Meu pai, por conta de compromissos, sempre viajou muito. Era tempo
de tristeza na partida, saudade na ausência e esfuziante alegria no retorno. É
verdade que, de vez quase nunca, ele levávamos a tiracolo.
Não sei exatamente em que ano foi, mas
provavelmente aconteceu pouco antes do golpe de 1964. Sei porque, logo após a
implementação da Ditadura Militar, papai definhou de tal maneira, que, desgostoso
da vida, deixou-se levar. Viúva, minha mãe precisou ser firme para não deixar
que a família sucumbisse.
Voltando alguns anos antes desse tenebroso
período, lá estávamos papai, mamãe e eu no então praticamente novo Aero Willys
vermelho cruzando as estradas entre Brasília e Minas Gerais. Janelas abertas, o
vento desfazia as tranças que minha mãe havia feito em mim. No rádio, "Fica
comigo esta noite", do Nelson Gonçalves, era uma das inúmeras músicas que
ouvíamos.
Sentada no banco de trás, gostava de ver meu
pai engrossando a voz para imitar no famoso cantor, enquanto mamãe recostava
seu rosto no ombro do marido. Ela, apesar de morena, estava loira, talvez
influenciada por alguma famosa atriz de Hollywood.
— Mamãe, posso ser loira também?
— Maria Lúcia, minha filha, quando você crescer, pode ser o que você
quiser.
— Até ruiva?
— Até ruiva.
É engraçado pensar que, um dia, tivesse tido planos de pintar os
cabelos. Não sei exatamente o que aconteceu comigo desde então, mas sempre
gostei do tom escuro das minhas madeixas.
Papai, ao longo do trajeto, precisava parar em um posto para abastecer.
Nesses momentos, aproveitávamos para esticar as pernas e ir ao banheiro.
— Maria Lúcia, olha seu cabelo? Cadê as tranças que fiz?
— Ah, mamãe, parece que o vento não gostou muito.
— Que bobagem! Tenho certeza de que gostou, sim. Tanto é que as roubou
para ele.
Minha mãe sempre teve um senso de humor bem melhor do que o meu. Não que
eu tivesse sido uma criança sisuda, mas nunca entendi direito aquela maneira
lúdica de mamãe encarar o mundo. Até mesmo depois que ficou viúva, ela nunca
deixou a peteca cair, pelo menos não na minha frente. Deve ter chorado enquanto
sozinha no seu quarto, certamente para não demonstrar fraquezas, que, afinal,
todos temos.
Não sei exatamente onde foi que me deparei pela primeira vez com um
Sonho de Valsa, aquele bombom tão enaltecido por tanta gente. Fiquei
impressionada com aquele invólucro tão chamativo.
— Papai, me dá um?
— Maria Lúcia, tem certeza?
— Sim.
— Tá bom. Vou comprar pra sua mãe também, ela adora.
— Não é melhor comprar três?
— Três?
— Sim. Um pro senhor também.
— Ah, não gosto de chocolate.
Não sei se fui influenciada pelas palavras do
meu pai, mas não gostei do sabor. Minha mãe devorou os três, enquanto papai e
eu ríamos. Até hoje tenho certa aversão a chocolate e doces em geral. Meu
marido costuma dizer que preciso adoçar um pouco a vida. No entanto, nossa
filha, hoje com 16 anos, parece que encontrou a resposta para isso.
— Papai, a mamãe é do tipo de mulher que sabe que não se deve romantizar a
vida.
- Nota de esclarecimento: O conto "Maria Lúcia e o Sonho de Valsa" foi publicado por Notibras no dia 8/3/2025.
- https://www.notibras.com/site/maria-lucia-a-moca-que-nao-romantizava-a-vida-nem-com-oferta-de-sonho-de-valsa/
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