domingo, 31 de março de 2024

Ataíde, o generoso

    
           Ataíde era um bom homem. Aliás, de tão bom, alguns poderiam supor que fosse um boboca, palavra que quase caiu em desuso nesses tempos tão corridos, em que há um otário em cada esquina. Mas usemos boboca, que, creio, cai melhor para descrever aquele ser ingênuo e de coração generoso além da conta.

        Por causa dessa característica dadivosa, Ataíde, não raro, era passado para trás por algum espertinho, seja parente, seja amigo, seja conhecido de vista, seja até aquele completamente desconhecido. Mas de todos os aproveitadores, havia um que era uma avalanche de pedir favores aqui, ali, acolá, a qualquer hora do dia e da noite, madrugada adentro e sem qualquer cerimônia. Um verdadeiro cara de pau! Seu nome? Paulo José de Almeida e Silva. Todavia, para encurtar a história, todos o conheciam por Abobrinha. 

          Abobrinha, aliás, conhecia Ataíde desde os longínquos tempos em que usavam calças curtas. O tempo passou, é verdade, mas o interesse pela amizade cresceu de maneira exponencial com os anos, especialmente nos últimos meses, quando o Ataíde conseguiu um empregão numa firma de exportação. Quanto ao Abobrinha, além de pular de um trabalho para o outro, foi despedido na semana passada e expulso da casa dos pais, que já não aguentavam sustentá-lo. O safado nem sequer lavava um copo. 

          Sem ter a quem recorrer, o pilantra foi até o eterno amigo, que, agora, estava bem de vida. Ataíde acolheu o Abobrinha de braços abertos. Tanto é que até o convidou para passar uma temporada no seu amplo apartamento, que, apesar de enorme, possuía apenas uma suíte, além de um quarto mais modesto.

         Acredite ou não, quem se acomodou no cômodo maior foi justamente o Abobrinha. Ataíde, por sua vez, pareceu não ligar. Afinal, para que serve o conforto se não pode compartilhá-lo com os amigos?

          Tudo ia bem, até que, certa manhã, quando o Ataíde estava quase saindo de casa para mais um dia de trabalho, o Abobrinha, com a cara mais lava do mundo, apesar das remelas nos olhos, já que acabara de acordar, mandou uma fala para o amigo.

           — Ataíde, meu querido. Preciso de um favorzinho seu.

           — Pois diga, Abobrinha.

           — Tô precisando de uma graninha.

           — De quanto?

           — Dez mil.

           — Dez mil? 

           — Isso mesmo.

           — Aí, não, meu irmão!  Assim, você forçou a amizade!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Ataíde, o generoso" foi publicado por Notibras no dia 31/3/2024.
  • https://www.notibras.com/site/ataide-o-generoso-da-chega-pra-la-no-abobrinha/

O curioso caso da abóbora do vizinho

   Aquela abóbora passava dos seis quilos. Enorme, bem que poderia ser usada como molde para um globo terrestre. Que nada! Estava fadada a encher o bucho daquela família de esfomeados. Não por necessidade, mas pelo simples desejo de saciar o ímpeto de cometer crime.

  Vamos logo ao enredo dessa história, que já virou mote de piadas até nos bairros vizinhos da linda Aracaju. Mas antes que cheguemos ao ocorrido na semana passada, precisamos retroagir no tempo que a dita cuja, a tal abóbora, ainda não passava de um brotinho, que nem bolinha de gude que criança brinca na pracinha. 

  Josemar, no alto dos seus 68 anos, casado com dona Marta, com quem dividia a casa com as quatro crias, todas maiores de 20, nenhuma acima dos 40, foi o primeiro a notar aquela protuberância presa à rama que havia sido cuidadosamente plantada, adubada e regada diariamente pelo vizinho, o Osmar. E, sem qualquer pudor, tratou logo de puxar a rama por onde pendia aquela abobrinha, que, inocente, deixou-se ser guiada por mãos tão convincentes para o lado de cá da cerca. 

 Enquanto Osmar prosseguia com os cuidados com a planta do lado de lá, Josemar via aquela bolinha se transformar, cada vez mais, numa grande e vistosa abóbora. De tão reluzente, a pobre coitada nem suspeitava que, mais cedo ou mais tarde, ela iria acabar numa panela com água fervendo. Talvez até virasse iguaria nas mãos de dona Marta, dependendo, obviamente, do ânimo da mulher.

 Após namorar o fruto por quase cinco meses, eis que Josemar pegou uma faca na cozinha e, com um golpe certeiro, cortou o cordão umbilical da abóbora. O homem, sem qualquer culpa, carregou a abóbora para dentro de casa e a depositou sobre a mesa. Sorriu aquele sorriso de quem havia cumprido fielmente o plano.

 De tão animado, Josemar chegou a sonhar com aquela belezura de abóbora. Tanto é que, na manhã seguinte, acordou com vontade de tascar os dentes nas carnes do corpulento vegetal. Mas eis que, assim que calçou o chinelo, ouviu a campainha tocar. Quem poderia ser àquela hora? Todavia, antes mesmo de continuar tentando adivinhar, percebeu que a esposa acabara de abrir a porta e cumprimentar Osmar, o vizinho.

 Josemar, melhor alternativa para aquele momento, teve que dar o ar da sua graça para Osmar. Este, apesar de não gostar de pendengas, ao avistar a abóbora sobre a mesa, não resistiu e instigou o larápio com o seguinte interlúdio.

  — Josemar, sabe o que representa aquela abóbora bem ali?

  — Não, o quê?

  — Representa aquilo que todo criminoso almeja.

  — E o que é?

  — A certeza da impunidade.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O curioso caso da abóbora do vizinho" foi publicado por Notibras no dia 31/3/2024.
  • https://www.notibras.com/site/conheca-o-curioso-caso-da-abobora-do-vizinho/

sábado, 30 de março de 2024

Hecatombe no asfalto

  

    Bem ali no bairro Alameda dos Sonhos, em São Luís, Maranhão, a confusão era tamanha, que ninguém mais sabia quem batia, quem apanhava, quem havia começado e muito menos quando é que iria acabar. Mas o sangue corria solto, deixando o asfalto escorregadio. Cuidado com a navalha! Ela não escolhe carne para cortar, seja macia ou de segunda. 

          Nenhuma das cadeiras em pé, quiçá nas mãos de alguns mais afoitos que as seguravam como armas, prontos para acertar a cabeça de desafetos, que eram tantos, que eram todos, que ninguém sabia o porquê. Quem se importava a essa altura? Que acertasse bem em cheio para ver os miolos espalhados pelo chão. Aí, sim, a coisa ficaria bonita! Nem Caravaggio, muito menos Munch seria tão impactante. 

          Ninguém mais sabia se o grito era seu ou de outrem. Pra quê? Todos estavam surdos diante da razão, que, naquele instante, provavelmente estava fazendo sala em outro bairro. Talvez na Dinamarca ou, mais provável, na fronteira entre a Suíça e Campos do Jordão.

          Apesar das forças se esvaindo, aquele bando cismava em manter os pés enfincados ao solo. Um tapa a mais, um último rabo de arraia, o derradeiro safanão. Todos, praticamente ao mesmo tempo, desabaram naquela dura e pegajosa rua. As cabeças, ainda presas àqueles corpos tão injuriados, se viravam até onde conseguiam. Que hecatombe!

          O silêncio, após algum tempo, se tornou presente. Enquanto isso, acima de tamanha irracionalidade, o Sol travava mais uma luta ferrenha contra as nuvens espessas, para que o dia amanhecesse com o brilho dos seus raios. Será que vai dar praia?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Hecatombe no asfalto" foi publicado por Notibras no dia 30/3/2024.
  • https://www.notibras.com/site/briga-generalizada-acaba-em-nocaute-dos-machoes/

Um autista na polícia

    

            Mal cruzo o portão do pátio, percebo uma enorme aglomeração diante do antigo prédio da delegacia. Viaturas com aquelas luzes ligadas, num infinito giro. Estaciono na mesma vaga de sempre, debaixo de uma mangueira. Desligo o carro e espero alguns minutos. Preciso encarar aquele martírio mais uma vez.

          Meu nome é Roberto Matos, mas meus colegas me chamam simplesmente de Beto. Não que sejamos íntimos, mas, talvez, o longo convívio os tenha enganado sobre isso. Na verdade, isso é apenas um detalhe sem importância, já que nem ligo se me chamam de Beto, Roberto, Matos ou qualquer outra alcunha. 

          Há quase 20 anos, certamente por um momento de insensatez, me tornei inspetor de polícia. Deveria ter seguido meu caminho de técnico de informática em outro órgão, onde meu dia a dia fosse apenas de computadores e a minha mente. É verdade que teria que conviver com vozes de outros funcionários, mas nada que se compare ao rebu que sou exposto nesses infernais plantões.

          Para você, que talvez desconheça como é a minha rotina, vou fazer uma breve exposição. Como mencionei, sou plantonista e, por isso, sujeito à escala, que, no meu caso, se dá da seguinte maneira. Entro às 8h e saio às 20h desse mesmo dia. Volto para casa e, no dia seguinte, entro às 20h e fico até as 8h do próximo dia. Daí, volto para casa e descanso por 72h e, assim, sucessivamente até me aposentar ou, então, que eu não consiga mais suportar tal situação.

          Moro relativamente perto do trabalho, o que faz com que eu chegue em no máximo 30 minutos, dependendo do trânsito. Meus colegas me dizem que acordam por volta das 7h, tomam café da manhã, entram debaixo do chuveiro e, sem se apressarem, chegam à delegacia no horário ou, no máximo, 15 ou 20 minutos após. Não consigo fazer o mesmo. 

          Demoro a pregar os olhos já na noite anterior e coloco vários alarmes no meu celular, sendo o primeiro às 2h e, os subsequentes, a cada 20 minutos. Ergo meu corpo e vou direto para a cozinha, onde espremo dois limões em um copo de vidro. Completo com água e bebo. 

          Logo em seguida, começo a erguer meu corpo na barra fixa à porta que divide a cozinha e a sala. São inúmeras repetições, que fazem com que minha mente comece a concatenar as ideias. E, entre uma sessão e outra, assim que se passam 30 minutos, escovo os dentes.

          Retorno para a cozinha, onde coloco água na mesma panela e a deposito sobre a mesma boca do fogão. Volto a erguer meu corpo na barra fixa e, antes que a água ferva, eis que coloco três colheres cheias de pó de café coador de pano de sempre. Não demora, o café está pronto.

          Despejo um pouco na mesma xícara, que conhece meus lábios há anos. Meus pensamentos começam a se organizar com mais desenvoltura. Mentalmente planejo as próximas ações, enquanto a garrafa térmica cospe suas últimas gotas. Hora de tomar banho.

          Depois do banho, escovo os dentes novamente, enquanto observo meu rosto magro, olhos profundos, como se quisessem entender aquele homem que os encara. Nenhuma palavra, apesar da umidade que, não raro, escorre por sua face.

          Eis que, ainda dentro do automóvel, tento postergar outro dia de sofrimento. Mais alguns minutos, preciso abrir a porta e encarar aquilo tudo. Passo por um colega, que está saindo do plantão. Ele me cumprimenta e eu, sorridente, digo algo amigável. Prossigo no meu papel e, finalmente, coloco os pés na delegacia. Vozes ensurdecedoras ao meu redor. Se elas soubessem o que se passa na minha mente, certamente se calariam.

          Sento na mesma cadeira de sempre, em frente ao primeiro computador da direita, ao lado da porta de grade. Antes que eu tenha chance de ligar o computador, alguém se aproxima e me pergunta se estou livre. Esboço um sorriso, enquanto a mulher, praticamente da minha idade, se senta e começa a tagarelar. Falo para ela aguardar um pouco até que eu ligue o computador.

          A mulher, impaciente, tenta puxar conversa, enquanto eu procuro me fixar na tela, que demora a dar sinais de vida. Finalmente, as primeiras luzes brilham e sou transportado para um dia de sol na praia do Peró, onde costumava passar os verões nos longínquos anos 1970. Não sei quanto tempo fico nesse devaneio, até que alguém me toca no ombro. É o Sousa, policial da equipe que está saindo.

          —Beto, você pode trocar o plantão noturno da sexta pelo noturno de domingo?

          —Preciso ver nas anotações que estão no carro. Me mande uma mensagem, que te respondo mais tarde. Pode ser?

          Sousa é um dos poucos que parou de me torrar a paciência para arrumar uma agenda eletrônica, que pode ser instalada no celular. Ele me dá um leve toque no ombro e nos despedimos, cada um com um sorriso, sendo o dele muito mais franco do que o meu. 

          Volto os olhos para a tela. O computador, ao contrário de mim, parece estar pronto para mais um dia de trabalho. Respiro fundo e começo a atender a primeira cliente do dia, que promete ser ainda mais doloroso.

          Depois de ouvir todas as lamúrias da mulher à minha frente, chegam dois homens se acusando mutualmente sobre um golpe de um site de vendas da internet. Enquanto tagarelam, procuro me concentrar em algo mais prazeroso, o horizonte. No entanto, um homem esquálido encosta na porta de grades e me pergunta se o inspetor Lima já havia chegado. Respondi que ele só viria à tarde. 

          Volto minha atenção aos dois homens, que não param de discutir, até que peço para que os dois se sentem. Explico que eles eram vítimas, e que o golpista era outro, que provavelmente estava em outro estado. Eles me olham com cara de incrédulos, até que os dois se viram para mim e perguntam quase ao mesmo tempo: "O senhor também já caiu nesse golpe?" 

          Olho para aqueles rostos coléricos e respondo que não, mas conhecia como o golpe funcionava, tamanho o número de vezes que havia registrado situações semelhantes. Levo quase uma hora para terminar o boletim de ocorrência. Os sujeitos, agora mais calmos, agradecem e saem conversando amigavelmente. Não duvido que, dali, foram tomar uma cerveja. 

          Meu dia ainda estava longe de terminar. O próximo cliente é um senhor de quase dois metros, uns cento e não sei quantos quilos. Ele se senta e minha mente não para de imaginar que, logo, a cadeira não aguentará tanto peso e o homenzarrão desabará no chão frio da delegacia. Instintivamente, levo as mãos aos ouvidos, mas nada acontece. A cadeira tem lá seu mérito. Apesar de capenga, parece ser de bom material. 

          Pergunto para o homem qual o motivo de sua ida à delegacia. Antes não tivesse perguntado e, melhor ainda, antes tivesse mantido as mãos nos ouvidos. A sua voz me reporta a uma araponga. Não consigo prestar atenção nas palavras, mas apenas no irritante som. Quero fugir dali e, então, me levanto e digo que preciso ir ao banheiro. 

           Levo não sei quanto tempo, até que, recomposto, retorno. Por sorte, o Geneci, colega de equipe, estava atendendo o senhor Araponga. Afinal, o sujeito queria apenas registrar o extravio da sua carteira de motorista. Mal me sento, o Geneci entrega o boletim de ocorrência para o cliente, que agradece e, ainda bem, sai para bater asas em outras paisagens. 

         Outras tantas situações caóticas acontecem ao longo do expediente. Finalmente, é hora de recolher os trapos e voltar para o meu refúgio. Entro em casa, minha mulher me pergunta como foi o plantão. Não tenho vontade de responder, mas me esforço para sorrir. Beijo-lhe a face e me sento no sofá por quase meia hora. 

          —Vai tomar banho agora, Beto?

          Levanto meu corpo carcomido e vou em direção ao banheiro. Debaixo do chuveiro, volto meu rosto para a água que cai morna. As lágrimas são levadas, nem sei se foram notadas pela minha esposa, que está ali com a toalha na mão. Saio do box e Laura me cobre como se eu fosse um bebê. Ela me beija os lábios e me diz: "Vai ficar tudo bem. Eu te amo!"

  • Nota de esclarecimento: O conto "Um autista na polícia" foi publicado por Notibras no dia 30/3/2024.
  • https://www.notibras.com/site/policial-autista-vive-dia-de-cao-em-dia-de-plantao/
  • O conto "Um autista na polícia" foi publicado no volume XII, edição 62 da Revista Barbante, 2024.
  • https://revistabarbante.com.br/wp-content/uploads/2024/04/completa_barbanteabril2024.pdf

sexta-feira, 29 de março de 2024

Brasília goza em silêncio

    

          Brasília me consome! Toda vez que preciso vir para cá, já sei que vou sofrer com a secura, mesmo em tempos de chuva. O nariz sangra, os lábios precisam de boa dose de manteiga de cacau, os olhos precisam de colírio e a pele fica seca que nem a de um calango. Mas os amigos valem tamanho sacrifício e, por isso, procuro curtir cada instante como único.

          Uma coisa famosa e complicada por aqui são as tais tesourinhas. Uma série de pequenos viadutos espalhados ao longo dos Eixos Sul e Norte. Até que não apanho muito, mas, quando chove, é aquele transtorno, pois a água fica acumulada em determinados pontos e não há carro que consiga passar, a não ser se você for o Speed Race e estiver pilotando o Mach 5

          Mas deixemos as águas de março pro Tom Jobim. Hoje quero falar de algo que me causou espanto logo após me despedir do meu grande amigo Helder na UnB. Peguei meu carro e fui em direção à SQN 309 e, quando estava próximo à tesourinha, avistei uma faixa que me chamou a atenção. Em letras garrafais, lá estava escrito: BRASÍLIA GOZA EM SILÊNCIO. Se fosse eu o autor, tacava três pontos de exclamação para causar mais impacto ainda. 

          Em vez de me causar espanto, comecei a refletir sobre tal frase. Logo me atentei que o Plano Piloto, que é a parte do Distrito Federal em formato de avião, possui algo em torno de 230 mil habitantes, ou seja, é praticamente uma Copacabana, bairro até de dimensões modestas do Rio de Janeiro. 

          Além disso, as outras Regiões Administrativas possuem populações semelhantes, com algumas distorções para cima e outras para baixo, mas a maior parte é separada por quilômetros de distância. Resumindo: o DF é um conjunto de pequenas e médias cidades, tão comuns pelo interior do Brasil. Seria o povo daqui reprimido sexualmente?

          Acabei parando em um restaurante. Nem senti direito o gosto da comida, que, certamente estava deliciosa. O problema é que comecei a confabular teses sobre o que é o candango, até que me deparei com uma discussão na mesa ao lado. 

          — Ah, isso acontece lá na sua terra. Aqui é diferente.

          — Que mania goiano tem de se achar melhor que todo mundo.

          — Num sou goiano, não. Sou brasiliense!

          — O DF é todo cercado de Goiás. Tu é goiano do DF.

          Enquanto os outros componentes gargalhavam, o rapaz de Brasília fechou a cara. Nem sei como essa contenda terminou, pois a comida no meu prato havia acabado, e eu precisava ir embora. Paguei a conta e caminhei até meu carro.

          Minha mente, agora mais embaralhada com aquela história de goiano do DF, não parava de tentar entender as pessoas daqui. Será que goiano goza em silêncio? Na certa, a tal frase sobre Brasília deve ter sido apenas algo para chamar a atenção. Na dúvida, mandei a fotografia da faixa para meu grande amigo Flavio Bonesso, que é brasiliense. Não demorou, ele me respondeu com uma pergunta: "Mas não pode nem gemer?"

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Brasília goza em silêncio" foi publicada por Notibras no dia 29/3/2024.
  • https://www.notibras.com/site/lembranca-de-amelinha-surge-ao-vivo-sem-voz-de-elba/

O misterioso caso das sandálias

        Aurelina Gomes Freire, conhecida por todos como Lina, mal recebeu a visita das regras, foi desposada pelo Genival, homem já feito, bem ali na área rural de Formosa do Rio Preto, Bahia. Por conta da união, Lina acrescentou Sousa ao final do nome. 

          Mal pisou no gélido chão das casadas, foi apresentada às agruras das despreparadas na noite de núpcias. Pobre Lina, deveria ter feito consulta prévia com a mãe. Mas como fazê-lo, se a genitora havia dado o último suspiro logo após o primeiro choro da recém-nascida. Criada pelo pai, eis que logo se viu criada do marido.

          Não se sabe por sorte ou alguma mazela, as investidas de Genival sobre o frágil corpo de Lina não renderam frutos. Nada além de dores físicas, que esmigalharam todo e qualquer resquício de humanidade da jovem. É verdade que calejada ficou com o passar dos anos e, quando alguém a questionava sobre a vida de casada, Lina conseguia disfarçar uma tal felicidade que jamais lhe fez visita. 

          Os 20 chegaram arrastados, mas logo se transforam em 30, que caminhavam firmes para os 40, caso não acontecesse algo inesperado justamente na manhã do dia em que Lina completava 36 anos. Um presente, que a mulher só foi perceber durante a noite. Genival havia desaparecido e ela, finalmente, teve a primeira noite de paz. O cheiro do marido, é verdade, ainda impregnava o ambiente, mas isso não a impediu de dormir um sono tranquilo.

          Logo cedo, Lina foi despertada pelos primeiros raios de luz que, atrevidos, invadiram o quarto pelas frestas da janela sem reparos. Ela olhou para o lado, ninguém ao lado. Para onde teria ido o Genival? Teria ido embora para nunca mais voltar? Quem sabe não fora comido por uma onça ou, melhor, enjoou da esposa e foi buscar acalento nos braços de outra.

          Levantou-se, pisou o chão frio do quarto e foi para a cozinha. Abriu a porta da cozinha e foi tratar de fazer suas coisas quando, então, esbarrou nos chinelos do marido, bem ali na entrada da casa. Havia uma nota, não muito graúda, mas o suficiente para passar o dia. Lina arqueou os joelhos e pegou o dinheiro. Curiosa, observou se havia alguém por perto. Nem sequer uma alma. 

          A mulher passou o resto do dia matutando sobre aquela situação. Genival desaparecido, dinheiro aparecido. O que aquilo significava? Acabou por se entreter com as coisas do dia a dia, até que a noite chegou e o cansaço a fez adormecer. 

          Despertou com a luz que entraram pelas frestas da janela. Passou as mãos sobre o rosto e, fingindo coragem, ergueu o corpo. Levantou-se e, novamente, se deparou com mais uma nota depositada sobre as sandálias do marido, que ainda continuavam no mesmo lugar. Tratou logo de pegar a quantia, idêntica à do dia anterior, e enfiá-la no sutiã. 

          A rotina prosseguiu pelos dias seguintes e por mais de ano. Lina se sentia livre pela primeira vez na vida. Não precisava fazer as coisas pra homem nenhum. Tanto é que ela até havia tratado de fechar todas as frestas da janela do quarto para esticar o sono até onde pudesse, ou melhor, quando quisesse.

          Não havia hora certo pro café da manhã, que poderia ser até à tarde ou, se Lina não tivesse com apetite, nem acontecia. E assim eram as coisas, e estava tudo bem. O almoço virava janta e, se sobrasse, virava almoço no dia seguinte ou, se a mulher desejasse, que fosse tudo pras galinhas no quintal. Certo mesmo é que, todas as manhãs, lá estava uma nota sobre as sandálias de Genival.

          Lina, apesar de se sentir como nunca havia se sentido, a curiosidade a consumia. Gostava da situação, mas não a compreendia, até que, certo dia, precisou ir à venda do Ulisses, que, além de comerciante, era afeito à leitura, coisa rara naqueles tempos em que quase ninguém sabia decifrar palavras. A mulher entrou tímida no estabelecimento, pegou o que precisava e entregou algumas notas pro dono.

          - Dinheiro novo. Vi uma nota assim só na capital.

          - Capital?

          - Sim. Lá eles têm um banco que imprime notas novinhas que nem esta aqui.

          - Então, essa veio de lá?

          - Quase certo.

          - Como assim?

          - É que, não sei se a senhora sabe, o José, filho da dona Lúcia, foi abduzido. 

          - Abi o quê?

          - Abduzido, dona Lina. Abduzido!

          - E o que diacho é isso? É doença que mata?

          Ulisses soltou uma gargalhada tão sonora, mas, não tardou, parou diante da seriedade da mulher. Pigarreou e explicou que o José havia sido levado pelos extraterrestres, coisa de outro mundo. 

          - Entendeu?

          - Hum. E isso foi quando?

     - Há quase um ano. Não sabia disso? Todo mundo comentou. Mas parece que encontraram o rapaz ontem à noite. Voltou pra casa todo abobalhado. 

          Lina retornou para casa. Estava certa de que Genival também havia sido abduzido. No entanto, só de pensar na possibilidade de o marido retornar, do dia desandou de uma maneira, que a mulher não teve ânimo para nada. Deitou na rede na varanda e adormeceu. Acordou com os raios no rosto. Olhou pro lado e lá estava mais uma nota sobre os chinelos do esposo. 

          Os dias foram virando semanas, que logo trataram de esticarem até formar meses e, por vez, anos. Se Genival havia sido abduzido ou não, isso acabou caindo no esquecimento. Certo mesmo é que a mulher pegava sempre uma nota depositada sobre as sandálias do marido. Dinheiro suficiente para as despesas. 

          A mulher, agora perto de completar 70 anos, estava deitada na rede na varanda. Acabou adormecendo e teve um sonho que nunca havia sequer imaginado sonhar um dia. Pois lá estava ela deitada naquela mesma rede, adormecida em seu sonho profundo, sonhando que estava justamente ali adormecida, quando, no sonho, surgiu um homem, pouca coisa mais velho ou pouca coisa mais novo. Ele exalava aquele agradável odor de manacá-de-cheiro. O sujeito se aproximou e lhe beijou os lábios. 

          A velha Lina, pela primeira vez na vida, sentiu o toque carinhoso de um homem. Não se sabe se isso foi um sonho ou apenas devaneio de alguém desejando algo que nem sabia existir. O seu corpo, totalmente nu, foi encontrado sobre a rede na varanda por um vizinho, incomodado pelo fedor da morte. Apesar do avançado estado de putrefação, algo chamou a atenção do homem, que não conseguia entender aquele sorriso na face carcomida da defunta. Quanto às sandálias, elas continuavam no mesmo lugar, mas, estranhamente, sem nota sobre elas. 

  •  Nota de esclarecimento: O conto "O misterioso caso das sandálias" foi publicado por Notibras no dia 29/3/2024.
  • https://www.notibras.com/site/genival-abduzido-deu-paz-a-lina-ate-a-morte/


Meu amigo Charlie

 

        Nunca entendi essa coisa de melhor disso ou aquilo, mas sempre soube de uma coisa, que ainda hoje, após quase 40 anos da última vez que estivemos juntos, que o Charlie me fez dar boas risadas. Aquela cara amassada, a língua tombada para o lado, aqueles olhos me encarando e me convidando para que eu jogasse mais uma vez a bolinha para que ele fosse buscá-la. 

        Charlie, nome escolhido por minha mãe, era meu grande companheiro naqueles tempos de menino. Corria solto pelo gramado em frente à nossa casa, mas sempre buscando saber onde eu estava. De vez em quando, eu me escondia atrás de uma árvore. Pra quê? O meu cachorro parava, olhos arregalados, aquela expressão de quem estava sem chão. Mais eis que eu tentava ver como é que ele ficava, meus cabelos pretos me denunciavam, e, correndo que nem um estabanado, o Charlie saltava em mim. Rolávamos na grama, enquanto meu buldogue lambia meu rosto.

         — Cássio, você vai participar do amigo oculto?

        É a Paula, colega de trabalho, que vem me perguntar se vou querer entrar na costumeira brincadeira de final de ano. Amigo oculto. Se eu tirasse o Charlie, certamente lhe daria um belo osso defumado. Ele adorava, apesar da mamãe reclamar da sujeira que ficava na sala. Papai e eu ríamos, enquanto minha irmã, Maria Flor, que ainda era bem pequena, a tudo olhava sem entender, talvez querendo participar daqueles momentos.

        — Cássio?

        — Ah, sim! Vou, sim, Paula.

       Assim que me vejo só em meus pensamentos, volto a recordar como é que Charlie sabia viver. Será que eu, agora aos 52 anos, me diverti tanto? Meu amigo sempre estava de bom humor, enquanto eu continuo aqui entretido com preocupações do trabalho. Vontade de largar tudo e correr atrás de uma bolinha não me falta, mas a coragem ficou naqueles tempos de menino. 

     Mal saio do escritório, caminho em direção ao estacionamento. Percebo que o trânsito está caótico e resolvo comer um pastel no quiosque ao lado. Uma chuva repentina me faz buscar abrigo debaixo do toldo, quando, também buscando fugir da forte água que cai, surge um vira-lata, que busca a barra da minha calça, talvez para se esquentar.

      Não é um filhote, mas também não me parece ser muito velho. Está magro e me lança aquele olhar de sofrimento. Ofereço-lhe o resto do pastel, e o cachorro o devora, como se fosse a primeira refeição em dias. 

   Troco algumas palavras com meu companheiro de última hora. Ele me responde esfregando o focinho nas minhas pernas, até que se vira com a barriga exposta. Acaricio o ventre e, então, percebo que meu amigo é, na verdade, uma menina. 

     De brincadeira, começo a chamá-la de Carlota, até que a chuva para repentinamente. Pego o controle do carro e o aciono. Vou em direção ao automóvel e, antes de abrir a porta, volto meu rosto para a cadela, que está sentada debaixo do toldo. Ela me encara, como se dizendo que foi bom me encontrar.

      Sento ao volante, ligo o motor, mas sou do tipo impulsivo. Saio do veículo e assovio. Carlota entende meu chamado e, logo em seguida, está sentada no banco ao lado. Estamos indo para casa. Não vejo a hora de comprar um belo osso defumado para a minha nova amiga. Minha esposa talvez reclame da sujeira na sala, mas tenho certeza de que a nossa filha dê boas gargalhadas. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Meu amigo Charlie" foi publicado por Notibras no dia 29/3/2024.
  • https://www.notibras.com/site/carlota-nova-dona-do-pedaco-promete-gargalhadas-infantis/

quinta-feira, 28 de março de 2024

Aleivosia se paga com aleivosia

 

Tudo teria começado por conta de aleivosia. Pois é, de uma maldita aleivosia, bem ali naquela esquina, onde dobra pra praia de Cabo Branco, na aprazível João Pessoa. Quer dizer, a deslealdade começou ali, mas terminou no município vizinho, Conde. 

       - Você é um mau-caráter, Osvaldo! 

      - Não sei de onde você tira essas ideias, Amélia.

      - Aliás, nem mau-caráter você é. Falta-lhe caráter para tanto!

     Para encurtar a história, esses dois eram casados, pelo menos até aquele momento. Os pombinhos foram passar uma nova lua de mel após 25 anos de união. Que celebração! Nada de filhos, todos já bem crescidos. Nada de netos, mesmo porque estes ainda não teriam sido concebidos. 

     Pois bem, lá estava o casal sentados na canga sobre as areias branquinhas em frente ao mar, lindo mar, quando, por esses descuidos que podem acontecer com qualquer um, os olhos nos traem e observam corpos alheios. O descuido, tudo bem, o problema não foi apenas o olhar, mas a sua persistência em acompanhar o traseiro dançante de uma beldade de lá seus 30 anos, quiçá 35. Pior, então, foi o sorriso nos lábios sobre o vasto bigode. Sorriso, aliás, do tipo que entrega desejos reprimidos. Pura traição!

   Não adiantou palestra pra convencer Amélia do contrário. O dia acabou ali mesmo debaixo daquele céu azul. Furiosa, a mulher voltou para o hotel e pensou até em fazer as malas e voltar para casa. Mas desistiu diante do cardápio do almoço. Bobó de camarão, arroz branco e torta de limão pra sobremesa. Quem resiste a tal mimo? Amélia não seria indiferente à tamanha regalia, ainda mais porque tudo já estava pago. 

   Almoçou sozinha, enquanto Osvaldo foi conhecer a cidade. Rodou tanto, que acabou esbarrando com a dona daquele traseiro, o mesmo traseiro da discórdia. Sorriso daqui, sorriso dali, convidou a mulher para um passeio, mas ela propôs outro. 

    - Já conhece Tambaba?

    - A praia dos pelados?

    A mulher, que se chamava Cristina, riu da maneira como Osvaldo se referiu à famosa praia de naturismo de Conde. Todavia, ainda naquele início de tarde, o casal de última hora se dirigiu até lá, onde se despiram diante de toda a deslumbrante natureza. Ficaram como vieram ao mundo durante o resto do dia, até que começou a escurecer e, então, o homem se lembro de que precisava voltar para o hotel para salvar seu casamento.

   Mal pisou no quarto, percebeu a esposa entretida com o aparelho celular. Disse boa tarde, apesar da noite já se fazer presente. Não obteve resposta. Pegou a toalha e se dirigiu ao banheiro. 

   Debaixo do chuveiro, Osvaldo não percebeu que Amélia entrou no banheiro. Parece que foi retocar a maquiagem e, boba que não era, percebeu que o bumbum do marido estava vermelho, como se tivesse pegado sol. Ela até pensou em questioná-lo, mas estava com fome, e o jantar no restaurante do hotel já estava servido há tempo. 

    Naquela noite, quando o casal já estava deitado, Osvaldo tentou uma investida, mas foi logo repelido pela mulher. Nada de reconciliação, ainda mais depois do que Amélia havia visto no banheiro. Ah, não mesmo!

  O dia amanheceu e as cizânia continuou firme naquele quarto. O esposo, já sem esperanças de conquistar um perdão, desceu para o saguão do hotel, onde tomou café da manhã. Retornou ao quarto meia hora após. Nada da esposa. Para onde ela teria ido? 

    O homem ainda aguardou por uma hora, depois por mais meia hora. Fez um acordo com a própria consciência e firmou que, caso Amélia não retornasse dentro da próxima meia hora, telefonaria para Cristina. E foi o que fez assim que o prazo venceu. 

      Diante do fruto da discórdia matrimonial, não tardou, Osvaldo propôs passarem o dia novamente na praia de Tambaba. E foi o que fizeram. Que Amélia se virasse pelas lojas de João Pessoa e comprasse todas as lembrancinhas que quisesse levar para casa.

   Osvaldo e Cristina, mal pisaram nas areias de Tambaba, retiraram a roupa e a colocaram em uma mochila. E lá foram os dois, livres, leves e solto, para uma mesa do restaurante logo adiante. Pediram dois sucos de laranja e conversaram futilidades, até que, de repente, surge, do nada, a Amélia. Totalmente sem roupa e despida de qualquer pudor. 

    - Oi, Osvaldo! Há quanto tempo!

    O homem arregalou os olhos, enquanto Cristina ficou sem entender aquilo. Ele tentou balbuciar alguma coisa, mas a gagueira instantânea o impediu de prosseguir a conversa. No entanto, para surpresa dele, Amélia estava sorrindo um sorriso que ele não conhecia. Osvaldo tremeu na base, mas logo o medo tomou outro rumo e se desfez em humilhação. É que, não tardou, surgiu um homem ao lado da esposa. Mas não um tipo comum, se é que você me entende. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Aleivosia se paga com aleivosia" foi publicado por Notibras no dia 28/3/2024.
  • https://www.notibras.com/site/bumbum-bronzeado-entrega-traicao-de-osvaldo/
  • O conto "Aleivosia se paga com aleivosia" faz parte da Coletânea Todas as Formas de Amor do projeto Apparere, 2024. 

 

Paixão por alho

  

    Chamava-se Henrique, que, apesar de Almeida, guardava hábitos herdados da avó, libanesa de nascimento, da família Fakhouri. Amava comida repleta de temperos, especialmente alho. Hum! O homem chegava a sonhar com aquele cheiro. Cheiro? Pois, sim! Fedor, dizia a esposa, que já percebia de longe o hálito sulfuroso do marido.

     Henrique, que casara muito cedo com Cristiane, cada vez mais lutava contra a compulsão pelos porros, ainda mais por conta de quase duas décadas de convívio com a amada, cada vez mais difícil. Dizem que até ameaça de separação havia rolado naquela casa. No entanto, religiosos que eram, tentaram manter as promessas ditas diante do altar. 

    O homem, que saía de casa pela manhã, de vez em quando passava na birosca da esquina e comprava uma ou duas caftas. Ele as devorava ainda a caminho do trabalho, o que lhe deixava com aquele fedor de alho. Que importa? Henrique não precisava se preocupar com supostas reclamações de colegas do serviço, mesmo porque não era casado com nenhum deles. Que se danem! Ademais, nada que algumas pastilhas de menta não deixassem de camuflar durante o resto do dia até que, finalmente, ele retornasse para os braços de Cristiane. 

   A mulher andava toda feliz com a suposta abnegação do marido. Era prova de amor, ela imaginava. Tanto é que, naquele dia, ela preparou um jantar à luz de vela com o intuito de recompensá-lo. Encomendou um bom pedaço de cabrito no açougue da esquina e, usando uma receita antiga de família, preparou a iguaria com ervas de aromas suaves. Obviamente, Henrique amaria a surpresa e, era certo, notaria o vestido com generoso decote da mulher.

    Enquanto isso, lá estava o Henrique quase terminando o atendimento a um cliente. Na verdade, você poderia dizer que saber o nome de tal cliente fosse algo desnecessário, mas lhe afirmo que era fundamental. Pois bem, o sujeito carregava, desde seu longínquo nascimento, o nome de Ahmed Abdullahi. Mais libanês que isso? Difícil! Além do mais, quase junto ao nome, eis que o senhor Abdullahi carregava uma caixinha de papelão, de onde exalava um cheiro irresistível de quibe. Era óbvio que com uma dose extra de alho. 

    Satisfeito que ficou com o atendimento recebido, o homem insistiu para que Henrique aceitasse ao menos um quibe. Sejamos justos, pois o marido de Cristiane tentou resistir. Que nada! Não apenas aceitou, como devorou outros dois que o senhor Abdulhahi nem precisou insistir. O estrago estava feito. 

     No caminho de volta para o lar, doce lar, Henrique comprou duas caixas de pastilhas de menta. Mastigou uma a uma no trajeto. O homem, a cada minuto, soltava uma baforada para avaliar o próprio hálito. Derradeira pastilha, deu-se por satisfeito. Todavia, assim que pôs os pés em casa, eis que a mulher, com olfato de perdigueiro, lançou um olhar de repúdio ao marido.

    - Nem precisa dizer. Já sinto o fedor daqui. Nem entra ou, se quiser entrar, eu é que saio. Vou dormir na casa da minha mãe!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Paixão por alho" foi publicado por Notibras no dia 28/3/2024.
  • https://www.notibras.com/site/henrique-passa-noite-so-apos-comer-alho-de-abdullahi/

terça-feira, 26 de março de 2024

O vozeirão do Samuca

    

    Durante meus 17 anos no Banco do Brasil, fui lotado em alguns locais e trabalhei com centenas de pessoas. É verdade que já faz muitos anos que saí de lá, mas ainda possuo alguns amigos desse tempo, que faço questão de conservar. Um deles é o Samuel. Aliás, Samuel Machado Francisco, se bem que também é conhecido por Samuca.

    Para quem vê pela primeira vez o Samuel, talvez se engane com aquela cara de homem brabo, ainda mais quando ouve aquele vozeirão. No entanto, para alívio de quem lhe é apresentado, logo vem aquele sorriso mais acolhedor do que colo de vovó em final de semana.

    Excelente nas contas de cabeça, dispensava a calculadora na maior parte do tempo. Esta era usada apenas quando a lista de itens era enorme. E lá ficava eu ao lado do Samuel, enquanto ele dedilhava a calculadora tão rapidamente, que até saía faísca das teclas. Não raro, aquela cena me reportava a um dos pioneiros do rock and roll, o Jerry Lee Lewis, que arrasava no piano. 

   Por falar em música, quando havia alguma comemoração no final do expediente, alguém costumava se lembrar de alugar uma máquina de karaokê. Gosto de música, mas até debaixo do chuveiro canto completamente fora de ritmo. Um desastre! Quanto ao Samuel, diria que é o que costumamos chamar de cantor eclético. 

   O timbre da voz do Samuel é algo entre Altemar Dutra e Sidney Magal e, por sinal, ele canta tais artistas com maestria. Todavia, não pense que o repertório do meu amigo fica por aí, pois sabe ser suave como o Paulinho da Viola, mas, a qualquer momento, pode surgir aquela potência do Emílio Santiago. 

  Se o Samuca é um mestre da arte de cantar, isso não o impede de mostrar outra de suas facetas: o humor. Aqui vale um adendo sobre uma brincadeira que ele adorava fazer com a Norminha, a sua esposa, por quem o Samuel sempre se mostrou muito apaixonado. 

  Pois bem, lá estávamos no Banco do Brasil, final de expediente, todos arrumando as coisas para ir para o lar, doce lar, quando o Samuel pegava o telefone e ligava para a Norminha. Um detalhe: ele colocava o telefone no   viva-voz para que todos tivessem aquele momento de risada coletiva, talvez para retornarmos no dia seguinte com mais disposição pro trabalho. Coisas de chefe.

   - Oi, Norminha! Tudo bem por aí?

   - Oi, meu amor! Que saudade! 

   - Já posso ir pra casa ou quer que eu fique por aqui por mais meia hora?

   - Ué, claro que pode.

   - Tem certeza?

   - Tenho. Por quê?

   - Sei lá. Vai que eu atrapalhe algo que esteja acontecendo por aí.

   - Samuel, pare com isso! Você sempre com essas brincadeiras bobas. Vem logo, que estou morrendo de saudade!

  Engraçado que, ao escrever tais linhas, percebo que os momentos mais marcantes que passei nos meus tempos de Banco do Brasil são esses de descontração com meus colegas, muitos dos quais continuam amigos até hoje. Não tenho muitas lembranças do serviço em si, mas as risadas das pessoas ainda ecoam nos meus ouvidos, e, certamente, a gargalhada do Samuca se destaca das demais. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "O vozeirão do Samuca" foi publicada por Notibras no dia 26/3/2024.
  • https://www.notibras.com/site/servico-no-bb-fica-marcado-por-vozeirao-do-samuca/