segunda-feira, 27 de março de 2023

Paciência tem limite!

      O traço mais marcante de Emanuela, a Manu, era a sua paciência com Odorico, um traste de marido. Se ele deixasse derramar a cerveja no tapete, lá ia a mulher passar pano. Ela, aliás, passava pano para todas as sujeiras do Odorico, até mesmo quando ele se envolveu com a Lucinha, a beldade de 18 anos da rua. Coisas de homem, ela dizia, como se aquilo fosse algo da natureza e, por isso, era mais forte que a razão do esposo. Odorico, no final das contas, era vítima do pobre destino da masculinidade. 

        Aos 38, Manu passara a vida aos pés do pai, do irmão e, há quase duas décadas, do marido. Ela havia sido muito bem adestrada pela mãe, que também o fora pela avó, que ainda carregava os ensinamentos da bisavó. Vida de mulher é assim mesmo e, dessa forma, Manu seguia a sua sina.

        Carregada de dores, tão comuns nas costas, nas pernas, nos pés, nos braços, a mulher sonhava com a hora da novela. Sim, pois esse era justamente o momento em que tirava tanto peso sobre os ombros e podia, então, se esparramar no sofá da sala sem mais nada para fazer até a manhã seguinte, quando o martírio recomeçaria. 

        É verdade que, vez ou outra, Odorico, preguiçoso como ele só, afundado naquela poltrona ao lado, esticava o braço. Manu sabia que era o sinal do desejo de mais uma latinha de cerveja. Ela se levantava, ia até a cozinha, abria a geladeira e retornava com a geladinha para satisfazer o desejo do senhor seu marido. Mas o que era isso perto de varrer, lavar, esfregar, passar, cozinhar? Brigar por ninharia era bobagem!

        Certa feita, Odorico quis porque quis fazer uma feijoada em casa. Convidou a vizinhança inteira. Pois é, inteira! Até a Lucinha, aquela beldade de 18 anos, agora com quase 19, compareceu. Foi um festival de pratos, talheres, copos! Tudo devidamente jogado pelos cantos da casa. 

        Manu, do alto de tamanha paciência, foi catando cada item e deixando sobre a pia da cozinha, que, àquela altura, estava abarrotada. Já ia começar a lavar, quando ouviu o chamado do Odorico. Ele queria mais uma cerveja estupidamente gelada. A mulher abriu a geladeira, pegou a tal latinha e foi em direção à sala, onde encontrou o marido de gracinha com a Lucinha. 

      A mocinha estava sentada no colo do Odorico. Manu, esposa mais que dedicada, deixou a latinha sobre a mesinha ao lado. Até o homem percebeu que havia passado dos limites. Tentou remendar, mas foi prontamente repelido pela mulher, que disse: "Fui ali. O dever chama aos berros!"

      Manu foi e, até onde se sabe, nunca mais voltou. Dizem que anda pelas bandas de Conde, município da Paraíba. Livre de tantas obrigações, parece que virou frequentadora assídua da praia de Tambaba, onde costuma desfilar toda sua nudez sem qualquer pudor. Ah, e a única geladinha que ela põe a mão é aquela que leva aos próprios lábios, enquanto as ondas da praia lhe lambem os pés. Aliás, pés descalços!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Paciência tem limite!" foi publicado pelo Notibras no dia 30/3/2023. Por solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/manu-deixa-odorico-com-gata-e-vai-curtir-praia/

domingo, 26 de março de 2023

ABL e redenção

        Não resta dúvida de que a Academia Brasileira de Letras já deu inúmeras bolas fora com indicações estapafúrdias. Todavia, também é certo que, em 2022, a ABL tenha acertado em cheio com as escolhas da Fernanda Montenegro e do Gilberto Gil. Aliás, dois nomes de peso, que, não seria exagero afirmar, rivalizam até com o mais imortal dos imortais, o gênio Joaquim Maria Machado de Assis.

         Cercada de politicagem desde sua fundação, a ABL deixou de fora nomes incríveis como, por exemplo, Júlia Lopes de Almeida, Graciliano Ramos e Mário Quintana. Ah, mas há tanta gente boa, que fica difícil alguém não ficar de fora, alguém poderia afirmar. Besteira, já que, até hoje, muitos dos que ali se sentam não merecem nem mesmo uma simples plaqueta de latão. 

            Outra questão sobre a ABL é que ela insiste em grafar o nome do Ruy Barbosa com "i" no lugar do "y". Um pouquinho de compostura em relação a esse sim imortal seria de bom tom. E, caso alguém tenha dúvida em relação à grafia correta, basta dar uma olhadinha na certidão de nascimento do renomado jurista baiano. Simples assim!

            No entanto, não estou aqui para só falar mal da ABL, pois, agora, ela está com crédito na praça. Os apaixonados pelas artes estão sorrindo de felicidade com as nomeações da Fernandona e do Gil. Pois é, esses dois fizeram com que o sarrafo fosse elevado até o nível que sempre deveria ser parâmetro de escolha para fazer parte desse clube de notáveis. Por isso, nada mais de marimbondos que sobrevoam pereiras, ainda que sobre o frescor marinho.

  • Nota de esclarecimento: O texto "ABL e redenção" foi publicado pelo Notibras no dia 26/03/2023.
  • https://www.notibras.com/site/imortais-ruy-e-com-y-esta-na-hora-de-corrigir/

Manicó, a minha Dogue de Bordeaux


        Gosto de acreditar que os cães nos protegem enquanto caminhamos pelas trevas. Se isso é verdade ou não, nem importa, mesmo porque eles são muito mais do que nossos protetores. Por isso, vou falar hoje de uma das mais gentis criaturas que tive o prazer de conviver por pouco mais de quatro anos. Seu nome? Bem, isso pode parecer controverso, pois a maioria das pessoas ainda hoje se refere a ela como Lilo. Já eu, que era muito mais íntimo, a chamava de Manicó. 

        Tudo começou bem antes do nascimento da Manicó, quando decidimos ter outro cão após vários anos da partida da Cuca, a nossa Bull Terrier. E lá estávamos tentando escolher uma raça, quando, então, fui atender um cliente. Por acaso, ele convivia com um casal da raça Dogue de Bordeaux, que eu já conhecia de longa data por conta do filme "Uma dupla quase perfeita", com o Tom Hanks. 

        Mal voltei para casa, falei sobre essa raça enorme. É mesmo gigantesca! Todos concordaram que aquela era uma ótima escolha. Então, a partir daí, fomos pesquisar onde poderíamos comprar uma cadelinha. Acabei encontrando um canil em São Paulo. Telefonei e o proprietário me disse que pretendia acasalar um lindo macho vindo da Polônia com uma das suas cadelas. Depois de algum tempo, tudo ficou acertado. Agora era esperar para ver se o cruzamento iria vingar e, por conseguinte, a nossa cachorra nasceria.

        Já na véspera do Natal de 2009, estava com as minhas filhas dentro do carro. Havíamos acabado de estacionar, quando o dono do canil me ligou e disse que a ninhada havia nascido. Oito filhotes, sendo três fêmeas. Uma era a nossa. Passamos o Natal falando mais da nossa futura amiga e nos esquecemos da festa. 

       Nos primeiros meses de 2010, eis que, finalmente, a Lilo chegou para nós. Foi uma alegria enorme! Aliás, Lilo foi o nome escolhido por minha filha mais nova. No entanto, com o passar dos meses, não sei por qual carga d'água, passei a chamá-la de Manicó. Seja como for, ela havia me adotado como favorito e, por isso, passou a atender muito bem quando a chamava. 

    A Manicó, quanto mais crescia, mais linda ficava. Tanto é que a minha filha mais velha disse para colocá-la em exposições. Apesar de tímida, a nossa Dogue de Bordeaux até que se saiu bem, pois sagrou-se campeã nacional depois de algum tempo. Entretanto, essa vida de passarelas não era algo que nos atraía, muito menos a Manicó parecia gostar. Então, esse capítulo foi virado sem o menor arrependimento. 

        Dorminhoca ao extremo, a Manicó, nem por isso, deixava de cumprir as suas funções de protetora. Ao menor ruído, lá ia aquele ser enorme dar uma olhada no portão e, em seguida, voltava para o conforto de sua almofada. O ronco ecoava por toda a casa.

      Outra curiosidade sobre a Manicó é que ela babava tanto, que, não raro, eu precisava trocar de roupa para ir trabalhar. Minhas filhas e até a minha esposa, a Dona Irene, ficavam esperando que eu desse uma bronca na Manicó. Que nada! Eu achava graça daquilo tudo, enquanto as três resmungavam pelos cantos dizendo que eu protegia muito a minha preferida. 

        Certo dia, no entanto, a Manicó foi picada por uma cascavel na fazenda que tivemos por alguns anos. Conseguimos aplicar uma dose de soro antiofídico que tínhamos, mas era insuficiente. Precisávamos de mais três, quatro ou mais doses. Coloquei a minha amiga no banco de trás da camionete e pegamos a estrada. Ela não resistiu e, ainda no caminho, nos deixou. Isso aconteceu no dia 05/09/2014.

        Não sei descrever o vazio que senti naquele momento. Ainda hoje é difícil olhar para trás e perceber que não fui capaz de salvar a Manicó naquele dia, mesmo eu sendo médico veterinário. Ela foi um dos seres mais gentis que tive o privilégio de conhecer. E como era linda!!!
  • Nota de esclarecimento: A crônica "Manicó, a minha Dogue de Bordeaux" foi publicada pelo Notibras no dia 28/08/2023.
  • https://www.notibras.com/site/manico-dogue-de-bordeaux-foi-se-com-cascavel/

quinta-feira, 23 de março de 2023

O pai do rock foi um péssimo caçador


    Um dia desses, quando estava jogando conversa fora com o meu amigo Marcio Petracco lá no cachorródromo do Tesourinha, aqui na aprazível Porto Alegre, eis que ele diz algo que me deixou com um monte de pulgas atrás da orelha: "Dudu, o pai do rock and roll foi um péssimo caçador lá das savanas africanas". 

      A princípio, imaginei que o meu amigo estivesse digerindo mais uma ressaca, até que ele prosseguiu com a sua tese de doutorado ao longo de mais de 40 anos de virtuose sobre os palcos da vida. Eu, um mero apreciador de música, decidi prestar atenção na fala do Marcio, mesmo porque estava com aquela tarde livre. Afinal, artista mais que tarimbado, o meu amigo entende muito mais de música do que eu. 

       _ Dudu, o lance é o seguinte. Saca berimbau?

        _ Sim, sei o que é. Aquele instrumento usado na capoeira.

        _ Exato! Tire a cabaça. O que dá?

        _ Um arco?

        _ Sim, muito bem, meu garoto!

        A tal tese do Marcio era sobre o berimbau ter surgido de um arco e flecha. Faz sentido, pelo menos para mim, logo que o meu amigo me disse que o primeiro instrumento de cordas nasceu depois que um caçador, aquele mesmo lá das longínquas savanas africanas, estava caçando, digamos, um antílope. Eis que ele erra o alvo, mas se surpreende com o som da corda, a única corda, que ecoa em seus ouvidos privilegiados. 

        Pois bem, para tornar a história mais interessante aos meus ouvidos, eis que o Marcio alcunhou aquele caçador malsucedido de Sol, uma das sete notas musicais. E lá estava o Sol, curioso como ele só, quando começou a tocar a corda do seu arco e flecha. Toca daqui, toca dali, começa a tirar ritmos e sons diversos, até que, usando sua capacidade criativa, resolve colocar a corda entre os lábios. Ele se surpreende com o som que ecoa por sua cavidade bucal. 

        Provavelmente o nosso amigo caçador precisava comer para sobreviver. Não dava para ele viver apenas de música. Isto é, até que um outro caçador, este muito bem-sucedido, gostou daqueles sons tirados pelo Sol. Vamos apelidar esse grande caçador de Talib.

        De tão bom caçador que era, Talib resolveu fazer um banquete para todo o povoado. Obviamente que precisava de música para o rega-bofe. Então, o Talib chamou o Sol, que, a essa altura, já havia incrementado seu arco com uma cabaça. Estava criado o berimbau!

        O sucesso foi tamanho, que a notícia daquela festança correu toda a savana africana. Sol ficou tão famoso, que a linda Zuri se interessou por ele. Casaram-se e tiveram seis filhos; Dó, Ré, Mi, Fá, Lá e a pequena Si. 

        O Marcio disse também que o nosso querido Sol deve ter incrementado seu berimbau com mais uma corda. Depois com três, quatro e assim por diante. E, se não foi o Sol, com certeza foi algum dos seus descendentes. Seja como for, o fato é que todos os instrumentos de corda são herdeiros do arco e flecha daquele péssimo caçador de antílopes lá das longínquas savanas africanas. 

        Confesso que gostei tanto da teoria do meu amigo, que hoje em dia não consigo ouvir "Johnny B. Goode" sem imaginar o velho Sol animando toda aquela gente há milhares de anos lá na África. Se isso aconteceu dessa maneira, não posso afirmar. Mas tenho certeza de que o Marcio, além de músico fantástico, é um excelente contador de histórias. Ele inclusive me confessou: "Dudu, isso que te contei não está documentado, mas é baseado em causo venéreo".

  • Nota de esclarecimento: A crônica "O pai do rock foi um péssimo caçador" foi publicada pelo Notibras no dia 24/3/2023.
  • https://www.notibras.com/site/berimbau-e-rock-vieram-das-savanas-africanas/
  • A crônica "O pai do rock foi um péssimo caçador" foi agraciada com a medalha de Mérito Cultural Poético no I Concurso de Contos, Crônicas, Poesias, de 2023, da Casa do Poeta Latino Americano - CAPOLAT.
  • Foi noticiado no início do mês de julho/2023, no Jornal Nova Bréscia, com circulação em todo estado do Rio Grande do Sul, a Cerimônia de Premiação do Concurso CAPOLAT de Contos, Crônicas e Poesias.


  • A crônica "O pai do rock foi um péssimo caçador" foi a ganhadora do concurso do Programa de Educação e Tutorial de Biblioteconomia e Ciência da Informação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), 2023.




  • A crônica "O pai do rock foi um péssimo caçador" foi publicada pela Revista The Bard 23ª Edição Jan e Fev 2024.
  • https://revistathebard.com/wp-content/uploads/2024/02/Revista-The-Bard-JAN_FEV-2024.pdf
  • https://revistathebard.com/cronicas-o-pai-do-rock-foi-um-pessimo-cacador-por-eduardo-martinez/






terça-feira, 21 de março de 2023

Assassinato na 415

O flagrante

        As batidas insistentes na porta do apartamento fizeram com que Marcelo despertasse. A cabeça doía tanto, que ele mal teve tempo de abrir os olhos quando um chute provocou um estrondo e a porta da sala foi arrombada. Em instantes, quatro policiais entraram no quarto, todos apontando as armas para o homem, que acabara de acordar. Sem entender aquilo tudo, Marcelo olha para o seu lado e vê a esposa coberta de sangue. 

        Marcelo, ainda atônito, é algemado e arrastado para fora do apartamento. Logo em seguida, é jogado no cubículo do camburão. A sirene é ligada e a viatura arranca para a delegacia que, por sinal, era a mesma em que ele trabalhava. O agente de polícia Marcelo, pela primeira vez na vida, sentia como era viver do outro lado daquela situação. 

     Aquele pesadelo ainda estava sendo digerido pelo policial. Por que Susana estava toda ensanguentada? O que havia acontecido? A única coisa que ele se lembrava é de que os dois estavam na casa de um amigo comemorando a virada do ano. A sua esposa estava morta? Pelo visto, sim! Mas quem teria feito aquilo? Ele? 

         Marcelo sabia que os dois passaram a noite bebendo bem além da conta, mas jamais havia sido violento com Susana. É certo que, como todo casal, tinham lá seus problemas. Todavia, nada que levasse a crer que ele pudesse matar a esposa. 

         De tão atordoado, ele não conseguia entender as perguntas que o delegado Miranda lhe fazia. No fim das contas, Miranda determinou para o escrivão Rafael que o autuado iria fazer uso do seu direito constitucional de permanecer calado e só se manifestar em juízo. Sem reação, Marcelo foi levado para uma cela, onde ficou sozinho pelo resto da manhã. 

        O estresse era tanto, que, completamente sem forças, acabou adormecendo no chão gelado. Os colegas que passavam diante da cela não acreditavam que Marcelo, com mais de 20 anos como agente de polícia, havia assassinado a sangue frio a própria esposa. A frieza fora tamanha, que Susana havia sido esfaqueada três vezes. A mulher não tomara mais golpes simplesmente porque a faca se alojara no esterno. 

Presídio

        Marcelo estava preso há quase um mês. Ele dividia a cela com outro policial. O seu companheiro de cativeiro era Gomes, um policial que havia sido condenado por tráfico de drogas. Não se conheciam desde então, apesar de trabalharem no mesmo órgão. Aliás, por conta da condenação, Gomes havia sido expulso da polícia, mas desfrutava as regalias de uma cela especial por conta de ter sido policial. Se fosse colocado com os presos comuns, certamente não duraria muito.

        Apesar de confinado com Gomes, Marcelo não pretendia se tornar amigo dele. Não que carregasse em si o bastião da moralidade. Pelo contrário, pois sabia que, muitas vezes, o trabalho de policial o colocava na tênue linha entre a lei e a criminalidade. No entanto, não sentiu qualquer empatia pelo agora colega de quarto. Este, por sua vez, de vez em quando puxava assunto dos mais variados. Marcelo apenas observava e sorria um sorriso amarelo para manter as aparências. Ademais, Gomes lhe proporcionava um dos parcos prazeres naquele cubículo. É que ele era um especialista no preparo do café.  

           A lembrança de Susana o acompanhava a todo instante. Por que ele teria feito aquilo com ela? Por quê? Teria mesmo sido ele? Tudo indicava que sim, mas ele não se lembrava de nada. Havia bebido muito naquela noite, mas não tanto assim. Talvez uma dúzia de copos de cerveja, duas ou três doses de caipirinha. Não era tanta coisa assim para alguém acostumado aos efeitos do álcool. E foram raras as vezes que ele se esquecia das coisas depois de uma noite de bebedeira. E olha que Marcelo havia tido outras muito mais intensas.

        Entretido nos seus pensamentos, Marcelo foi despertado pela voz rouca do colega. O braço esticado lhe oferecia uma xícara do café, cujo aroma tomou todo o ambiente. Ele pegou a xícara e a colocou entre as duas mãos. Sentiu o calor, assoprou e bebeu um pouco. Agradeceu. 

          Antes que pudesse terminar de beber, o policial foi interrompido pelo carcereiro, que lhe disse que havia visita. Até então, ninguém havia ido lhe ver, a não ser o advogado, que, na verdade, não lhe deu muitas esperanças. Marcelo, entretanto, pareceu não ligar muito para o próprio futuro, pois estava quase convencido de que era mesmo culpado daquilo tudo. 

          _ Quem é?

          _ Dois canas. 

         Marcelo, em silêncio, acompanhou o carcereiro até uma salinha. Lá estavam Pedro e Gustavo, seus companheiros de seção. Os dois haviam relutado em visitar o colega. Ainda não tinham digerido aquela situação, mas algo os impulsionou até o presídio. 

          _ Por que você não nos contou? 

          _ Contou o quê, Pedro?

          _ Sobre o cara que tava saindo com a Susana?

          _ E o que isso tem a ver? 

          _ Pô, Marcelo, bastava terminar com ela. Não precisava ter feito aquilo - disse Gustavo.

       Marcelo olhava para os rostos diante de si. Ele sabia que a esposa estava tendo um caso com alguém, mas não sabia quem. Na verdade, depois de tantos anos de casados, ele até achava melhor, pois também nunca havia sido um marido fiel. Ele, secretamente, também mantinha um relacionamento de quase dois anos com Mariane, uma colega de outra delegacia. Quanto ao próprio casamento, Marcelo e Susana, apesar da falta do fervor dos primeiros anos, ainda se deitavam juntos, especialmente durante as solitárias noites na capital do país. 

        _ Gustavo, juro pra você que não me lembro de nada. Já tentei remontar aquela noite, mas tudo para justamente depois que a Susana disse que queria ir embora. Me lembro de que estávamos cansados, bebemos um pouco, mas não muito mais que de costume. Deixamos o carro lá, isso eu sei. Ela pediu um Uber. Essa é a última coisa que me lembro. Nem da gente chegando em casa me lembro. Nada. Nada mesmo! Quanto ao amante da Susana, sabia por alto. Na verdade, a gente pensou até em se separar há algum tempo. Mas o padrão de vida iria cair demais para nós dois. Além disso, a gente se dava muito bem em vários aspectos. Então, preferimos continuar. 

       Gustavo e Pedro escutaram atentamente a confissão do amigo. Seja como for, eles, que haviam chegado cheios de certezas, saíram dali repletos de dúvidas. Apertaram a mão de Marcelo e, calados, foram embora. 

Caso encerrado

        O delegado Miranda estava entretido com mais um dos inúmeros inquéritos, quando Pedro e Gustavo entraram na sua sala. Miranda, um dos mais polidos policiais da corporação, atendeu os colegas com um largo sorriso. Eles queriam saber como andavam as investigações do caso do assassinato de Susana. O delegado deu um suspiro de consternação.

        _ Infelizmente, tudo leva a crer que foi mesmo o Marcelo.

        _ Podemos dar uma olhada no inquérito, doutor?

        _ Claro, Pedro. Mas já vou avisando que tentei achar até chifre em cabeça de cavalo. 

        Miranda entrega aquele monte de papéis para os policiais. Estes folheiam aquilo tudo, na ânsia de que pudessem encontrar algo que colocasse em dúvida a culpa do colega. Muita coisa para olhar em poucos minutos. Pedro olha para o delegado, mas antes que pudesse dizer uma palavra, Miranda lhe diz que pode tirar uma cópia.

        Pedro e Gustavo, diante da copiadora, se entreolham. Os dois não sabem se aquilo tudo servirá para reverter a complicada situação de Marcelo. Todavia, eles sabem que precisam fazer algo, mesmo que seja para descobrir que o colega é mesmo o autor do assassinato de Susana. 

        Depois de tirarem cópia de todo o inquérito policial, os dois retornam à sala de Miranda. Este ainda lhes oferece um café. Eles aceitam, um pouco por hábito, um tanto mais por conta de buscar informações que, por ventura, não tenham entrado nos autos. 

        _ Sei que vocês são amigos do Marcelo, mas não consegui enxergar alguma pista que levasse a outro autor. Tudo aponta para ele. Infelizmente, é isso.

        _ Entendo, doutor - disse Gustavo.

        _ Mesmo assim, muito obrigado, doutor - agradeceu Pedro.

        _ Disponham sempre, rapazes. Mas, até onde consegui enxergar, esse caso está encerrado.

Flavio, o dono da festa

      Depois de horas debruçados sobre o inquérito policial, Pedro e Gustavo decidiram conversar com Flavio, que era o dono da casa onde Marcelo e Susana haviam passado a virada de ano. Ele morava em uma bela casa localizada no condomínio Mansões Entre Lagos, no Paranoá. 

    O encontro foi marcado para uma tarde de quarta-feira. Assim que os policiais entraram na residência, foram recebidos por um homem enorme com um sorriso estampado no rosto. A aparente felicidade, todavia, logo foi trocada por um ar de consternação, já que Flavio, amigo de longa data de Marcelo, não conseguia entender o motivo dele ter matado Susana. 

        _ Inacreditável! O Marcelo e a Susana sempre se deram tão bem. 

        _ Você se recorda como eles estavam no réveillon? - perguntou Pedro.

        _ Estavam ótimos! Os dois pareciam se divertir muito, ainda mais a Susana. Ela era linda, sempre muito gentil com todos. 

        _ Eles não falaram nada de diferente? - Gustavo quis saber.

      _ Não que eu me lembre. A minha casa estava cheia naquele dia. Pra falar a verdade, trocamos algumas palavras, mas logo os dois foram se sentar ali naquele canto. Eles passaram a noite praticamente ali.

       _ Beberam muito? - Gustavo perguntou.

      _ Creio que como todos nós naquele dia. Sei que eles deixaram o carro aqui e pediram um táxi ou um Uber.

      _ Vi que você tem câmeras no portão e na lateral. Por acaso ainda tem as imagens daquele dia? - perguntou Pedro.

       _ É possível. Vamos ali verificar?

      Flavio e os policiais entram numa salinha onde há uma pequena aparelhagem. Em pouco mais de 20 minutos conseguem localizar o momento exato que Marcelo e Susana entram em um Gol branco. Conseguem anotar a placa.

     Pedro e Gustavo agradecem o amigo de Marcelo pela disponibilidade de tempo. Logo estão a caminho da delegacia, onde algumas investigações os esperam. Os dois não poderiam simplesmente abandoná-las para tentar solucionar um caso praticamente sacramentado como o de Marcelo, por mais amigos que fossem dele.

O motorista de Uber

        Depois de um expediente exaustivo, Gustavo fez uma breve pesquisa sobre o tal Gol. O veículo estava em nome de Maria de Fátima Silva dos Santos, uma mulher de 64 anos. Ele entrou em contato com ela, que se comprometeu a ir até a delegacia no dia seguinte às 14 h. 

        Pontualmente, lá estava aquela senhora diante do balcão da delegacia. Ela disse que o policial Gustavo a estava aguardando. Em menos de dois minutos, ela era levada até a sala de Gustavo e Pedro, que já a aguardavam.

         O interrogatório não durou muito, pois os policiais logo perceberam que Maria de Fátima não era a proprietária do veículo há quase um ano. Ela o havia vendido para um rapaz chamado João Carlos de Almeida Júnior, que, por acaso, morava ali perto da delegacia. 

       Gustavo e Pedro, depois de agradecer e dispensar a mulher, se dirigiram até a residência de João Carlos. Por sorte, conseguiram interceptá-lo quando ele estava entrando no Gol. O homem tomou um susto, pois imaginou ser um assalto, mas essa primeira impressão foi substituída por outra, a desconfiança.

        _ O que vocês querem comigo?

        _ Pode ficar tranquilo, João Carlos. Só queremos conversar um pouco sobre uma corrida que você fez - disse Pedro.

        _ Que corrida?

        _ Vamos até a delegacia, que explicaremos tudo - Pedro concluiu.

      Já na delegacia, os policiais explicaram para João Carlos, vulgo JC, sobre as investigações. O motorista, a princípio, disse não se lembrar dessa corrida, mesmo depois de Pedro lhe mostrar fotografias de Marcelo e Susana. No entanto, o corpo de JC começou a ficar inquieto, seu rosto virava de um lado para outro, como se algo o estivesse incomodando. 

        Gustavo e Pedro se entreolharam e, naquele exato momento, perceberam que o motorista sabia de algo. Os dois, apesar de serem canas tarimbados, não gostavam de utilizar a velha tática do policial bom e do policial mau. Preferiram, naquele caso, fazer uso de outra forma de psicologia. 

        _ JC, já sabemos de quase tudo. Só precisamos juntar uma pecinha ou outra pra solucionar o caso. Se você quiser colaborar, ótimo. Mas se você se recusar, a coisa pode se voltar ainda mais contra você - disse Gustavo.

        _ Não tenho nada a ver com isso.

        _ Nós sabemos disso, JC. Mas só você pode nos contar o que aconteceu - Pedro instigou.

        _ Quer um copo d'água? - perguntou Gustavo.

        O motorista fez que sim com a cabeça, enquanto o policial saiu da sala e, logo depois, voltou com um copo e uma garrafa de água. JC, depois de umas boas goladas, respirou fundo e desembuchou tudo o que sabia. Ele havia pego Marcelo e Susana na casa do condomínio Mansões Entre Lagos. Estava a caminho da quadra 415 Norte, quando, já no Lago Norte, teve o veículo parado por dois veículos, supostamente da polícia, pois ambos usavam luzes e sirenes. 

        Depois de parar, seis homens retiraram o casal do banco de trás. Marcelo estava desacordado, mas Susana tentou resistir, mas foi contida pelos homens. Eles foram colocados cada um em um dos veículos, que depois arrancaram. JC disse que ainda ficou no local, já que suas pernas tremiam mais que vara verde. Depois foi direto para casa, pois ficou muito assustado para continuar trabalhando. Na verdade, disse ele, não trabalhou por quase uma semana após o ocorrido.

        _ Quais veículos? Conseguiu anotar as placas?

        _ Sei que um era uma Hilux preta. O outro era um Golf prata. A placa não lembro, mas sei que a da Hilux começava com JLX ou JIX. 

        _ E os rostos? Você consegue se lembrar dos rostos?

        _ Não. Tudo foi muito rápido. Mas um deles era bem alto, talvez 1,90 m ou até mais. Era desses caras bombadões, tipo de academia. 

        _ Como era o rosto dele?

        _ Acho que meio comprido. Ah, ele era ruivo! 

        _ Ruivo?

        _ Sim! O cabelo bem vermelho! 

      Por mais perguntas que os policiais fizessem, as respostas continuavam as mesmas. Várias fotografias foram mostradas para JC, que não reconheceu ninguém. Diante dessa mesmice, Pedro e Gustavo concordaram em liberar o motorista de Uber. Seja como for, eles, agora, estavam certos de que Marcelo havia sido vítima de um plano para incriminá-lo. Mas por quem? Marcelo teria inimigos?

Frustração e golpe de sorte

        Pedro e Gustavo fuçaram todos os sistemas da polícia, mas nada de encontrar o tal ruivo bombado. De tanto falarem nesse homem, acabaram por dar-lhe a alcunha de Vermelho. Pesquisaram em vários sites de adeptos da musculação, mas ninguém batia com as características daquele sujeito. Pensaram até em intimar novamente o motorista de Uber. Talvez ele tivesse inventado aquela história.

        Os dias foram se tornando semanas e, depois de quase um mês de investigações, a frustração os tomava por completo. Decidiram deixar a poeira abaixar e se concentrar em uma investigação que Marcelo estava trabalhando. Era sobre uma quadrilha de traficantes de drogas.

        Pedro pegou a pasta das investigações. Marcelo não havia contado aos colegas sobre o caso, mas os dois desconfiavam de que era algo grande, pois, não raro, ele ficava até mais tarde na delegacia. Por um momento, Pedro ficou olhando aquelas páginas repletas de informações. Antes de começar a leitura, decidiu pegar um pouco de café. 

        Gustavo. a princípio sem muita animação, começa a folhear o enorme arquivo.  Ele mal lê o que está escrito. O policial até pensa que está precisando de umas férias, tamanho o estresse desde o assassinato de Susana. No entanto, assim que ele vira uma das inúmeras folhas, eis que se vê diante do maior golpe de sorte de toda a sua carreira na polícia. Quase ao mesmo tempo, Pedro, com dois copos nas mãos, entra na sala. Ele estranha o amigo, que está com um sorriso maior que a própria cara.  

        _ O que aconteceu? Por que está com essa cara de Coringa?

        Gustavo aponta para o arquivo. Lá estão as fotos de dois automóveis, uma Hilux preta e um Golf prata. A placa da Hilux começava pelas letras JLX.

O proprietário dos automóveis

        Para surpresa de Pedro e Gustavo, a Hilux e o Golf eram de propriedade de um empresário conhecido de todos, pois também era um político famoso por ser o bastião da moralidade. Ele era proprietário de uma franquia da famosa rede de chocolates, a Estocolmo. Seu nome? Justus Dourado Flecha, deputado distrital. 

        Uma coisa que chamou a atenção dos policiais foi o enorme faturamento da loja de Dourado Flecha, muito acima das demais franquias do país. Além disso, mais de 90% das vendas era em dinheiro vivo. Pela enorme experiência de Pedro e Gustavo, não restava dúvida de que aquilo não era apenas fumaça de lavagem de dinheiro. Era flagrante caso de incêndio em toda a capital do país.

         Diante de tais provas, Pedro e Gustavo precisavam prosseguir as investigações feitas por Marcelo. E foi o que decidiram fazer naquele mesmo dia. Estavam decididos a levar aquilo às últimas consequências, mesmo que fosse preciso enfrentar o poderoso Dourado Flecha. Eles tinham a obrigação de fazê-lo, mesmo porque Marcelo havia sido incriminado por algo que não tinha feito. Disso, agora mais do que nunca, eles tinham certeza.

        Naquela mesma noite, os dois agentes se deslocaram até a esquina da residência de Dourado Flecha, bem ali no caríssimo Lago Sul. Apagaram os faróis antes de estacionaram a viatura descaracterizada. Ficaram observando o entra e sai de várias pessoas. Acabaram adormecendo.

        Já era de manhã quando Pedro e Gustavo foram despertados por um policial militar batendo no vidro do carro. Pedro abaixa o vidro e vê uma arma apontada para a sua cabeça. Antes que pudesse falar alguma coisa, o policial militar, que estava acompanhado de mais três, manda que eles desçam do veículo e se deitem no chão.

       Pedro e Gustavo obedecem, ao mesmo tempo em que dizem que são da casa, um código para demonstrar que também são policiais. O policial militar tira as carteiras dos bolsos dos dois e, então, percebe que não haviam mentido. Nisso, um homem enorme surge no portão da luxuosa mansão de Dourado Flecha. Pedro e Gustavo o encaram e, em seguida, se entreolham. PC, afinal, não havia mentido.

        Vermelho

        Depois da abordagem que levaram, Pedro e Gustavo decidiram que o melhor era sair o mais rápido possível dali. Eles já haviam sido descobertos e de nada adiantaria continuar bisbilhotando a residência do deputado distrital Dourado Flecha. Entraram na viatura e foram fazer o desjejum numa padaria na Asa Norte. 

        Sentaram numa das mesas fora do estabelecimento. Pedro, mais ansioso, comeu seu pão na chapa em três mordidas, enquanto Gustavo, quase sempre comedido, bebericava seu café preto. Os dois, no entanto, estavam com a mente a mil, pois sabiam que estavam mexendo em um vespeiro. Sabiam que, a partir daquele momento, corriam perigo, pois certamente as suas identidades haviam sido descobertas. Aliás, isso se Dourado Flecha já não sabia as conhecia, pois os dois trabalhavam com Marcelo há quase cinco anos. 

        Era óbvio para os agentes que o deputado distrital quis tirar Marcelo do seu caminho. Pelas investigações, Pedro e Gustavo sabiam que era questão de tempo para conseguir provas robustas para o indiciamento de Dourado Flecha. Eles sabiam que tal tarefa não seria fácil, pois estavam enfrentando não um ladrão de galinha, mas um dos mais poderosos políticos do Distrito Federal. 

        Pedro e Gustavo logo perceberam que precisavam de ajuda. Mas em quem poderiam confiar? Pensaram no delegado Miranda e no escrivão Rafael, justamente os dois que estavam de plantão no dia da prisão de Marcelo. Pedro conhecia os dois há mais tempo, pois havia trabalhado com eles em algumas operações. Gustavo, sem melhores opções, concordou com o colega. 

        A despeito das possíveis ajudas de Miranda e Rafael, algo não saía da mente dos agentes. Agora que sabiam que Vermelho existia, quem, afinal, era ele? Antes que os agentes pudessem pensar em algo para descobrir a identidade daquele homem enorme, eis que a atendente lhes trouxe a conta. Eles pagaram e foram andando até a viatura.

        Pedro, com vontade de fumar, acendeu um cigarro. Ele estava tentando parar com aquele vício há um tempo, mas sua rotina intensa de trabalho provocava o efeito inverso. Encostado na frente da viatura, ele soltava aquelas baforadas quando, de repente, teve uma ideia.

        _ Já sei!

        _ Sabe o quê?

        _ Lembra da Evelina?

        _ Sim. O que tem ela?

        _ O marido dela trabalha na Câmara Legislativa.

      A agente de polícia Evelina era lotada em uma delegacia em Sobradinho. Pedro e Gustavo marcaram um encontro com a policial naquele mesmo dia. Sem entrar em muitos detalhes, contaram que precisavam saber quem era o tal Vermelho. Ela disse que iria conversar com o marido, que deveria dar um jeito de descobrir. Os agentes agradeceram e se despediram da colega.

        Cansados, cada um foi para a sua casa. Pedro morava em Águas Claras com a esposa, Rafaela, e o filho de dois anos, Charlie. Gustavo, solteirão convicto até onde a namorada permitisse, morava na Asa Norte com Haya, uma cachorra da raça Bull Terrier.

      Já passava das 20 h quando Pedro e Gustavo receberam, ao mesmo tempo, uma mensagem de whatsapp. Era Evelina, que dizia: "Archibald Lorenzo de Pádua, nascido em Londrina-PR, 28/04/1979, assessor do deputado Justus Flecha Dourado". Afinal, Vermelho possuía nome e sobrenome. Entretanto, continuou a ser chamado de Vermelho pelos agentes. 

        Miranda e Rafael

       Dois dias após descobrirem a identidade de Vermelho, os agentes, com todas as provas disponíveis, marcaram uma reunião com Miranda e Rafael. Tanto o delegado como o escrivão ficaram perplexos com a reviravolta do caso do assassinato de Susana. A perplexidade, todavia, veio acompanhada de uma imensa dose de alívio, pois todos ali se sentiam extremamente abalados quando um policial era acusado de um crime. Não que fossem ingênuos de acreditar que todos eram cumpridores da lei, mas um caso envolvendo alguém tão próximo mexeu com o sentimento deles. 

     Miranda, que havia sido o relator do inquérito contra Marcelo, sabia que a mera palavra do motorista de Uber não seria suficiente para livrar a cara do colega. O fato de haver várias provas de envolvimento de Dourado Flecha com o tráfico de drogas não o colocava como mandante daquela armação toda contra Marcelo. Eles precisariam de provas! 

    Rafael, assim como Miranda, era um especialista em direito penal e direito processual penal. Ele dava aulas em um cursinho preparatório para concursos públicos. Por isso, ele concordou com o pensamento do delegado. Seja como for, os quatro teriam que pensar em conjunto para livrar Marcelo das acusações injustas e, se possível, conseguir prender Flecha Dourado e toda a corja que o rodeava.

       Os quatro homens da lei concordaram que deveriam buscar câmeras entre o trajeto da casa de Flavio até o apartamento de Marcelo. Essa missão ficaria a cargo de Pedro e Gustavo, enquanto Miranda e Rafael iriam se debruçar sobre as investigações para tentar encontrar algo que pudesse ser útil. 

        Os agentes fizeram e refizeram o caminho mais provável do trajeto feito entre as duas residências. Anotaram cada câmera. Depois fizeram trajetos alternativos que, por ventura, poderiam ter sido tomados pela Hilux e pelo Golf. Todas essas informações foram passadas para Miranda, que expediu uma ordem para averiguar as imagens captadas por cada uma delas. Nada! Nenhuma imagem dos veículos. O tempo corria contra Marcelo, que continuava trancafiado naquela cela fria da Papuda. 

Mariane

        Aquela mulher andava cabisbaixa desde que soube da prisão de Marcelo. Ela, que era agente de polícia há quase dez anos, conhecera o colega durante uma operação policial há quase quatro. Trocaram telefones e, depois de algum tempo, começaram a se relacionar. 

        Mariane sabia que Marcelo era casado. Ela, que se arrastava em um relacionamento sem futuro com o até então namorado, caiu nos braços do colega depois de se encontrarem, quase por acaso, em um famoso bar da Asa Sul. Amaram-se sem juras de amor eterno. O caso, que parecia não ter muito futuro, acabou se prolongando até a prisão de Marcelo.

        Lotada em uma delegacia da Ceilândia, a agente morava perto do apartamento do amante. Para ser mais preciso, na quadra 216. Isso, aliás, a fez esbarrar com Marcelo e Susana ali no parque Olhos D'Água, onde costumava fazer caminhadas para espairecer da pesada rotina policial. 

        Excelente investigadora que era, Mariane se lembrava com detalhes da primeira vez que viu a esposa de Marcelo. Os cabelos quase pretos, os olhos grandes de um tom castanho mais claro que os seus. Pouco mais alta que ela, mas não chegava a 1,70, talvez uns 65 kg, vestia uma regata laranja e uma calça de ginástica azul escuro. Tênis preto com duas faixas brancas ao lado. O batom discreto, um rosa bem clarinho. A bonita Mariane, apesar de mais jovem, sentiu uma ponta de ciúme da bela esposa do amado. 

        No final do expediente, Mariane sentiu vontade de ir até o edifício de Marcelo. Estacionou o carro bem em frente à portaria do amante. Um turbilhão de emoções a tomou por completo. Desabou em um choro copioso. 

        Ficou por ali durante quase uma hora. Exausta, decidiu ir embora. Ligou o carro e, já quase saindo, percebeu a chegada de um veículo. Ela logo reconheceu os dois ocupantes. Não que os conhecessem, mas já os havia visto, inclusive através de fotografias mostradas por Marcelo. Eram Pedro e Gustavo. 

        Mariane desligou o carro e ficou observando os dois agentes. Eles pararam o automóvel quase ao lado do seu. Desceram, olharam para o prédio de Marcelo, que morava no primeiro andar. Depois observaram o edifício em frente. Os dois pareciam querer encontrar algo que, talvez, tivesse passado despercebido pela investigação. Isto é, caso as investigações tivessem se preocupado com algo ocorrido do lado de fora da cena do crime. 

        A mulher sentiu vontade de descer e conversar com os seus colegas de profissão. Ela, no entanto, controlou seus impulsos e, depois de mais mais minutos, ligou o veículo e foi embora. Mal chegou em casa, pegou uma lata de cerveja na geladeira e se deitou na rede na sacada. De frente para o Lago Paranoá, a agente começou a desconfiar que aquele crime talvez tivesse motivos muito mais profundos que uma mera briga de casal. 

Gilmar e o traficante

         O escrivão Gilmar mal entrou na delegacia do Paranoá e percebeu que aquele plantão noturno seria muito mais longo que o esperado. Quatro viaturas da polícia militar paradas no local, vários policiais aguardando a sua vez. Qual seria o primeiro flagrante? 

        O delegado Antônio Eduardo, que estava cobrindo um colega naquela noite, olhou para Gilmar. Disposto a meter logo a mão na massa, chamou a primeira guarnição, que trazia um caso de violência doméstica. Pouco mais de 30 minutos, passou para o seguinte. 

         A situação era de tráfico de drogas, mais precisamente maconha. Uma bela quantidade, diga-se de passagem, mas nenhum comprador conduzido. Isso, aliás, não seria empecilho para tombar o flagrante. Isto é, não seria se tal fato não tivesse acontecido. O traficante, velho conhecido, pediu para "ter um particular" com o Gilmar. Não que o escrivão fosse amigo do criminoso, mas já o conhecia de outras prisões. 

      Gilmar pediu para dois agentes levarem Cristiano, vulgo China, até a sua sala. O traficante foi algemado à cadeira em frente à mesa do escrivão.

        _ Seu Gilmar, sei que caí bonito. Mas tenho uma coisa que talvez interesse o senhor.

        _ Tá querendo me subornar, China?

        _ Claro que não, seu Gilmar! 

        _ Qual é o caso, então?

        _ Sei quem matou a mulher daquele cana.

        _ Que mulher? Que cana?

        _ O tal da Asa Norte. O que tá preso.

        _ E quem foi?

        _ Preciso da sua palavra de que vai interceder por mim nessa parada de agora.

        Gilmar olha bem nos olhos do traficante. Ele sabe que muitos bandidos utilizam de falsas delações para serem beneficiados. No entanto, o escrivão decidiu acreditar no China. Foi até a sala ao lado e chamou o delegado. Contou-lhe o que acabara de ouvir. 

        _ Sério?

        _ Parece que sim, doutor. 

    Logo depois, lá estava o China diante do delegado e do escrivão. Com a promessa de desqualificar o possível tráfico para uma simples posse de entorpecente para uso próprio, China decidiu contar tudo o que sabia. 

        Na madrugada do primeiro dia do ano, ele estava fazendo seu comércio costumeiro no final da Asa Norte. Um grande cliente, que morava no prédio em frente ao de Marcelo, o havia chamado para uma entrega. China, que gostava de atender com presteza sua clientela VIP, foi até o apartamento do tal comprador. E foi justamente quando ele estava lá que pararam dois carros, uma Hilux preta e um Golf prata. 

        China fez uma pausa para ver se o delegado e o escrivão continuavam interessados. Pegos como moscas no mel, os policiais quiseram saber o que aconteceu depois disso. O traficante, então, disse que saíram seis homens dos veículos. Eles arrastaram um homem e uma mulher. Eles subiram até o apartamento do primeiro andar. 

        _ Como você sabe disso? - perguntou Antônio Eduardo

        _ É que a luz do apartamento foi logo acesa. 

        _ E daí? O que aconteceu depois disso? - o delegado quis saber.

        _ O que aconteceu, não sei. As cortinas estavam fechadas. Só sei que os seis homens desceram depois de alguns minutos e foram embora.

           _ Anotou as placas dos carros? - o delegado perguntou.

           _ Nem precisei fazer isso.

            _ Por quê? - Gilmar perguntou.

            _ Tá tudo filmado, seu delegado.

           China havia gravado tudo no seu celular. No entanto, com receio de que aquilo pudesse lhe trazer problema, criou um e-mail e enviou o arquivo. Ele mostrou o vídeo para o delegado e o escrivão. Os policiais se entreolharam e sorriram. O acordo iria ser cumprido. 

          Antônio Eduardo chamou os policiais militares e disse que a situação não seria de tráfico de drogas, pois não havia filmagem nem comprador. Eles nem questionaram a decisão do delegado, pois sabiam que ele era a autoridade policial e, portanto, decidia pela tipificação criminal. 

A reunião

        Apesar de viver em um ambiente cheio de vaidade, o delegado Antônio Eduardo não era alguém enfeitiçado por esse pecado. Gilmar, por sua vez, era ainda mais discreto, sempre buscando aparecer o menos possível. Talvez por isso, os dois pensaram quase ao mesmo tempo em entrar em contato com o delegado Miranda, que havia sido o relator do inquérito que apurou o assassinato da esposa de Marcelo.

       Coube ao delegado telefonar naquele mesmo instante para Miranda, que estranhou a ligação àquela hora da noite. Ele, que estava dormindo, pensou até em não atender quando viu que era Antônio Eduardo do outro lado da linha. Não eram necessariamente amigos, apesar da boa e sempre cordial relação. Atendeu!

     Miranda, de tão eufórico que ficou com a informação, levou horas para voltar a pegar no sono. Marcaram para o dia seguinte na delegacia da Asa Norte. Ele telefonou para Pedro, Gustavo e Rafael para convocá-los para a reunião extraordinária às 14 h. Em ponto!

        Ninguém se atrasou para o encontro. Lá estavam todos os seis policiais. Depois dos cumprimentos, todos se sentaram. Antônio Eduardo e Gilmar, depois de mostrarem o vídeo onde apareciam claramente Marcelo e Susana sendo arrastados, ficaram surpresos de que os colegas já supunham tal acontecimento. 

        Pedro se encarregou de contar toda a investigação feita por Marcelo, bem como a que ele próprio e Gustavo haviam feito. Rafael foi o primeiro a falar que agora eles tinham provas mais do que suficientes para inocentar Marcelo. Miranda e Antônio Eduardo concordaram com o escrivão. 

    Miranda, que tinha ótimo trâmite com o Ministério Público, marcou um encontro para aquele finalzinho de tarde. Com uma pasta cheia de provas e um vídeo revelador, não foi difícil o delegado convencer o promotor a pedir o arquivamento da denúncia contra o agente de polícia Marcelo. Este foi posto em liberdade no dia seguinte.

       Vermelho e seus comparsas foram denunciados e tiveram as prisões preventivas decretadas. Quanto ao mandante, usando de toda a sua força política, conseguiu evitar ser preso por um tempo. No entanto, após alguns meses, também teve a prisão preventiva decretada, mas não foi encontrado. As buscas continuam e, dizem, Justus Dourado Flecha teria fugido para os Estados Unidos. Não se sabe ao certo se para Miami ou para Orlando.

Aposentadoria

     Marcelo retornou ao trabalho no mês seguinte. Apesar de ter vivido naquele ambiente por mais de duas décadas, se sentia um estranho. Pedro e Gustavo, seus companheiros de tantos anos, perceberam que algo havia mudado no amigo. Mesmo assim, preferiram guardar para si aquele sentimento. 

     Em casa, o policial não conseguia se adaptar àquele apartamento. Susana não lhe saía da cabeça. Tanto é que ele nunca mais conseguiu dormir no mesmo quarto que dividiram por anos. Preferia se deitar no sofá da sala e, solitário, passar as noites sem fim. Nem Mariane, com quem voltara a se relacionar, conseguiu aplacar as feridas invisíveis que Marcelo carregava desde a virada do ano novo.

     Aconteceu logo pela manhã depois de mais uma noite sem conseguir dormir. Sentado no sofá, as mãos segurando a cabeça envolta em um turbilhão de ideias, que Marcelo encontrou a solução ou, ao menos, o que ele imaginou ser o melhor caminho. E. antes que mudasse de ideia, telefonou para seus colegas de seção e marcou um encontro para daqui a pouco.

    Pedro e Gustavo estranharam aquela ligação pouco antes do amanhecer, mas aceitaram o convite sem pestanejar. Sabiam que o colega havia passado por momentos difíceis e, cismados, correram até o apartamento da 415 Norte. Mal entraram, foram recebidos por Marcelo, que havia preparado um delicioso café gourmet. 

    _ Muito bom! - elogiou Pedro.

    _ Obrigado! Fazer café foi uma das coisas que aprendi na prisão.

    Marcelo contou aos amigos que iria se aposentar. Ele, com tempo de sobra, havia relutado por anos, talvez por medo do futuro. Agora, no entanto, ciente de que não tinha qualquer vocação para herói, queria ficar o mais longe possível daquele mundo de mocinhos, bandidos e tantos outros personagens.

    Não demorou muito, sua aposentadoria foi publicada Diário Oficial do Distrito Federal. Vendeu o apartamento e viajou para João Pessoa, a aprazível capital da Paraíba. Gostou tanto do lugar, que decidiu ficar por uma temporada. 

     Em pouco tempo, visitou Tambaba, a famosa praia de naturismo em Conde, município próximo. A princípio ficou receoso de tirar a roupa, mas, decidido, foi adiante. Marcelo queria não apenas se despir de suas vestes, mas de toda aquela vida que havia deixado para trás. 

Fim   


Nota de esclarecimento: O conto "Assassinato na 415" saiu no formato de folhetim no Notibras do dia 07/03/2023 até o o dia 21/03/2023, conforme abaixo enumerado: 

1) https://www.notibras.com/site/policia-flagra-policial-e-tenta-corrigir-o-erro/

2) https://www.notibras.com/site/marcelo-preso-recebe-visitas-de-dois-policiais/

3) https://www.notibras.com/site/caso-encerrado-mas-sempre-fica-algo-para-tras/

4) https://www.notibras.com/site/flavio-o-dono-da-festa-de-arromba-na-pre-morte/

5) https://www.notibras.com/site/motorista-de-uber-da-pistas-sobre-morte-de-susana/

6) https://www.notibras.com/site/golpe-de-sorte-mata-a-frustracao-no-caso-susana/

7) https://www.notibras.com/site/mandante-do-crime-mistura-chocolate-com-sangue/

8) https://www.notibras.com/site/vermelho-entra-na-mira-dos-agentes-pedro-e-gustavo/

9) https://www.notibras.com/site/corrida-para-tirar-parca-marcelo-da-cela-da-papuda/

10) https://www.notibras.com/site/mariane-a-amante-entra-no-caso-para-ajudar-marcelo/

11) https://www.notibras.com/site/china-traficante-entrega-os-matadores-de-susana/

12) https://www.notibras.com/site/solto-marcelo-lava-corpo-e-alma-em-tambaba/