigo, Delegado – disse um Araújo sem entender muito o porquê de tal pedido, ou melhor, ordem.

Um astro

Victor Torres, 34 anos, 1,95 metro de altura, quase 100 quilos de puro músculo, pele sempre bronzeada, cabelos calculadamente desalinhados, olhos de um castanho profundo, o que lhe confere um certo ar de menino desprotegido, “simplesmente o homem mais bonito da televisão”, segundo várias revistas de fofocas.  Galã de novelas campeãs de audiência, Victor nasceu em Barretos, cidade do interior de São Paulo famosa por sua festa de rodeio.  Há dez anos, no entanto, veio tentar a sorte na Cidade Maravilhosa, onde foi descoberto por um influente diretor de telenovelas.  A história é até curiosa e talvez valha a pena ser contada.

O jovem, belo e então pobretão Vitor (o “c” mudo só mais tarde foi acrescentado para lhe garantir um status de europeu dos trópicos) há alguns meses se matriculara num curso de teatro.  Ele carregava consigo a certeza de que um dia seria um grande ator, chegaria até mesmo a concorrer e, claro, ganhar a estatueta do Oscar, prêmio máximo do cinema americano.  Mas enquanto a sua hora de glória não chegava, tratava de conservar o modesto emprego de lavador de pratos, entre outros serviços menos nobres, num boteco localizado na rua Voluntários da Pátria, em Botafogo.  Não ganhava grandes coisas pelo seu duro trabalho de quase dez horas diárias, mas, afinal, dava para pagar o tal curso de teatro.  No emprego também tinha direito a duas refeições, o que já ajudava no parco orçamento do aspirante a vencedor do Oscar.

O dinheiro do curso de teatro estava garantido.  O jovem Vitor também não corria risco de passar fome.  No máximo poderia ter uma disenteria, o que na verdade aconteceu em duas ou três ocasiões, mas logo o seu organismo aprendeu a digerir aquela gordurosa e pegajosa gororoba.  Bem, faltava apenas a moradia.  E Vitor não demorou a arranjar um local para descansar o seu corpanzil de quase dois metros e oitenta e poucos quilos.  Sim, Vitor ainda não possuía a sua famosa silhueta de deus grego.

Durante o tempo de vacas magras, Vitor ia se arranjando na pensão da dona Ione, uma mulher de seus 60 anos, viúva, morena bem clara, magra de doer, ligeiramente corcunda e barrigudinha.  Aliás, pairava uma dúvida sobre as cabeças das pessoas que a conheciam, que não sabiam se dona Ione era corcunda por causa da barriga proeminente ou, então, era barriguda por causa da curvatura da coluna.  Outras coisas que chamavam a atenção das pessoas eram as orelhas e o nariz da viúva.  Quando a coroa andava, as suas orelhas balançavam parecendo querer levantar voo.  Já a ponta do nariz da dona da pensão fazia movimentos verticais, como se fosse uma vara que acabara de fisgar um peixe de tamanho respeitável.

Há muito dona Ione não sabia o que era ver um homem em estado natural.  Entrava ano, passava ano e nada da proprietária da pensão desfrutar dos prazeres carnais.  Diziam as más línguas que a pouco atraente senhora tivera um amante pouco depois de ficar viúva.  O dito cujo se chamava Josué Benevolente e, as más línguas insistem em não se calar, era totalmente cego de nascença.

Pois é, foi nesse estado de carência afetiva, beirando até mesmo o desespero sexual, que surgiu na vida da não tão atraente dona Ione o jovem e belo Vitor, que ainda conservava o forte sotaque de paulista do interior, com todos os erres possíveis e imagináveis.  Vitor não tinha como pagar nem a metade do aluguel do pior quarto da pensão da senhora sem muitos atributos físicos.  Por outro lado, dona Ione não queria perder aquele pedaço de mau caminho que parecia lhe estar caindo do céu como forma de compensação por anos e anos amolando todos os dedos da mão, sem contar os objetos mais estranhos que lhe foram tão úteis nas horas mais solitárias na sua cama, há anos sem sentir a presença de um homem.

Dona Ione não perdeu tempo.  Ela foi direto ao assunto, tamanhas eram suas esperanças em, finalmente, ter um membro do sexo oposto para esquentar o seu leito.  Vitor pareceu não acreditar na proposta da dona da pensão, mas acabou cedendo a tal capricho, mesmo porque não estava em situação de negociar.  E, a partir daquela mesma noite, o jovem e belo paulista do interior se dirigia para o quarto da dona Ione para consumar o pagamento da sua estada.

* * * * *

Durante um ensaio de uma das inúmeras peças de teatro que Vitor fazia nos tempos em que ainda era apenas mais um tentando a sorte no mundo artístico, um conhecido diretor da mais importante emissora de televisão do país veio procurar algum talento jovem para, quem sabe, lançar na próxima novela.  Damião Neto, o tal diretor, se encantou pelo jovem aspirante assim que entrou no recinto.  Trocaram alguns olhares, Vitor errou algumas falas, o diretor da peça, Jorge Clóvis de Almeida, passou-lhe um baita carão.  Damião Neto logo saiu em defesa de Vitor.

_ Almeidinha, mas o que é isso?  O rapaz tem talento, dá pra perceber isso a um quilômetro –  pronunciou estas últimas palavras fitando Vitor de cima a baixo.

_ Quem é vivo sempre aparece!  Até que enfim você resolveu fazer uma visita ao mundo dos pobretões, Damião – Almeida, que até o momento não havia notado a presença do diretor de novelas, acabou por abraçá-lo e, em seguida, arrastá-lo para um canto.

_ Como vai aquela vida boa lá na televisão? – continuou Almeida.

_ Muito trabalho, meu amigo...  Muito trabalho...  E, o pior: quase nenhuma diversão.

_ Ora, ora, mas o que o grande Damião, o diretor das maiores estrelas do Brasil, está falando?  Não vai me dizer que quer trocar de lugar comigo?

_ Ai, às vezes dá vontade, mas não conseguiria viver sem meus pequenos luxos.  Então, tenho que aguentar aquelas desvairadas pra continuar recebendo o meu ganha-pão.

_ Mas conta!  O que você veio fazer aqui?

_ Rever os amigos...

_ Ah, Damião, conta outra.  E desde quando você se lembra dos amigos pobres?

_ Injustiça da sua parte, Almeidinha.  Injustiça!

_ Gostou do menino?

_ Menino?  Que menino?

_ Damião, Damião... Você continua o mesmo...

_ Ah, aquele rapaz...  Não, não, apenas achei que você foi um pouco duro com ele.

_ Tá bom, vou fingir que acreditei!

_ É bonitinho... Nada de mais, só um pouco bonitinho.

_ Damião, o Vitor é ma-ra-vi-lho-so!  Péssimo ator, muito canastrão, é verdade.  Mas é um Apolo!  Precisa de um trato, é verdade.  Mas nada que uma aulinha de musculação não resolva... E um bom prato de comida também!

_ É, até que uma comidinha faria muito bem àquele menino... – disse Damião, logo soltando uma gargalhada.

* * * * *

Em poucos dias Vitor foi morar no luxuoso apartamento de Damião localizado na Lagoa (bairro nobre da Zona Sul).  Cinco meses depois fazia sua estreia numa novela.  Não ganhou o papel principal logo de cara, mas foi o recordista de recebimento de cartas de fãs.  Nascia ali Victor Torres, um dos maiores astros novelescos da televisão brasileira...  

Chiquinha do pó

Quarta-feira, 19 de março de 2003, 10h18...

A campainha toca insistentemente, até que, finalmente, uma senhora de aparência decrépita, porém gentil, vem abrir a porta.

_ Pois não, o que os cavalheiros desejam?

_ Bom dia.  Dona Maria Francisca dos Anjos? – quer saber um dos homens postados à porta.

_ Eu mesma.  O que os senhores desejam?

_ Somos da polícia e precisamos conversar um pouco com a senhora – disse Felício mostrando sua insígnia.

_ Da polícia?  Mas o que é que eu fiz, meu Deus?

_ Fique tranqüila, minha senhora.  Só queremos esclarecer algumas dúvidas – Felício tentou apaziguar a situação.

_ Podemos entrar? – Medeiros perguntou já dando dois passos em direção à sala de estar, fazendo com que a velha senhora se afastasse e permitisse a passagem dos homens da lei.

Já devidamente acomodados no sofá da sala, os policiais começaram um pequeno interrogatório.  Segundo as próprias palavras de Felício, “perguntas de mera rotina policial”. 

_ A senhora trabalha há quanto tempo para o senhor Rodolfo? – perguntou Medeiros.

_ Ih, seu moço, já faz um baita tempo.  Tanto é verdade que ele tinha cabado a falcudade fazia um tempinho só – respondeu a velha senhora tentando driblar as armadilhas da gramática.

_ E o que a senhora poderia nos contar a respeito do seu patrão? – continuou Medeiros.

_ Ah, o seu Rodolfo é um homi de bem.  Só precisava mais é freqüentar a igreja.  Vocês sabem que uma pessoa afastada de Deus não é coisa boa, né!?  Eu mesma não tinha uma vida muito ordeira até encontrar o Nosso Senhor Jesus Cristo.  Mas o seu Rodolfo é um homi bão.

_ E os relacionamentos do seu Rodolfo?  Ele é solteiro, deve ter uma vida pessoal bastante agitada... – Felício quis saber.

_ Ah, seu moço, eu não gosto de falar da vida particular das pessoas, inda mais da vida do seu Rodolfo.

_ Mas não teria algo que a senhora poderia nos dizer? – insistiu Felício.

_ O seu Rodolfo é muito discreto.  Nunca vi ele com namorada.  Às vezes vem um amigo ou outro dele aqui.  Inclusive tem vindo muito aqui o seu Victor Torres.  Vocês conhecem o seu Victor Torres, né!?  Pois é, ele tem vindo muito aqui visitar o seu Rodolfo.  Às vezes ele chega já quando eu tô saindo.  Até as pessoas lá donde eu moro não acreditam que o seu Victor Torres é amigo do meu patrão.  Ficam falando que eu fico inventando.  Mas eu não gosto de mentira, não.  Comigo é pão, pão, queijo, queijo.  E tem mais, nosso senhor Jesus Cristo não me deixa mentir, o seu Victor Torres é muito amigo do seu Rodolfo.  E também é muito gentil, já me trouxe até uma caixa de bombom.  Pra vocês verem como ele é. As pessoas pensam que só porque ele é artista vai ser metido.  Não, o seu Victor Torres não é assim, não.

_ Entendo...  Mas, além do Victor Torres, quem mais costuma freqüentar aqui? – Medeiros perguntou.

_ Ih, urtimamente só tem vindo o seu Victor.  Mas antes vinha um rapaz assim meio... – dona Maria Francisca desmunhecou.

_ Entendo.  E que fim levou esse tal rapaz? – Felício quis saber.

_ Ah, desde que o seu Victor Torres passou a vir aqui, ele sumiu.  Ainda bem, pois ele não era boa influência pro seu Rodolfo.  Vocês não acham?

Os dois policiais concordaram balançando a cabeça.

_ E o nome dele?  A senhora se lembra do nome desse rapaz?

_ Roberto!  Mas o seu Rodolfo só o chamava de Robertinho.  Ele vinha muito aqui, mas ainda bem que nunca mais voltou.  Acho até que o seu Rodolfo não gostava muito dele.  Os senhores sabem, né, o seu Rodolfo é um arquiteto, tem uma posição, não dá pra ficar recebendo gente desse tipo em casa.  Eu só não me meto porque o seu Rodolfo não me dá liberdade, mas se desse...  Ah, se desse um tiquinho só de liberdade eu já teria lhe aberto os olhos.  Às vezes o seu Rodolfo é meio ingênuo, né!?

_ E a senhora não sabe como podemos encontrar esse Robertinho? – Felício perguntou.

_ O senhor sabe que um dia desse eu esbarrei com esse moço ali perto da minha casa?  Pois é, eu tava indo pra casa.  Mas foi quando mesmo, meu Deus?...  Ah, já sei!  Foi na quarta-feira passada.  Eu tinha cabado de fazer a faxina aqui na casa do seu Rodolfo.  Então, eu peguei o 474.  Às vezes eu pego o 404 também.  Ah, qualquer ônibus que passa em Ipanema.  É que moro ali no Pavão-Pavãozinho pelo lado da Barão da Torre, não sei se vocês conhecem.

_ Conhecemos – Medeiros respondeu também pelo colega.

_ Pois é, desci ali na praça General Osório e fui andando.  Gosto de descer ali na praça, pois tenho alguns amigos que ganham a vida ali.  Tenho muitos amigos, a maioria é da igreja.  Antes eu não tinha quase amigos, antes de entrar pra igreja.  Mas agora tenho muitos amigos, gente que não passava nem perto de mim quando eu estava no caminho errado.  Vocês sabem, né, a gente às vezes demora a encontrar o caminho certo, o caminho do Senhor.  Mas graças ao Nosso Senhor Jesus Cristo que está no céu, tudo na minha vida mudou depois que entrei pra igreja.  Mas o que eu tava falando mesmo?

_ A senhora estava falando que encontrou o tal Robertinho – disse Felício.

_ Ah, claro, vocês me desculpem.  Mas é que me empolgo quando começo a falar do Nosso Senhor Jesus Cristo.  Mas como alguém não pode ficar empolgado quando fala no nome do filho do Nosso Senhor, né?  Pois é, eu encontrei esse moço ali na Farme de Amoedo, onde tem aqueles bares.  Vocês conhecem aqueles bares que vivem cheios de jovens bebendo?  Pois é, ali é uma perdição só.  Tantos jovens se perdendo com coisas do Demônio.  É isso sim, coisas do Demo!  Que Deus me perdoe, mas aquilo não é coisa do Nosso Senhor!  E eu sei, posso falar de cadeira, pois já estive no caminho errado.

_ Muito obrigado pelas informações, minha senhora.  A gente já vai indo – Felício se levantou e estendeu a mão para dona Francisca, pois não estava mais aguentando o papo da carocha.

_ Mas os senhores já vão?  Puxa, o papo estava tão bom!

_ Precisamos ir.  Os cidadãos de bem precisam da nossa presença nas ruas – Felício quis impressionar dona Maria Francisca com uma frase de efeito.

_ E eu não sei disso, meu filho?  Pois sei muito bem!  Já estive no caminho do mal por uns tempos.

_ Desculpe, minha senhora, mas creio que se todo o mal fosse como os que a senhora tenha cometido na vida, a paz reinaria no mundo – Felício disse.

_ Engano do senhor.

_ Tá bem, o que a senhora poderia ter feito que pudesse desagradar Deus? – finalmente quis saber Felício.

_ Meu filho, já fui presa por assassinato e tráfico de drogas.  Cocaína!  Pois é, cocaína!  Mas isso já foi há muito tempo.  Já paguei pelos meus crimes.  Vinte anos!  Pois foi esse tempo que fiquei presa.  Vinte anos!  Mas hoje agradeço ao Nosso Senhor Jesus Cristo por ter me mostrado o caminho da verdade enquanto ainda era tempo.  Eu era conhecida como Chiquinha do Pó.  Mas tudo isso acabou!  Glória, glória ao Senhor!

Felício e Medeiros estavam boquiabertos, tomados pela revelação daquela senhora de aparência inofensiva.  Jamais poderiam imaginar, nem nos seus pensamentos mais desvairados, que tal passado pertencia a Maria Francisca dos Anjos.

Terceira necropsia

Segunda-feira, 24 de março de 2003, 15h37...

A necropsia do corpo de Sandoval da Cunha Pereira foi praticamente idêntica à de Almir.  O legista Antônio Manoel discorreu sobre a causa mortis de forma sucinta, sem acrescentar novidades sobre o caso.  Apenas notou que essa terceira vítima do Degolador sofreu alguns hematomas nas faces, todas em virtude de bofetadas. 

_ As vítimas desse assassino parecem gostar de apanhar – disse o legista.

_ Esse maníaco degolador escolhe as suas vítimas buscando as pessoas masoquistas? – quis saber Medeiros.

_ Provavelmente.


Depoimento de Victor Torres

Sexta-feira, 28 de março de 2003, 16h55...

Como Rodolfo havia falado, Victor Torres, o grande astro das telenovelas brasileiras, apareceu na delegacia de supetão, sem avisar que ia.  Simplesmente deu na telha e entrou na 12ª DP procurando o delegado Alexandrino.

_ Então, Dr. Alexandrino, que história é essa de acusar o meu amigo Rodolfo de ser o tal Degolador?

_ Ninguém está acusando o seu amigo, senhor Victor.  Estamos investigando o caso, e uma das vítimas do degolador havia recebido uma ligação do telefone da casa do senhor Rodolfo.

_ Não poderia estar havendo um engano de informações?

_ Infelizmente, não, senhor Victor.  A ligação foi mesmo feita do telefone da casa do seu amigo.  Agora precisamos descobrir quem ligou para uma das vítimas do Degolador.

_ E quem poderia ser?  O Rodolfo não é um psicopata assassino!  E pelo que li nos jornais, a senhora que trabalha na casa dele também não teria o perfil desse tal Degolador.

_ Então, as suspeitas recaem sobre o senhor Rodolfo.  Ele é o nosso principal suspeito.

_ Absurdo, Dr. Alexandrino! Eu estava com o Rodolfo no momento que esse Degolador atacou uma das vítimas. Como ele poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo?

_ Talvez ele tenha um cúmplice, senhor Victor.

_ O que o senhor está querendo insinuar? Que eu também esteja envolvido nesses assassinatos?

_ É o senhor que está dizendo isso.

_ Dr. Alexandrino, o senhor só pode estar de brincadeira!

_ A polícia não costuma brincar, senhor Victor, especialmente nesses casos. Estamos trabalhando duro pra tentar desvendar esses crimes.  Até agora temos poucas evidências, e temos que trabalhar com o que temos.  E o seu amigo é um ponto de partida bem plausível, já que alguém fez uma ligação para o celular de uma das vítimas desse assassino.  E essa ligação partiu do telefone do seu amigo. Agora, se o senhor Rodolfo está ou não envolvido...  Bem, isso não cabe a você decidir, mas a nós da polícia. 

_ Não estou tentando me meter no trabalho da polícia...

_ Então, não se meta!  O senhor pode sair machucado...  Se preocupe com suas novelas, que é o melhor que você faz, senhor Victor Torres.  Caso haja necessidade, o chamaremos.

Isso foi o bastante para o grande astro das novelas perceber que estava pisando em terreno perigoso.  Victor Torres não tinha mais coisa alguma a fazer ali.

Raquel ataca em Ipanema

Sábado, 10 de maio de 2003, 23h38...

            Rua Barão da Torre 247, esquina com a rua Vinícius de Moraes, antiga Montenegro.  A bela loira toca o interfone, sendo logo atendida por uma voz rouca.

            _ Quem é?

            _ Raquel.

            O dono da voz rouca aperta o dispositivo para abrir a porta.

            _ Abriu?

            _ Abriu!

            Raquel entra no edifício de poucos apartamentos, dois por cada um dos cinco andares.  Antes de se dirigir ao elevador, ela se esbalda com sua imagem refletida no grande espelho no hall da portaria.  Como está linda!

            Depois de gastar alguns segundos admirando a própria imagem, Raquel aperta o botão de chamada do elevador social.  Ele não demora a chegar.  Há outro espelho no elevador, o que prende um pouco mais sua atenção pela própria imagem refletida.  Por incrível que possa parecer, ela está ainda mais linda do que há poucos instantes, quando se admirou no espelho do hall.  Finalmente aperta o botão do quarto andar, onde o seu cliente de voz rouca a está esperando já com a porta do apartamento 401 entreaberta. 

            _ Raquel?

            A dama da noite confirma com um leve balançar de cabeça e um sorriso meio safado.  Não!  Um sorriso completamente despudorado!

            _ Pedro?

            _ Eu mesmo.  Puxa, você é ainda mais linda do que imaginei! – o novo cliente de Raquel parece precisar de um babador, tamanha a sua admiração pela figura deslumbrante que tem diante de sua porta.

            O acerto financeiro é concretizado assim que Raquel coloca os pés no apartamento luxuoso.  Só a sala é, muito provavelmente, maior do que o quarto e sala que a dama da noite aluga em Copacabana.

O homem continua embasbacado com a beleza estonteante da dama da noite, sem nem mesmo imaginar que sua vida, a partir de agora, corre sério risco.  Raquel, por sua vez, acompanha cada passo, cada olhar de sua presa.  Ela sorri antevendo o enlace dessa história.  Mas ela quer curtir a noite, quer viver intensamente cada instante dessa macabra luxúria.

            Pedro apaga quase todas as luzes do apartamento, deixa apenas a do corredor acesa, o que causa uma penumbra que, em outras ocasiões, se poderia afirmar ser sensual.  Raquel gosta de tal situação, seus olhos de gata logo se acostumam com a pouca luminosidade.  Pedro coloca um disco, um long play, não um CD, de música clássica.  A primeira música é Assim falava Zaratustra, de Strauss.  O cliente de Raquel parece se transformar ao som de cada nota.  Seu porte másculo, atlético até, começa a ganhar nuances femininas, delicadas.  A voz rouca dá lugar a uma voz delicada, meio gay.  Quase um metro e noventa de altura e 100 quilos de virilidade se transformam em Soninha, a dançarina de cabaré.  Nada de cabaré parisiense, mas da Lapa, bairro da boêmia carioca.       

            _ Estou dançando bem, minha querida?

            _ ... – Raquel nada diz, apenas observa a cena esdrúxula.

            _ Como estou dançando? – o cliente insiste na pergunta, enquanto começa a tirar a roupa (camiseta amarela e bermuda vermelha de malha).

            _ ... – Raquel, calada, continua fitando a “dançarina” em ação.

            Pedro está com a camiseta na mão direita erguida sobre a cabeça.  Ele rodopia a mão e a atira a suada peça de roupa na direção de Raquel, que continua imóvel, apenas com um sorriso no rosto, belo por sinal.

            _ Está gostando, minha linda? – Pedro ainda quer saber se sua performance está agradando.

            _ ... – Raquel nada responde.

            O cliente se vira e, rebolando, abaixa a bermuda vermelha de malha.  Raquel logo percebe que é a última peça de roupa da “dançarina”, que se esqueceu de colocar a calcinha.  Talvez tenha sido proposital.  Quem vai saber?  Quem quer se prender a tais detalhes, ainda mais num momento tão crucial?

            Pedro continua sua dança do acasalamento, ele quer impressionar a sua doce e meiga amante. Meiga?  Não, jamais poderíamos afirmar tal coisa!  Injúria, diriam alguns!  Doce? Talvez...  Mas de tão doce chega a ser amarga!

            O pênis e os testículos de Pedro chacoalham conforme seus passos, que já são descompassos, teimam em não seguir a melodia da música, uma das Bachianas brasileiras, de Heitor Villa-Lobos.  Viva os descompassos!  Viva a descompostura!

            Raquel, finalmente, se faz presente.  Ela ostenta em sua mão o seu enorme brinquedinho, nada menos do que 22 centímetros de comprimento, sem contar o respeitável diâmetro.  Pedro, vendo o instrumento de prazer nas pequenas e delicadas mãos da dama da noite, se vira de costas, coloca as mãos nos joelhos, que se curvam para exibir melhor a sua bunda disforme e cabeluda.  Ele parece entrar em êxtase.  Um frenesi invade o corpo de Raquel.

            _ Venha, cá! – Raquel ordena, no que é prontamente atendida.

            Diante de si, Raquel observa o corpo suado, nu do cliente.  Suas narinas absorvem o odor da transpiração.  Ela toca o saco do homem, aperta um dos testículos.  Um pequeno gemido escapa dos lábios de Pedro, Raquel aperta-lhe ainda mais na delicada região.  Uma lágrima escorre pelo rosto do homem.  Pobre Pedro...  E ele sorri.  E ela gargalha!

            _ Endurece essa pica! – ordena Raquel.

            Nada!  Nenhuma reação do membro, outrora viril, do homem, outrora também viril.  Raquel fica furiosa, pega o pênis do cliente e o leva aos lábios.  Nada consegue fazer o falo de Pedro se levantar, ficar em riste.  Nem mesmo as mais variadas técnicas de felação praticada por Raquel conseguem devolver a vida ao outrora órgão reprodutivo.  Inútil!  Agora se trata apenas de um instrumento única e exclusivamente para micção.

            _ De quatro, cachorro!!! – Raquel grita com Pedro, que obedece.

            A dama da noite observa aquele homem prestes a ser possuído.  Ela lambe-lhe o rabo, Pedro expõe ainda mais seu ânus, que pisca de prazer.  Raquel encosta a glande de seu enorme brinquedinho no cu de Pedro, que se prepara para receber cada um dos 22 centímetros.  A penetração não demora a acontecer, dolorosa, prazerosa.  O pênis de Pedro responde prontamente à invasão e, em poucos instantes, derrama sobre o chão da sala uma quantidade inacreditável de leite da vida.  Essa é a hora de Raquel agir, ela saca de sua bolsa a faca tipo magarefe e desfere o golpe fatal no amante da vez, que ainda tem tempo de se virar e tomar-lhe a arma branca.  Nessa luta, Raquel acaba sendo ferida na mão esquerda, a mão assassina.  Logo em seguida, o corpo de Pedro tomba de lado sobre o chão de cerâmica com desenhos geométricos.  

O álibi

Domingo, 11 de maio de 2003, 10h...

            O delegado Marcos Alexandrino estava exasperado com os crimes do Degolador, ainda sem solução.  Chamou os inspetores Medeiros e Felício, que logo se apresentaram em sua sala.

            _ Minha paciência já chegou ao limite! – Alexandrino quase gritou.

            Os inspetores simplesmente abaixaram a cabeça, não sabiam o que dizer, mesmo porque não tinham uma boa pista ou, ao menos, qualquer idéia sobre por onde começar.  Claro, havia a ligação feita do telefone da casa do arquiteto Rodolfo Simplício Marques para o celular da segunda vítima do Degolador, José Almir de Medeiros, mas essa investigação estava um pouco travada.  Eles teriam que dar um “aperto” no arquiteto, que tinha de explicar o tal telefonema.

            _ O que nós já temos sobre esse caso desse maldito Degolador? – o delegado continuou no mesmo tom de voz.

            _ Bem...  Estamos investigando o arquiteto Rodolfo Marques – disse Medeiros.

            _ Tá, mas e daí?  O que temos de prova contra esse cara?  Será que ele é mesmo o nosso homem? – Alexandrino sabia que o arquiteto não era o Degolador, mas provavelmente estava ligado ao caso de alguma forma.

            _ Pode ser que sim... – falou Medeiros.

            _ Pode ser que não... – completou Felício.

            _ Essa é boa!  Puta que pariu!  O que vocês são?  Uma versão de Os Três Patetas reduzida a dois?  Vocês devem estar de brincadeira comigo!

            _ Chefe, esse caso tá muito complicado.  Quando a gente acha que tá chegando perto...  Puxa, de repente estamos longe – desculpou-se Felício, o que fez a ira de Alexandrino aumentar.

            _ Procurem alguma coisa, qualquer coisa!  Quero ao menos uma pista, uma boa pista sobre esse maldito assassino ainda hoje na minha mesa!  Pensem, pensem!  Vocês são pagos pra isso! -  o delegado gritou.

            Medeiros e Felício saem, literalmente, com o rabo entre as pernas, enquanto Marcos Alexandrino prepara um chá de camomila com algumas gotas de adoçante.

* * * * *

            _ Porra, o Alexandrino pegou pesado! – Medeiros desabafou.

            _ Mas eu até entendo.  Ele deve tá sendo muito pressionado pelo Bambinni – Felício defendeu o delegado.

            _ É, mas quem leva toda a culpa é a gente!

            _ Nada mais natural, meu amigo.  As coisas sempre funcionaram dessa forma.  O presidente joga a culpa no diretor, que joga a culpa no gerente, que joga a culpa no trabalhador, que desconta na mulher, que desconta na empregada, que desconta no cachorro, que desconta no gato, que desconta no rato...  O mundo é assim, simplesmente é assim – Felício quis dar uma de Sócrates ou Aristóteles.

            _ Tá bom, mas o que a gente vai fazer agora?  Precisamos tirar o nosso da reta.

            _ Andei pensando...  Vamos ter uma conversinha com esse engenheiro!

            _ Que engenheiro?

            _ Esse tal Rodolfo.

            _ Arquiteto, Felício!  O cara é arquiteto!

            _ E isso faz alguma diferença?  Por mim ele pode até ser açougueiro que não muda nada!

            _ Tá, tá, Felício, não precisa se estressar!

            _  Não tô estressado!

            _ Tudo bem, não tá mais aqui quem falou.  Então, quando vamos ter essa conversa com esse engenheiro-açougueiro? – Medeiros brincou com o colega, que não aguentou e caiu na gargalhada. Mas não era uma gargalhada como há algum tempo, mas entremeada de nervosismo, que de vez em quando nos empurra riso abaixo.

            _ Podemos dar um pulo agora mesmo lá no escritório dele – respondeu Felício, ainda com um sorriso nos lábios.

            _ Mas não é melhor telefonar antes?  Às vezes ele pode não estar.

            _ Não, prefiro chegar de supetão!  Assim, ele não vai ter tempo de inventar historinhas.  E se o cara tiver saído, a gente pega um cineminha na Cinelândia.

            _ Olha a vagabundagem, Felício!

            _ Ah, tô precisando espairecer!

* * * * *

11h40...

            Medeiros e Felício já estão nas ruas do Centro, onde fica o escritório do arquiteto Rodolfo Simplício Marques.  O calor castiga os inspetores, gotas de suor escorrem, fazendo com que os dois precisem recorrer a lenços.

            _ Puta que pariu, que calor!  Até que enfim chegamos! – Medeiros  exclamou.

            Em poucos minutos os dois inspetores da Polícia Civil tocam a campainha da sala do arquiteto Rodolfo.  E como da última vez, quem atendeu foi a ruiva que fez Medeiros ficar embasbacado.

            _ Pois não... Ah, os senhores são aqueles que vieram aqui procurando o Dr. Rodolfo há algum tempo.

            _ E podemos conversar com ele agora? – perguntou Medeiros.

            _ Olha, ele acabou de sair pra almoçar, mas deve estar de volta daqui a uma hora no máximo.  Se os senhores quiserem esperar...

            _ A gente volta mais tarde, então – disse Felício.

            _ Tudo bem.  Se o Dr. Rodolfo retornar antes, digo que os senhores estiveram aqui.

            Já dentro do elevador, Medeiros perguntou ao colega o que fariam durante a próxima hora.

            _ Vamos fazer uma boquinha também.  Afinal, também somos filhos de Deus.

            _ Taí porque gosto de você, Felício!  Você sempre diz coisas que quero ouvir – brincou Medeiros.       

            Os inspetores rumaram para uma lanchonete, onde comeram alguns pastéis com caldo de cana.  E depois de saciarem seus estômagos, rumaram de volta ao escritório do arquiteto.

            _ O Dr. Rodolfo ainda não voltou do almoço.  Os senhores não querem esperá-lo?  Ele já deve estar chegando – disse a secretária Graciele, que hoje vestia branco.

            _ É, vamos aguardá-lo – respondeu Felício, logo se acomodando no sofá de espera.

            _ Os senhores aceitam um suco, um café, uma água?

            _ Dois cafés, por favor – Felício respondeu também por Medeiros, haja vista este estar de queixo caído pela chamativa ruiva.

            Enquanto a secretária providenciava os cafés, Felício passou um pequeno sermão no parceiro.  Logo em seguida pegou uma revista no cesto ao lado.  Era uma dessas revistas de fofocas, onde aparecia na capa o galã das telenovelas Victor Torres.  Ele estava acompanhado de uma loira estonteante.  Letras garrafais diziam que o galã estava passando alguns dias em Porto Seguro ao lado de sua nova namorada.  Felício não pode deixar de pensar nas coisas que a polícia descobriu nos últimos tempos em relação às preferências sexuais do artista.  Em seguida, ele procurou a matéria sobre o galã.

            _ Merda!

            _ O que foi, Felício?

            _ Olha o nosso suspeito aqui. – Felício aponta a foto do arquiteto Rodolfo Marques acompanhado de uma morena, do galã Victor e de sua suposta nova namorada.

            _ E o que tem isso de mais?

            _ Olha a data!

            _ Tá, mas e daí?

            _ O nosso suspeito estava a passeio no dia do último crime!  O maldito tem um álibi!  Vamos embora! – Felício praguejou na mesma hora que a ruiva apareceu com a bandeja e as duas xícaras de café. Ele não sabia que Rodolfo já havia sido descartado do rol de suspeito. E mesmo se soubesse, isto não descartaria a participação dele nos crimes ou, então, uma possível ligação com o Degolador.

            _ Desculpe, minha querida, mas já estamos de saída – Felício se despediu da secretária sem nem mesmo tocar na xícara.

            _ Mas os senhores não vão esperar pelo Dr. Rodolfo?

            _ Não!  Outra hora a gente vem aqui – Felício desconversou.

            _ É, a gente já tá de saída – Medeiros falou ao mesmo tempo em que pegava uma das xícaras e sorvia o líquido preto.

            Saíram!

O telefonema

Ainda 11 de maio, 21h...

            O telefone toca!

            _ Alô?

            _ Meu amor, sou eu!

            _ Ah, oi, Tereza.  Você vem aqui hoje?

            _ Acho que não, meu bem.  Eu não estou me sentindo bem hoje.

            _ Tá menstruada?

            _ Não, não é isso.  É que ontem tive de tomar uns pontos na mão.

            _ O que houve?

            _ Ah, eu me machuquei quando tava cortando uns bifes.

            _ Puxa, você tem de ter mais cuidado com faca, meu bem – Medeiros demonstra um pouco mais de carinho pela namorada, algo pouco comum nos últimos tempos.

            _ É, eu sei, foi uma distração boba.  Mas não se preocupe, eu tô bem.

            _ Você tem certeza?  Não quer que eu vá aí buscá-la?

            _ Não precisa se preocupar, meu amor.  Eu tô bem, já falei.  Vou me deitar um pouco, amanhã a gente se fala.

            _ Tá bem, mas me liga se precisar de alguma coisa, qualquer coisa.

            _ Obrigada, meu amor.  Vou desligar agora.  Eu te amo muito!

            _ Também te amo – Medeiros, definitivamente, parece estar novamente apaixonado pela bela Tereza. Ou, então, estivesse precisando de alguém que lhe desse um pouco de colo, haja vista os últimos acontecimentos.         

 

 

Um cadáver em Ipanema

Terça-feira, 13 de maio de 2003, 09h16...

            Justamente na hora em que estava chegando à delegacia, Medeiros e Felício são informados que foi encontrado o corpo de mais uma vítima do Degolador.

            _ É melhor vocês irem correndo pra Ipanema, meus camaradas.

            _ O que houve?  Não vai me dizer que encontraram mais uma vítima do maldito Degolador?

            _ Bem, se é pra não dizer, então não digo – disse Beto, um escrivão da 12ª DP.

            _ Fala logo, homem! – Felício se irritou com a brincadeira.

            _ Calma, cara!  Tá bom, tá bom...  Encontraram um cara lá na Barão da Torre.  Parece que foi o Degolador que fez o serviço – finalmente o escrivão respondeu claramente.

            _ Qual o número?

            _ Duzentos e quarenta e sete, apartamento 401.

            _ E o Raul? – Felício perguntou.

            _ Ele tava arrumando as coisas pra ir.  Ainda deve tá lá na sala dele, não sei.

            _ E o Alexandrino já tá sabendo? – Medeiros quis saber.

            _ Ainda não chegou.

            _ Então, vamos logo, Felício!

            Os inspetores apertaram o passo até a sala do perito Raul, onde o encontraram quase que de saída.  Araújo e Lima estavam com ele.

            _ Já tão sabendo? – Raul perguntou já antevendo a resposta, haja vista as caras apreensivas que surgiram à sua porta.

            _ O Beto nos falou – respondeu Medeiros.

            _ Pois é, parece que o Degolador agiu novamente – Raul continuou.

            _ Vamos logo, cara, antes que o Alexandrino chegue.  Não tô a fim de levar outro esporro logo de manhã – Felício apressou os colegas, no que foi logo atendido, pois em poucos minutos já estavam dentro da viatura a caminho do luxuoso bairro carioca.

* * * * *

 

 

09h45...

            Enquanto Lima procurava um local para estacionar o carro, Medeiros e Felício acompanharam o perito Raul e o papiloscopista Araújo.  Havia uma pequena multidão de curiosos em frente ao edifício, além de jornalistas.  Nenhum parente, nenhum amigo da vítima, que era apontada pelos moradores como um vizinho bastante discreto.

            Já no apartamento 401, onde jazia o corpanzil de Pedro Raimundo Romão, 44 anos, solteiro, comerciante (era proprietário de uma loja de produtos esportivos, ali mesmo no bairro), os três policias tentam encontrar alguma pista que leve ao Degolador.  Raul segue sua rotina, aliás, seu trabalho realmente tem sido uma rotina, haja vista a quase uniformidade dos crimes cometidos por Raquel.  Mas, afinal, nem tudo é tão igual assim...

            _ A vítima parece que tentou se defender do Degolador.

            _ Por que você tá falando isso, Raul? – quis saber Felício.

            _ Bom, a vítima parece que foi golpeada quando estava de costas para o assassino.  Só que ela se virou, morrendo logo depois.  Só que conseguiu ferir o Degolador.

            _ Como você sabe disso? – Medeiros perguntou.

            _ Não sei se vocês notaram, mas há sangue no caminho para o banheiro e no chão até a porta.  E com certeza não é sangue da vítima.

            _ Mas a vítima não poderia ter sido atingida na porta ou no banheiro? – Felício questionou.

            _ Não, pois também há sangue no capacho.  E por que a vítima iria abrir a porta para depois retornar e morrer justamente aqui?

            _ É, você tem razão, Raul – Felício concordou, justamente na hora que Lima adentrava no apartamento.

            _ E aí, foi mesmo o Degolador? – o ajudante de Raul quis saber.

            _ Diria que temos 100% de chances – o perito confirmou.

            E depois da coleta de digitais e amostra de sangue e das anotações de praxe, Raul liberou o corpo para o pessoal da Defesa Civil.


Mais uma visita ao IML

Segunda-feira, 18 de maio de 2003, 11h43...

         Medeiros, Felício e o perito Raul estão na sala de necropsia na presença do médico legista Antonio Manoel.

            _ Pois bem, meus amigos, trata-se, sem sombra de dúvida, de mais um crime desse tal Degolador.  A vítima foi golpeada da direita para a esquerda, quando estava de costas para o assassino, logo após ter alcançado o orgasmo, já que foi encontrado esperma, que com certeza o exame de DNA irá confirmar ser da vítima.  No entanto, não foi verificado material espermático do assassino, apesar de ser evidente a sodomização da vítima, pois na região anal da mesma são evidentes as feridas provocadas por uma penetração vigorosa.  Arriscaria em afirmar que o assassino é alguém muito bem dotado, se é que vocês me entendem – concluiu o Dr. Antonio Manoel.

            _ Mais alguma coisa? – Felício perguntou.

            _ Ah, sim.  O assassino parece ter enfrentado dificuldade em sua tarefa, já que também foi encontrado sangue não pertencente à vítima, que era do tipo sanguíneo O positivo.  O tipo de sangue do assassino é B negativo, um tipo raro.  E é só!  Espero ter ajudado os senhores em alguma coisa.

            _ Obrigado, doutor, o senhor foi bastante útil – Felício quis ser gentil com o médico legista, pois não conseguia imaginar em que poderia ser útil saber o tipo sangüíneo do Degolador.


Rodina


Sexta-feira, 27 de junho de 2003, 17h27...

Medeiros e Felício foram chamados à sala do delegado Alexandrino, que estava acompanhado de um homem de pouco mais de 50 anos (apesar de aparentar bem menos), cabelos loiros e alguns míseros fios brancos, bigode basto, olhos azuis, 1,72 metro de altura, magro, rosto encovado, fumante inveterado.

_ Quero que vocês conheçam o detetive Rodina – disse Alexandrino.

Depois das formalidades, o delegado começou a descrever as qualidades de Rodina.

_ Rapazes, vocês estão diante de um dos maiores nomes da história da Polícia Civil do Rio de Janeiro.  Este homem foi o responsável pela solução de diversos casos complicados durante o período em que esteve na ativa.  Há dois anos ele se aposentou, mas continua prestando serviços à polícia.  Quero que vocês passem todas as informações do caso desse assassino de uma figa para o Rodina.  Ele agora irá ajudá-los nas investigações.

Felício e Medeiros olharam para o homem de olhos azuis, depois se entreolharam.  Nunca haviam passado por situação parecida em todos os anos que estiveram na Polícia Civil.  Não estavam gostando da situação.  Mas, como não havia outra escolha, tiveram de engolir cada palavra da ordem do delegado Alexandrino. Apenas rezaram para que a digestão não fosse tão ruim... e fosse breve!

* * * * *

Meia hora mais tarde no bar da esquina...

_ Pois é, meus amigos, logo percebi que vocês não aceitaram muito bem a minha participação nesse caso.  Eu mesmo não gostaria de ver algum abelhudo fuçando as minhas coisas.  Mas, talvez, digo talvez, eu possa ajudá-los a desvendar esses crimes.  Não fui melhor policial que vocês, apenas creio que tenho um pouco mais de experiência, mesmo porque tenho idade para ser pai dos dois.

_ Que é isso, seu Rodina! O senhor não deve ter mais que dois ou três anos a mais que eu.

_ Em primeiro lugar, Medeiros, meu nome é Rodina.  Não me lembro da minha mãe ter colocado meu nome de Senhor Rodina, mas Edson Rodina.  Então, vamos deixar o Senhor lá no céu.  Em segundo lugar, já passei de meio século de vida... E você, com certeza, ainda está bem longe de completar 40.

_ Quarenta e quatro – disse um sorridente Medeiros.

_ Não diga! E você Felício?  Não vai me dizer que também já chegou à boa idade?

_ Também, Rodina.  Em agosto completo 43 – Felício também sorri.

Pronto!  Rodina soube perfeitamente quebrar o gelo que o separava dos inspetores.  Agora era questão de tempo para se tornarem verdadeiros parceiros.  Logo percebeu que o vício pelo fumo o ligava a Medeiros.  E a bebida o unia aos dois.

Beberam, conversaram sobre mulheres, futebol.  Levantaram verdadeiras teses sobre relacionamentos amorosos, montaram seleções imbatíveis com jogadores de diferentes épocas...  Tudo o que os homens gostam!  Rodina, mulherengo de marca maior, botafoguense inveterado, falou, falou, falou...  Mas soube ouvir, afinal, tinha de ganhar a confiança dos seus “pupilos”.  Precisavam formar uma equipe.  E o homem dos olhos azuis conseguiu!


Juntando os cacos

Sábado, 12 de julho de 2003, 15h25...

            Medeiros, Felício e o perito Raul estão com o detetive Rodina, que tem em suas mãos a pasta contendo todos os percalços dos crimes cometidos pelo Degolador.  Lima, o auxiliar de Raul, também está com eles.

            _ Hum, interessante!

            _ O que é interessante, Rodina? – quis saber Felício.

            _ Bem, ao que tudo indica, nosso degolador só ataca aos sábados.  Mas por quê?  Ritual?  Talvez...  Mas não creio que seja isso.  Não estou descartando essa hipótese, apenas acho que seja outra coisa.  Talvez o nosso degolador possua um outro ofício.

            _ Ofício?  Mas que outro ofício, Rodina? – desta vez foi Medeiros que interrogou o homem dos olhos celestes.

            _ Não sei.  Mas é algo que lhe ocupe os dias da semana.  Qualquer emprego.  Talvez ele seja até mesmo um profissional liberal.  De qualquer forma, o nosso assassino parece mesmo ter algo que lhe ocupe o tempo nos dias de semana. 

            _ E o que mais você percebeu nos relatórios, Rodina? – era a vez de Raul lhe fazer uma pergunta.

            _ Olha, segundo os laudos das necropsias, apenas a primeira vítima foi golpeada de frente.  As outras foram assassinadas pelas costas...  logo após terem sido sodomizadas.

            _ E daí?

            _ Ora, Medeiros, por que isso teria acontecido?  Talvez o nosso assassino tenha hesitado no primeiro crime, dando a chance da vítima de se defender, daí tê-la golpeado pela frente.  Ou, quem sabe?

            _ O quê, homem? – perguntou um excitado Felício.

            _ ... Talvez o nosso degolador nem tenha tido a intenção de matar.  Talvez tenha sido a oportunidade, a ocasião ou, até mesmo, a necessidade.

            _ Como assim?

            _ Olha, Raul, a primeira vítima possuía um hematoma na cabeça que, segundo a própria perícia, fora provocado por um vidro de loção.  Então, a possibilidade do nosso degolador ter sido atacado pela sua primeira vítima...  Sinceramente, penso ser uma possibilidade bem plausível.

            _ É uma possibilidade – concordou Raul.

            _ Tá, digamos que essa sua teoria seja verdadeira.  Por que, então, ele continuou matando?

            _ Talvez tenha pegado gosto pela coisa, meu caro Medeiros.

            _ Rodina, segundo os laudos do IML, todas as vítimas sofreram penetração anal, o que demonstra que eram masoquistas.  Então, o Degolador escolhe suas vítimas procurando as mais submissas? – perguntou Felício.

            _ Não creio que seja o Degolador que escolhe as suas vítimas, mas justamente o contrário.

            _ Como assim? – quis saber o parceiro de Medeiros.

            _ Pra mim, esse Degolador coloca um anúncio em classificados de jornais, revistas ou na internet.  São anúncios bem específicos, onde o Degolador oferece serviços de sodomia. Então, as futuras vítimas entram em contato.

            _ Tá bom, então temos um travesti que coloca anúncios em algum lugar e depois mata as sua vítimas, mas somente aos sábados, pois tem outra ocupação durante a semana.

            _ Não sei se concordo plenamente com você, Medeiros.

            _ Como assim?  Tem alguma coisa que deixei passar?

            _ Talvez... – Rodina faz certo ar de mistério.

            _ O que você está matutando aí nessa sua cabeça, Rodina? – Raul quis saber. 

            _ Meus amigos, de onde saiu essa idéia de que o degolador é um travesti?

            _ É lógico que só pode ser um travesti.  Todas as vítimas foram enrabadas, segundo o Dr. Antônio Manoel do IML – disse Felício.

            _ E eu não discordo quanto a isso.

            _ Então, o que você acha que sej... Não!? Uma mulher?

            _ Exatamente, Felício!  Uma mulher que atende seus clientes com um pênis artificial.  Daí não haver indício de esperma na região anal das vítimas.  E também não havia material que indicasse o uso de preservativo.  Então, penso que a opção mais lógica é que o nosso degolador é, na verdade, uma mulher!

            _ Nossa investigação ficou muito pior agora – lamentou Medeiros.

            _ Por que você tá falando isso? – quis saber Felício.

            _ Porra, existem muito mais putas do que travestis nas ruas.

            _ É verdade, Medeiros, mas agora estamos no caminho certo.  E, se não estou enganado, creio que estamos bem mais perto de descobrir quem é a nossa assassina do que podemos imaginar.

            _ Do que você tá falando, Rodina? – Medeiros perguntou.

            _ Olha, pelo que li no relatório sobre esse caso, sei que um dos telefonemas recebidos por uma das vítimas partiu da casa de um dos suspeitos, esse tal Rodolfo Marques. 

            _ Então, você acha que ele é o assassino? – perguntou Lima.

            _ Não, meu jovem, mesmo porque, como já falei, o nosso degolador é uma mulher.  Mas a chave de todo esse mistério está justamente no edifício desse tal Rodolfo.

            _ Então, a assassina é a mulher que trabalha na casa dele? – o auxiliar de Raul fez nova pergunta.

            _ Desculpe informá-lo novamente que você está enganado, meu jovem.  Segundo o próprio relatório, tal senhora não tem o perfil de uma mulher que pare o trânsito.  Não, definitivamente não é essa senhora a nossa degoladora.  Se bem que não descarto a possibilidade de, talvez, ela ser cúmplice da assassina.

            _ Deixe de mistério, homem!  Quem, então, é a degoladora? – perguntou um esbaforido Felício.

            _ Ainda não sei, meu amigo.  Ainda não sei...

            _ Então, como pode ter certeza de que a chave desses crimes está justamente no edifício desse Rodolfo? – perguntou Raul.

            _ Felício, preciso que você e o Medeiros me acompanhem até o prédio onde mora esse Rodolfo.  E se pudermos ir agora mesmo, melhor!

            _ O que você tá matutando aí nessa sua cabecinha, Rodina?

            _ No caminho eu explico, Felício.

            _ E a gente, o que a gente faz enquanto isso? – quis saber Raul.

            _ Bem, se você quiser nos acompanhar...

            _ Claro que quero, Rodina! – disse Raul quase pulando da cadeira.  E, virando-se para o seu auxiliar: _ Lima, fique aqui pra qualquer emergência!

            _ Tá bom, chefe – respondeu um contrariado Lima, que queria tomar parte dessa diligência, ainda mais agora que a investigações pareciam caminhar para uma solução.

* * * * *

            Em pouco mais de meia-hora, Rodina e os três policiais chegavam ao edifício do arquiteto Rodolfo Marques.  Medeiros apresentou sua insígnia ao porteiro, um homem de aproximadamente 30 anos.

            _ Por favor, poderíamos falar com o síndico? – perguntou Rodina.

            _ É síndica.  O que os senhores desejam com ela?

            _ Assunto confidencial, meu jovem – respondeu Rodina.

            O porteiro, Jorge, interfonou para o apartamento da síndica e avisou-lhe que havia alguns homens da polícia querendo falar com ela.  A síndica, sra. Magdalena, não obtendo resposta sobre o que os policias queriam, disse ao porteiro que já ia descer.  E foi o que fez, não demorando mais que alguns minutos.

            _ Pois não, o que os senhores desejam comigo?

            _ Bem, minha senhora, qual é a sua graça, por favor? – perguntou Rodina.

            _ Magdalena.

            _ Pois bem, sra. Magdalena, meu nome é Rodina e esses são os policiais Medeiros, Felício e Raul.  Estamos aqui apenas para conversar.  Quem sabe a sra. não nos ajuda a esclarecer alguns fatos?

            _ Não sei como poderei ajudar os senhores, mas, de qualquer forma, queiram, por favor, me acompanhar.

            A síndica se dirige à sala de reunião dos condôminos, tendo os quatro homens em seu encalço.

            Já devidamente acomodados...

            _ Sra. Magdalena, já percebi que o edifício é todo monitorado por câmeras.  Então, se possível, gostaríamos de ter acesso à fita do dia 08 de fevereiro – começou Rodina.

            _ Oito de fevereiro?  Mas o que vocês estão procurando?  Algum crime foi cometido aqui?

            _ Não, mas, ao que tudo indica, a pessoa que estamos procurando esteve neste edifício pouco antes de ir para o local do assassinato – respondeu o homem dos olhos azuis.

            _ Do que o senhor está falando?  Que crime foi cometido?  Algum morador está envolvido?

            _ Talvez... Somente com a fita poderemos ter acesso à verdade, minha senhora – esclareceu Rodina.

            _ Bem, não sei se ainda temos a fita, pois costumamos apagar todas as com mais de três meses.  Talvez ainda tenha, não sei, terei de verificar.

            _ Então, por favor, verifique.  É muito importante para desvendarmos esse crime.  Pode ser agora? – quis saber Rodina.

            _ Claro, vou ver agora mesmo.  Os senhores aceitam um café, uma água?

            _ Café – Rodina respondeu por todos.

            Assim que a senhora saiu, Raul se virou para o homem dos olhos azuis e perguntou:

            _ Rodina, e se a fita já tiver sido apagada?

            _ Vamos pensar positivamente, meu caro.  Mas se isso tiver mesmo acontecido, ainda tenho uma carta na manga.

            _ E que carta é essa? – quis saber o perito.

            _ Poderemos tomar o depoimento do porteiro que estava de plantão nesse dia.

            _ É, você é um cara esperto, Rodina! – exclamou Felício.

            _ Não, apenas alguns anos na polícia me fizeram um pouco calejado, meu jovem.

* * * * *

Meia hora após...

            _ Os senhores estão com sorte.  Temos até as fitas de novembro de 2002.  Aqui estão as fitas que estão procurando.

            _ Excelente, sra. Magdalena!  A senhora, muito provavelmente, está colaborando com a polícia para desvendar um dos maiores mistérios dos últimos anos! – falou um exaltado Rodina.

            _ Mas que mistério é esse, senhor...? – a síndica se dirigiu ao homem dos olhos azuis.

            _ Rodina! – o próprio lembrou seu nome.

            _ Sim, senhor Rodina.  Afinal, que mistério é esse?

            _ Infelizmente, minha senhora, não posso lhe confidenciar o que estamos procurando nessa fita.  Apenas posso lhe adiantar que a polícia lhe é muito grata.  E, se não for inconveniente, gostaríamos de ficar com esta fita. 

            _ Bem, essa fita já deveria ter sido reutilizada há algum tempo...  Claro, o senhor pode ficar com ela.

            _ Muitíssimo obrigado, senhora Magdalena.  Não queremos lhe tomar mais o seu precioso tempo.  Então, estamos de saída.

Afinal, quem é essa mulher?

Ainda 12 de julho, 19h46...

            Rodina, Medeiros, Raul, Felício e Lima assistem à fita de vídeo na delegacia.  Muitas imagens de gente subindo e descendo os elevadores, carros entrando e saindo da garagem, mas nada que pudesse despertar alguma suspeita até então.

            _ Adianta mais a fita, Lima – pede Felício.

            _ Alguém quer café? – Medeiros oferece ao companheiros enquanto acende mais um dos inúmeros cigarros que fumou durante o dia.

            Todos aceitam.  O homem dos olhos azuis aproveita e também acende mais um “mata-rato”.  As fumaças dos cigarros de Medeiros e Rodina se espalham por toda a saleta.

            _ Cara, esse é o pior filme que vi nos últimos dez anos.  E olha que consegui ver metade de Apolo 13! – Raul brinca com os companheiros e consegue arrancar algumas gargalhadas.

            _ Adianta mais um pouco aí, Lima – pede novamente Felício.

            De repente...

            _ Para aí, para aí, Lima! – exclama Rodina

Lima dá o comando de stop no controle.  Depois aciona o play.

            _ O que foi, Rodina? – quis saber Raul.

            _ Um minutinho... Volta um pouco, Lima.  Um pouco mais.  Aí, para aí!  Essa mulher!  Podemos estar diante a nossa assassina!

            Medeiros, Felício, Raul e Lima observam a imagem da bela mulher na tela.  Ela está entrando no prédio, depois vai em direção ao elevador, para, aciona o botão de chamada, espera por alguns instantes, abre a porta, entra, aperta um dos botões no painel dos andares, se olha no espelho do elevador, que para em determinado andar, ela abre a porta e sai.  O horário da gravação é 12h01.  Pouco mais de 20 minutos, lá estava a mesma mulher descendo de elevador.  Não dava para ver qual era o andar que ela tinha estado, mas isso poderia ser checado com o porteiro.

            _ Caraca, que gata! – exclama um Lima quase babando.

            _ Ei, eu conheço essa mulher! – Medeiros pula da cadeira, quase deixando o cigarro cair dos seus dedos.

            _ De onde? – quis saber Rodina.

            _ Cara, taí, não tô lembrando, mas esse rosto não é estranho!  Não sei se é o cabelo que tá diferente...

            _ Ei, eu também tô reconhecendo essa mulher! – disse Felício.

            _ De onde, Felício? – Rodina voltou a fazer a mesma pergunta.

            _ Puxa, cara, não tô lembrando.  Mas já vi esse rosto em algum lugar.

            _ Bem, uma coisa é certa: vocês dois a conhecem de algum lugar.  E é de algum lugar em que vocês dois estiveram, muito provavelmente durante as investigações – disse o homem dos olhos azuis.

            _ Cara, sei que conheço essa mulher!  Só que ela tá diferente, tem alguma coisa nela que tá mudado – Medeiros continuava não sabendo de onde conhecia a tal mulher.

            _ Pelo relatório vi que você e o Felício estiveram no apartamento do arquiteto Rodolfo Marques.  Essa moça, por acaso, não seria apenas uma moradora do prédio? – Rodina perguntou.

            _ Não, não é de lá que a conheço.  É de outro lugar! – Medeiros respondeu, enquanto Felício concordava com o parceiro apenas com um aceno de cabeça.

            _ Será que não foi em algum ponto de prostitutas? – sugeriu Rodina.

            _ Não sei, Rodina, não sei.  O que você acha, parceiro? – Medeiros se dirigiu a Felício.

            _ Pode ser... Pode ser...

            _ Bom, seja como for, vocês conhecem essa mulher de algum lugar.  Mais cedo ou mais tarde vocês vão se lembrar.  Talvez quando vocês forem para casa, tomarem um bom banho e relaxarem.  Mas creio que podemos estar diante da nossa assassina.  Amanhã continuamos, rapazes – concluiu Rodina.   

 


O canto do cisne 

21h15...

            Medeiros e Felício saíram da delegacia logo após assistirem à fita de vídeo.  Continuavam intrigados.  Afinal, de onde conheciam a tal mulher?

            _ E aí, que tal tomar um ou dois chopes? – sugeriu Felício.

            _ Não tô muito a fim, não, cara.

            _ Que é isso, meu irmão?  Tá ficando velho?  Recusando uma rodada de chope com o seu parceiro?

            _ Não é isso, cara.  A Tereza ficou de passar lá em casa hoje...

            _ Ah, voltaram às boas?  Vai acabar casando com aquela gatinha!

            _ Talvez fosse até uma boa, Felício.  Já tá mais que na hora de botar uns moleques no mundo.

            _ Ih, tá pensando em virar papai?

            _ É, chega uma hora na vida de um homem que a gente começa a pensar nisso.  E você, nunca pensou em ter filhos?

            _ Ah, já tive vontade, mas é aquela coisa: vontade é coisa que dá e passa!  E, então, vai ou não vai me dar a honra de tomar um chopinho com o futuro papai Medeiros? – disse Felício, arrancando uma risada amarelada de Medeiros.

            _ Tá bom, cara!  Você venceu!  Mas é só um chopinho!

            _ Eu prometo!  Palavra de escoteiro – disse Felício cruzando os dois indicativos e os levando aos lábios para beijá-los.

                                                    * * * * *

No botequim...

            _ Medeiros, de onde conhecemos aquela mulher?

            _ Também tô encucado com essa história.  Já tentei me lembrar, mas não consigo.  Talvez, como disse o Rodina, a gente precisa relaxar um pouco pra se lembrar.

            _ É, quem sabe se depois de alguns chopes a gente não acaba lembrando?

            Os dois policiais trataram logo de providenciar algumas tulipas do tal líquido relaxante.  E, óbvio, com a tradicional porção de batatas fritas.

 

* * * * *

            Quase três horas após e vários mililitros de chope tendo sido transformados em urina, Medeiros e Felício saem cambaleantes pela calçada da rua Barata Ribeiro.  Seguem em direção ao apartamento de Medeiros, que prometeu abrir uma garrafa de whisky 12 anos.

            Os inspetores da Polícia Civil do Rio de Janeiro estão a menos de um quarteirão do apartamento de Medeiros.  O movimento das ruas é intenso, apesar da hora um pouco adiantada, já passa das 23 horas.  É Copacabana!

            _ E aí, Medeiros? – os garotos na frente do prédio cumprimentam o policial.

            _ Beleza, galera! – responde Medeiros, tentando disfarçar os goles a mais que acabou de tomar.

            O porteiro, Francisco, também cumprimenta Medeiros e acena para Felício.

            _ Boa noite, seu Medeiros.

            _ Boa noite, Francisco.

            _ Olha, o senhor tem visita – avisa o porteiro.

            Medeiros apenas balança a cabeça, afinal, ele sabe que Tereza viria passar a noite.  O policial vira-se e vai de encontro ao elevador, tendo Felício a sua frente, que toca o botão de chamada.

            _ Será que ela preparou alguma surpresa? – pergunta Medeiros.

            _ Talvez ela tenha feito galinha ao molho pardo – arrisca Felício.

            _ Duvido.  Ela detesta sangue.

            _ E esse whisky é bom mesmo ou é do Paraguai?

            _ Você acha que o seu camarada aqui iria chamá-lo pra beber whisky falsificado?

            _ Imagina!  Desde quando o inspetor Medeiros coloca os amigos em fria? – brinca Felício, conseguindo tirar uma pequena gargalhada do amigo.

            O elevador...  Medeiros abre a porta, Felício entra primeiro e aperta o botão número oito.  As brincadeiras dão trégua por alguns instantes, o silêncio impera por um pequeno momento, apenas o som da correntes suspendendo o elevador, que finalmente pára.  Medeiros abre a porta e Felício ruma em direção do apartamento 804, o de Medeiros.

            _ Vou te provar que o seu amigo aqui não é nó-cego.  Você vai provar o melhor whisky da sua vida – Medeiros fala enquanto abre a porta para Felício entrar primeiro.

            Felício entra no apartamento, sendo seguido pelo colega de profissão.

            _ Amor!? – Medeiros chama por Tereza, mas nenhuma voz responde.  O inspetor volta a chamá-la e, novamente, apenas o silêncio como resposta.

            _ Ela deve ter saído, meu irmão – arrisca Felício.

            _ É... – Medeiros concorda, enquanto se dirige ao quarto.

            Um grito rompe o silêncio de outrora.  Felício corre em socorro do amigo. Medeiros está de joelhos ao lado do corpo de Tereza, deitado, esparramado, inerte no velho e gasto chão de taco.  Uma enorme poça de sangue enfeita o chão, também há respingos na parede encardida, mas que um dia foi alva.  E antes mesmo de que qualquer outro som fosse pronunciado, uma mão toca o ombro direito de Felício, que se vira para receber o golpe fatal, o mesmo golpe que há poucas horas foi desferido de forma certeira no lindo e frágil pescoço da doce Tereza.  O parceiro de Medeiros leva a mão à garganta na inútil tentativa de estancar o sangue, que esvai-se de forma fantástica e, pasmem, fantasmagórica.

            Medeiros, vendo o colega de profissão tombar ao lado do corpo de Tereza, encara o rosto de Raquel e, de súbito, a reconhece, apesar da peruca loira.  Raquel é Graciele, a ruiva secretária do arquiteto Rodolfo Marques.  Ela tenta golpear Medeiros, que se defende com o braço, recebendo um profundo corte.  Raquel, ou Graciele, não desiste e faz nova investida contra o inspetor, que rola sobre a cama e cai do outro lado.  Ele saca a pistola do coldre e desfere todos os tiros em Raquel, que vai se afastando, afastando até bater na janela, quebra o vidro e despenca de mais de dez metros de altura, indo enfeitar a calçada da esquina da rua Figueiredo Magalhães com a rua Barata Ribeiro, justamente um dos pontos mais movimentados do famoso bairro carioca.  E pensar que Raquel, em hebraico, quer dizer ovelha mansa.


Fatos e suposições 


            Todos os veículos de comunicação disputaram palavra a palavra a preferência do leitor, do ouvinte e do telespectador.  O Brasil inteiro quis saber sobre o caso do Degolador da Cidade Maravilhosa.  E o que não faltou foi assunto sobre o caso, que deu pano pra manga.

Terça-feira, 15 de julho de 2003, 11h40...

            Na delegacia, Rodina e Medeiros dão por encerradas as investigações.

            _ Pois é, o Degolador, na verdade, era uma mulher, o que foi comprovado pela comparação das digitais da assassina com as encontradas nas casas das vítimas. Seu nome era Graciele Fontes Borges, 23 anos, trabalhava há dois anos para o arquiteto Rodolfo Simplício Marques, que nada tem a ver com o caso.  Ela era natural de Santa Maria, Rio Grande do Sul, e estava há quase três anos na cidade.  Estudava Administração na Uerj.  A assassina teria entrado no apartamento do arquiteto, provavelmente, com uma cópia da chave que, também provavelmente, teria feito.  O senhor Rodolfo confirmou que certa vez havia solicitado à sua secretária que providenciasse uma cópia das chaves do seu apartamento.  E, então, tal ocasião teria sido a chance da assassina ter feito também uma cópia para si.  Não se sabe, no entanto, o que a assassina queria fazer no apartamento do senhor Rodolfo.  Talvez estivesse à procura de alguma coisa.  Quem sabe, até mesmo, tentando incriminá-lo de alguma forma  Infelizmente, creio eu, que tal informação se foi com a morte da nossa assassina.  Esqueci de alguma coisa, Rodina? – Medeiros concluiu seu relatório.

            _ Creio que não – respondeu o homem dos olhos azuis.

            _ Muito bem.  Belo trabalho, rapazes.  E, mais uma vez, a polícia lhe agradece, Rodina – falou, por sua vez, o delegado Alexandrino.

            O caso estava encerrado e foi, prontamente, arquivado.  No entanto, há coisas que não podem ser arquivadas tão facilmente, pois continuam ativas no dia-a-dia.  E tais coisas não poderiam mesmo ser deletadas da mente de Medeiros, que acabara de perder a mulher que amou por três anos.  Também perdera o seu companheiro de labuta.  O inspetor jamais seria o mesmo homem.  Percebendo a situação, o delegado Alexandrino concedeu alguns dias de descanso ao policial Medeiros.  Também o aconselhou a procurar o serviço de psicologia da polícia.


Epílogo

            Os dias seguintes foram os piores da vida de Medeiros.  Ele passou, se é que isso fosse possível, a fumar mais e mais. O álcool também foi um amargo refúgio para o policial, que passou a ir quase que diariamente ao cemitério do Caju, onde estava o corpo de Tereza.  Felício fora enterrado em sua terra natal, Petrópolis.

Sábado, 16 de agosto de 2003...

            Manhã fria, chuva fina, garoa que nada combina com o Rio de Janeiro, parece querer lavar a cidade. E lá está o inspetor Eugênio Medeiros postado e prostrado em frente ao túmulo 67.125, onde há menos de um mês jaz o corpo de Tereza.  O policial está pensativo, saudoso dos primeiros tempos com a amada, saudoso também dos últimos momentos com aquela mulher que ele não soube compreender, que ele, até mesmo, tentou se esquivar, talvez por medo, talvez pelo desgaste natural de todo relacionamento. 

            Medeiros ajoelha-se, gesto que poucas vezes fez em seus 44 anos de vida.  Não chega a ser ateu, tampouco um devoto de Deus.  Definitivamente, religião não é o seu forte ou, então, o seu fraco.  O ajoelhar-se, portanto, não tem fundo religioso, não é uma busca de conforto do sobrenatural, mas apenas o rendimento de um homem à insignificância de sua existência, de toda sua incapacidade diante da força dos acontecimentos.  Ele não tem o poder de voltar atrás, ninguém o possui.  E como esse homem quer voltar atrás!  Incapaz, não pode...

            Alguém observa o sofrimento solitário de Eugênio Medeiros.  Alguém que, aparentemente, não se deixa comover.  Medeiros, alheio à presença da figura curiosa, continua a lamentar, silenciosamente, é verdade, a perda da doce Tereza, da mesma Tereza que não tinha pudor em demonstrar todo prazer que Medeiros lhe proporcionava, seja no chuveiro, seja debaixo dos lençóis, seja no tapete ou na pia da cozinha ou do banheiro.  Tereza, definitivamente, era uma mulher fogosa como poucas.  Às vezes fingia, claro, como muitas ou, até mesmo, toda mulher finge, ao menos de vez em quando ou, aos que preferem, de quando em vez.

            O homem que lamenta a morte da amada apoia a mão esquerda sobre o túmulo, enquanto a outra coloca flores sob a lápide.  São rosas vermelhas, as preferidas de Tereza, que gostava de se exibir para Medeiros e, até mesmo, para outros homens com seu vestido rubro, que torneava ainda mais seu corpo de violão.  Aliás, violão muito bem tocado, apenas para fazer jus à última mulher do inspetor.  E foi justamente num vestido da mesma cor que surgiu detrás de uma lápide vizinha a figura feminina de Pamela, que com um único e certeiro golpe corta a garganta de Medeiros, fazendo-o tombar abraçado ao túmulo da amada. 

* * * * *

A garoa, teimosa, não deu sossego, continua querendo lavar o sangue que não para de jorrar na Cidade Maravilhosa.  

 


Fim