quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Dona Dolores e as minhas bochechas

    

    As pessoas reunidas naquela sala, poucas próximas ao féretro, a maioria encostada nas paredes, talvez enojadas pela aparência decrépita da finada ou, ainda, pelo odor desagradável que escapava daquelas carnes em processo de decomposição. No meu canto, apenas observava as duas mãos da velha Dolores, agora repousadas sobre o busto, como se detentoras apenas de ações bondosas enquanto quentes. Que nada! Como sofri com beliscões nas bochechas proeminentes desde menino.  

    Minha mãe, que ali se encontrava entre as mais despojadas do recinto, acabara de depositar uma coroa de margaridas sobre a defunta. Até eu, um completo néscio em jardinagem, bem sei o que são margaridas. No entanto, caso não fosse pelo comentário lisonjeiro que ouvi do grupo ao lado, jamais saberia que tais flores representam as boas lembranças vividas. Minhas bochechas que o digam!

    Mendonça, eis o dono do infeliz comentário. Certamente é um dos próximos da fila, haja vista o avançar da idade. É verdade que posso eu ser o seguinte, pois saúde e meus 28 anos não garantem que o próximo carro desgovernado não me encontrará em alguma esquina. Saravá! Oxalá! Aproximei-me da sucumbida e, discretamente, dei três batidas no caixão. Vai quê!

    Olhei ao redor para ver se ninguém me flagrou. A princípio, me senti aliviado, até que percebi o olhar risonho da Sônia, a bela e jovem esposa do Armando. Deve ter no máximo 35. E que carnes! Ela continuou me encarando com aqueles olhos amendoados, como se fosse se entregar para mim. Não consigo encará-la e meu olhar foi direto naquelas pernas torneadas. 

    A mulher deve ter percebido meu desejo, pois se virou. Fiquei na dúvida se ela se sentiu ofendida ou, então, apenas quis me mostrar a retaguarda. Alcei os olhos para observá-la melhor, mas, antes de chegar ao meu intento, fui despertado do devaneio pelas mãos de minha mãe.

    _ Maciel, vá ajudar a levar o caixão da Dolores.

    Contrariado, peguei numa das alças e, com mais cinco homens, levei o ataúde da velha até o destino final. Destino final do corpo, é verdade, pois a alma, se é que aquela desalmada possuía uma, iria direto lá para baixo fazer companhia ao Jurupari. Imagino até a cena de espanto quando o Tinhoso der de cara com aquela bruxa. Na certa que ele não iria gostar. Capaz até de mandar a velha ressuscitar só pra se ver livre. Deus me livre!

    O enterro demorou mais do que o esperado. Tudo por culpa do velho Silas, que veio com um discurso maior do que o do padre. Aliás, esse tagarela bem que deve beirar em idade com o Mendonça. Enquanto ele falava, fiquei imaginando que o defunto era ele. Quem sabe em breve não será esse caduco? Que vão ele e o Mendonça juntos de uma vez. Assim, economiza no velório.

    Não sei se sorri sonhando acordado. Talvez tenha até feito cara de quem ganhou beijo de mulher de lábios carnudos. Seja como for, quando pensei em me recompor, eis que a minha mãe me puxou para o canto e me cochichou nos ouvidos.

    _ Maciel, preciso te contar uma coisa!

    Fui arrastado pelo braço até mais adiante. Finalmente, minha mãe me disse que a senhora Dolores havia doado, há quase dois anos, todos os seus bens para mim. Isso mesmo! Aquela boa alma, como não possuía parentes, desejou me fazer o seu único herdeiro. 

    Não fiquei rico, mas agora tenho uma bela casa para morar, além de uma substancial quantia no banco, o que me dará, por baixo, dois ou três anos de pura esbórnia. Que Deus seja misericordioso!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Dona Dolores e as minhas bochechas" foi publicado por Notibras no dia 31/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/beliscadas-nas-bochechas-viram-heranca-e-vida-boa/

A herdeira

      

            Não posso dizer que conheci aquele homem. É verdade que eu o vi algumas vezes, mas jamais cheguei a escutar a sua voz. Não que ele fosse mudo ou, então, fosse eu o surdo. Nada disso. É simplesmente porque eu contava com meus lá sete, oito anos quando o dito cujo partiu desta para melhor, como costuma dizer a minha mãe. 

            E, como nessa época as crianças eram mantidas com outros meninos e meninas, não acontecia qualquer aproximação entre adultos e a garotada. Portanto, eram eles lá, nós aqui. Senão, o cinto cantava. E cantava alto lá em casa, como as cicatrizes no meu traseiro podem provar.

            Apesar de guri, ainda hoje me lembro do séquito de bajuladores que acompanhou o féretro do velho, como se cachorro fosse em busca do último naco do que pudesse conseguir. O nome do defunto? Arquimedes, assim como o pai da alavanca.

            O falecido, sem filhos vivos, a não ser bastardos, deixou tudo para a neta favorita, que, também, era a única. Arlete, com pouco mais de 30, solteira, se tornou a pessoa mais rica da cidade. A mulher, tamanha fortuna que lhe caiu no colo, possuía dinheiro saindo pelo ladrão. Aliás, para não faltar com a verdade, sejamos justos com a realidade dos fatos. Ela era herdeira e, ademais, nada sabia das falcatruas perpetradas pelo avô.

            Que o falecido fora um trambiqueiro de marca maior, todos sabemos ou, então, aqueles que ainda não sabiam, agora ficaram cientes. Mas não nos atentemos a enxovalhar os que já partiram, mesmo porque o que nos interessa, neste momento, são aqueles dois quadros simetricamente pendurados na parede oposta à grande sala de estar do palacete da esquina. 

            Pois é, tal propriedade passou a ser a moradia de Arlete desde então, que, mês passado, completou 62 anos. Quanto aos quadros, basta um olhar pouco crítico para afirmar categoricamente que não passam de arte vulgar. No entanto, apesar do óbvio, eles têm recebido, desde que me entendo por gente, os mais elevados elogios, inclusive da aristocracia local.

            De tão afamadas ficaram essas bugigangas, algum incauto propôs que fossem expostas na sala dos veneráveis vereadores, que já não estão entre nós, ali na respeitável Câmara Municipal. Isso como se já houvesse tido algum político por estas bandas que valesse o sacrifício de se bater um prego naquelas paredes, cansadas de escutarem tantas promessas infrutíferas.

            O primeiro quadro era o autorretrato de um tal Juvêncio Badaró. Como sei disso? Bem, é como está escrito, em letras garrafais, abaixo e do lado direito da tela. Data de 1918, local incerto. A pintura me pareceu um imenso borrão, como se a tinta tivesse escorrido sem rumo e se misturado à flagrante falta de talento do artista. Mas, à despeito da minha opinião, ouvi comentários lisonjeiros sobre aquele trambolho. Obviamente, mantive–me calado, pois não sou de escaramuças.

            Creio que já basta do desajeitado pintor. Se ele gostava tanto das tintas, que fosse dar cores às paredes de algum barraco de favela, que, já naquela época, trazia deselegância à cidade. Que fizesse tal favor aos nossos castigados olhos, obrigados a olhar tanta feiura e, ao mesmo tempo, levasse um pouco de caridade à ralé. 

            Quanto ao segundo, não há muito mais a se falar. Deplorável! Por incrível que pareça, castiga muito mais do que o autorretrato daquele Badoró pela completa falta de gosto. Trata–se de um descalabro de um qualquer, que nem se deu o trabalho de assinar aquela coisa horrenda. 

            Quer saber? Pois bem. Imagine uma Vênus de Milo passada dos 70 anos, que mostra todas as vergonhas daquele corpo decrépito, ao invés de as cobrir, como seria mais apropriado. Afinal, quem quer ver aquilo? Causou–me engulhos atrás de engulhos. Como se fosse possível fitar aquele quadro sem sentir tais ânsias. 

            Mas eis que a anfitriã me puxou pelos braços. Ela queria porque queria que eu fosse apreciar aqueles quadros bem de perto. Contrariado, não tive escolha. Fui.

            – Fernando, soube pela sua mãe que você é um apreciador de artes. Pois bem, quero a sua opinião sincera sobre essas duas telas. 

            Lá estava eu, diante daquelas execráveis pinturas. Tendo uma reputação a zelar, finalmente me senti confortável para dar a minha opinião mais sincera para Arlete. Comecei a balbuciar as primeiras sílabas quando, então, surgiu um homem de cartola e bengala. Devia ter lá seus 80 ou mais. 

            Acrísio Ventura. Maior criador de gado do município vizinho. Ele havia sido atraído pela fama daqueles dois quadros. Tão ou mais rico que a velha que não me soltava os braços, ele pareceu ainda mais interessado na minha opinião. Fomos apresentados.

            – Ventura, que bom que você veio. Este é o Fernando, o especialista em obras de arte que lhe falei.

            Eu, de esforçado estudioso sobre o assunto, naquele momento, me tornei um especialista. A princípio fiquei confuso, mas logo percebi a intenção daquela ardilosa senhora.

            – Fernando, este é o Ventura. Ele deseja adquirir essas duas obras de arte. Eu não as queria vender, mas ele insistiu tanto, que acabei convencida. 

            Fiquei atônito e devo ter feito cara de poucos amigos. Ela, certamente percebendo a minha reação, tratou logo de me colocar naquele jogo.

            – Ah! Obviamente, que você será bem remunerado pelos seus serviços, meu filho.

            Sorri. Aliás, todos nós três sorrimos quase ao mesmo tempo. 

            – Fernando, qual o valor desses quadros maravilhosos?

            – Bem, seu Ventura, um preço justo seria de seiscentos mil.

            – Pelos dois?

            – Cada um.

            O velhote fez aquela cara de felicidade, como se estivesse preste a fazer o melhor negócio do mundo. A Arlete fez um beicinho, como se triste pela separação dos quadros. Ficou mais rica ainda e, melhor, se livrou daqueles trambolhos. Quanto a mim, eis que aqui estou com meus duzentos mil indo para a Europa na primeira classe.

  • Nota de esclarecimento: O conto "A herdeira" foi publicado por Notibras no dia 1/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/quadros-que-nao-valem-nada-deixam-velhota-mais-rica/

domingo, 28 de janeiro de 2024

Guilherme Martins, meu companheiro de Notibras

    No dia 12 de janeiro deste 2024 que se inicia, lá estava eu de passagem por São Carlos, quando me dei conta que ali mora um dos grandes contistas/cronistas contemporâneos. Seu nome? Ah, isso sei de cor e salteado, pois ele é meu colega no Notibras: Guilherme Martins.

    Como não sabia se meu amigo estava na cidade, mandei-lhe uma mensagem enquanto abastecia o carro. E, antes que eu pagasse pelo combustível, eis que recebo a resposta: "Que maravilha, Edu! Então, vamos tomar um café!"  

       Pronto! O danado havia me fisgado por duas razões óbvias, que acompanham qualquer escritor. A primeira, obviamente, era o café, que já previa ser gourmet, tamanho o apreço que há tempos sei que o Guilherme possui pela bebida mais brasileira de todas. O outro motivo é que o meu amigo é um ótimo contador de causos, o que me faria dar boas risadas, além de ser o mote para várias histórias. 

        Como não conhecia São Carlos, parei numa esquina e aguardei pela chegada do Guilherme, que, em menos de 10 minutos, surgiu em um belo automóvel branco e impecavelmente limpo, como se tivesse saído de uma concessionária. Era nítido o contraste com o meu, que, na verdade, pertence à minha amada esposa, a Dona Irene: vermelho e todo sujo, muito por conta das fortes chuvas da viagem. 

        O Guilherme desceu e veio me cumprimentar. Logo depois, ele me disse para segui-lo, pois conhecia uma excelente padaria ali perto, que servia o melhor café da cidade. Sem tempo nem ânimo para contestar meu colega, obedeci, já prevendo o agradável momento.

        Mal chegamos, escolhemos uma aconchegante mesa ao fundo. Fizemos os pedidos e, por quase duas horas, falamos sobre diversos assuntos, mas um, em especial, tomou boa parte: a literatura.

        _ Edu, quais são as suas inspirações?

        _ Várias coisas. Pode ser uma frase que ouço, uma foto que acho legal ou uma situação engraçada. E as suas?

         _ Olha, vou te dar um exemplo. Um dia, ao sair de um restaurante, acabei dando um chute em uma pedra. Por esses acasos da vida, ela bateu no tronco de uma árvore. Isso foi uma baita sorte!

        _ Por quê?

        _ É que atrás dessa árvore estava uma Ferrari. Imagina se a pedra atinge a lataria? Eu estaria lascado!

        Enquanto meus olhos se arregalavam, vislumbrei a encrenca que o Guilherme poderia ter se metido. Ele, então, me disse que riu de nervoso naquele momento, mas que a trajetória de algo tão simples e comum, no caso, uma pedra, poderia dar uma ótima história. Foi daí que surgiu o conto "A pedra", que já estampou as páginas de Notibras. 

        O papo estava excelente, mas a estrada me esperava. O Guilherme me deu um abraço bem apertado, depois entrou no seu automóvel, que, de tão branco, poderia fazer propaganda para aquele famoso sabão em pó. Virei a chave e ouvi o ronco do motor do veículo vermelho, que, certamente, chegaria ainda mais sujo à Cidade Maravilhosa. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Guilherme Martins, meus companheiro de Notibras" foi publicada por Notibras no dia 28/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/encontro-com-guilherme-um-dos-nossos-escribas/
        

    

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Sangue latino

     Foi numa noite de 1978, quando lá fui, levado pelas mãos de minha mãe, para a casa de uma tia. Durante aquelas infinitas partidas de buraco, minha tia começou a puxar conversa comigo, que estava afundado no sofá.

    _ Gosta de música?

    _ Sim.

    _ Do quê?

    _ Secos & Molhados.

    _ Você tem os dentes separados. Aposto que canta que nem o Ney Matogrosso.

    Não sei quem venceu o carteado, mesmo porque nunca gostei de passar horas fazendo e recebendo sinais do parceiro sobre essa ou aquela jogada. Gostava de paciência, mas não as de uma fileira acima. Minha avó, que sempre foi o grande amor da minha vida, me ensinou outra, que possui duas fileiras nas laterais, cada uma com quatro grupos de cinco cartas.

    Além do baralho, minha avó possuía o hábito de tomar remédios. Eram tantos, que os vidrinhos se acumulavam dentro de uma gaveta na cozinha. De vez em quando, ela me dava um e dizia para ir brincar no quintal. E lá ia eu sorrindo aquele diastema, que me tornava único entre as crianças da rua. 

    Lembro-me de uma mangueira, que ficava mais ao fundo do terreno. Minha avó, certa vez, me disse que aquela era a minha árvore. Nem acreditei que aquele ser enorme fosse só meu. Tentei abraçar o tronco, mas meus braços de menino eram muito curtos. Além disso, a aspereza da casca me causava certo desconforto, que eu tentava disfarçar para não fazer com que a minha avó desistisse daquele gesto tão generoso. Uma árvore! Aos oito, o neto da dona Estelita possuía uma árvore.

    No final de 1992, logo depois de retornar para casa nas férias da faculdade, fui informado por minha mãe que vovó não estava bem de saúde. Meu avô havia nos deixado dois anos antes por conta de um câncer tão comum aos de sua geração de fumantes. Seja como for, dona Estelita requeria cuidados e, por isso, iria morar conosco. 

    Não me incomodei em dividir o quarto com vovó. Pelo contrário, ela sempre havia sido minha maior confidente. Agora, no entanto, os assuntos eram outros, inclusive de supostas namoradas, que nas minhas falas se tornavam muito mais interessantes e apaixonadas por mim. 

    Vovó sempre me falava que queria conhecer a menina que eu fosse escolher para ser minha futura esposa. Como se eu fosse um príncipe que pudesse escolher qualquer uma das garotas da faculdade. Mal sabia ela ou, então, fingia desconhecer a minha total falta de traquejo com as mulheres. Mas isso não era motivo para deixarmos de passar horas divagando sobre as minhas inúmeras pretendentes: Maria Júlia, Roberta, Lúcia, Ana Clara, Solange, Cíntia... 

    Eram tantas, que já não conseguia inventar tantos nomes. E, se eu repetisse algum, minha avó, sempre muito perspicaz, logo me dizia: "Outra Mariana? Essas moças não deixam o meu neto lindo em paz!" E ríamos madrugada adentro.

    Foi pouco depois da minha formatura que vovó nos deixou. Num dia chuvoso, como se toda a cidade chorasse a perda daquela mulher maravilhosa. Diante do caixão, seus olhos, mesmo fechados, pareciam enxergar a angústia que me tomava. Seu rosto sereno, entretanto, me transmitiu uma paz e a certeza de que logo estaríamos juntos novamente.

    Desde então, o tempo passou, às vezes vagarosamente; outras, ligeiro como um preá que se esgueira no mato. Não me lembro de ter arriscado sonoros agudos. Todavia, até hoje guardo com uma boa dose de pretensão a certeza da minha tia. Ainda ouço "Sangue Latino", que me remete à minha infância.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Sangue latino" foi publicado por Notibras no dia 24/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/secos-molhados-revive-com-memoria-da-avo/

O aniversário da Diana

  

    Adulta que sou há tanto tempo, lembranças de um passado longínquo são escassas, ainda mais por conta do cargo que ocupo desde que me mudei de cidade, quando a minha filha, Diana, estava prestes a completar dois anos. Hoje, uma sexta-feira, aliás, é seu aniversário de oito. Meu Deus, como o tempo voou! Onde eu estava que nem percebi? Na certa, afundada em infindáveis problemas no trabalho.

    O telefone sobre a minha mesa toca, o que me transporta para a realidade. Atendo. É Júlio, meu secretário. Ele me lembra da reunião com um importante cliente, que veio do interior de São Paulo para tratativa que poderia ser facilmente conversada por videoconferência. No entanto, quase octogenário, prefere que seja tête-à-tête.

    Assim que entro na sala de reuniões, logo reconheço aquele rosto, apesar de envelhecido, não aparenta mais de 60. Antônio Gonçalves de Almeida, chego a apostar mentalmente, deveria estar em forma, pois vestia um deslumbrante terno com corte moderno, quase justo ao corpo. Constato que ele percebeu meu olhar aguçado, pois logo me lançou um sorriso largo, de quem frequenta o dentista com regularidade.

    _ Teresa Monteiro! Finalmente, nos encontramos!

    _ Senhor Almeida!

    _ Por favor, deixe o senhor de lado. Antônio é melhor. Se preferir, pode ser apenas Toni. É como meus amigos me chamam.

    _ Toni. É um prazer, finalmente, conhecê-lo, Toni! - digo enquanto apertamos as mãos e lhe lanço um sorriso de alguém que, apesar de não frequentar o dentista mais do que uma vez por ano, ainda assim consegue manter os dentes agradáveis.

    A reunião transcorre maravilhosamente bem. Consigo um excelente acordo para o cliente. Obviamente, a empresa também será beneficiada, ainda mais porque o volume de vendas quase triplicará, apesar da redução do valor por item vendido. Lucraremos pela quantidade e, melhor ainda, fidelizaremos o parceiro comercial por mais cinco anos.

        Diante de tamanha negociação, sou praticamente obrigada, em nome da empresa, a convidar o senhor Almeida para um jantar. Terei que passar as próximas duas horas na companhia do empresário paulista, que até me pareceu ser um homem divertido. O problema, entretanto, é que hoje é o aniversário da Diana. E, mesmo que a festa já esteja programada para o domingo, prometi-lhe chegar mais cedo para assistirmos aqueles filmes de terror que ela adora.

        O jantar se prolonga por quase quatro horas. Confesso que nem percebi quando olhei o relógio e vi que estava perto da meia-noite. Toni, além de ser alguém que gosta de se vangloriar de ter vindo do nada até construir um império, mostrou-se bastante distinto. Um dos raros que não tentou me levar para cama em mais de duas décadas que trabalho na empresa. Ainda por cima, passou boa parte do jantar me mostrando fotografias da família, especialmente da esposa, que me pareceu regular com a idade do marido.

        Quando, afinal, abri a porta do meu apartamento, retirei os sapatos, pois aqueles saltos estavam me matando. Caminhei até o quarto da Diana, que parecia adormecida. Assim que me aproximei para lhe dar um beijo, ela abriu aqueles olhos de um castanho como os meus. Lançou-me um sorriso e estendeu os braços. Demos um abraço bem apertado, enquanto lágrimas escorreram pela minha face.

        _ O que foi, mamãe?

        _ Nada.

        _ Então, por que está chorando?

        _ É que me lembrei do meu pai.

        _ Sinto falta do vovô.

     _ Também sinto. Quando eu era menina, mais ou menos da sua idade, ele trabalhava na compensação do banco lá no Centro do Rio. Então, quando ele voltava para casa, sempre comprava um hambúrguer maravilhoso na estação das barcas. Mamãe brigava com ele. "Hambúrguer pra menina de madrugada, Zeca?" Ele respondia: "Deixa, Mary! Ela adora!"

        Diana voltou a me abraçar. Um abraço tão gostoso, que me fez querer deitar ao seu lado para dormirmos juntinhas. Que nada! Minha filha arregalou os olhos e sorriu aquele sorriso de quem está com uma ideia fixa.

        _ Mamãe, que tal ver um filme bem assustador?

        _ Agora?

        _ Sim! Mas quero assistir comendo um hambúrguer tão gostoso que nem o do vovô.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O aniversário da Diana" foi publicado por Notibras no dia 30/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/jantar-atrasa-tudo-mas-depois-tem-filme-e-hamburguer/

domingo, 21 de janeiro de 2024

Preguiça de nascer

  

    Dalva e José nasceram na roça, cresceram na roça, trabalhavam na roça, viviam na roça desde sempre. Os dois se conheceram ainda meninos e, assim que chegou a época apropriada, casaram-se como de costume se fazia na região. Logo chegou o primeiro filho, Delvéquio, nome mais que apropriado para o primogênito. 

    Enquanto o moleque crescia, o casal continuava quase na mesma rotina, agora acrescida com os cuidados com o filho. Não tardou, Delvéquio, aos dois anos, já ensaiava seu futuro brincando na terra. Mal sabia ele que seu destino estava encaminhado, assim como o do seu irmão, que já provocava enjoos terríveis em sua mãe. A mulher vomitava sem parar, obrigando o marido a trabalhar em dobro. 

     Do curral pro chiqueiro, daí pro milharal, de onde apressava o passo pro galinheiro, a despeito das galinhas que ciscavam pelo terreiro bem em frente à maltratada casa de sapê. Dalva tentava, a todo custo, ajudar o esposo, mas a barriga, cada vez maior, restringia seus movimentos. Agachar, então, era aquele tormento para, depois, se levantar. A mulher necessitava de apoio ou, então, de um belo impulso com as mãos empurrando o chão. Tudo doía, não tinha junta que escapava daquele martírio. 

    As parcas visitas indagavam-lhe sobre o tempo de parir. A buchuda, apesar da falta de estudo, era boa de conta. Sabia que as regras não lhe faziam sala há mais de nove meses, perigando chegar aos dez. Isso foi o motivo daquela conversa que Dalva teve com José numa noite quente de quase dezembro.

    _ Tô preocupada.

    _ Cum quê, muié?

    _ Cum o nosso fio.

    _ O que tem o moleque?

   _ Ele não qué nascê. Já tô no décimo mês e nada do pirralho querê nascê. 

   _  Ele é que é sabido. Já deve sabê da vida dura que vai levá.

   _ Pode sê. Mas se ficá doze mês na barriga vai virá burro.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Preguiça de nascer" foi publicado por Notibras no dia 21/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/parido-quase-aos-12-segundo-tinha-sina-de-burro/
  • O conto "Preguiça de nascer" faz parte da antologia "Contos caipiras 100 anos do Jéca Tatuzinho", da editora Olympia, 2024.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Náufrago em Barra de São Miguel

    O personagem de hoje é um notório e notável jornalista, que, além das matérias de alto nível produzidas para Notibras, recentemente resolveu se hospedar compulsoriamente na residência do mais charmoso casal de Barra de São Miguel, litoral de Alagoas, os digníssimos Betânia e Marcos. Pois bem, o nome do gajo é José Seabra, que tem se enverado ultimamente pelas crônicas, mas é contumaz apreciador da brasileiríssima cachaça, ainda mais se acompanhada de um caldo de camarão e aquele peixe frito. 
    Seabra, que também atende pela pomposa alcunha de Chefe, para não se passar por aproveitador da hospitalidade que lhe foi ofertada, diz que está fazendo um bico de caseiro para pagar pela suíte e pelo comes e bebes. Que nada! O bon vivant, segundo já se fala à boca pequena, ainda não varreu um só grão da areia, que cisma em convidá-lo para mais uma caminhada até a birosca mais próxima. É justamente lá que pensa no que escrever ou, então, algo o leva a ter longas prosas com outro desocupado ou, na falta de algum, puxa conversa com um velho conhecido, nascido e criado ali mesmo na praia: um pé de coco. 
     O povo daqui da redação do Notibras, a princípio, imaginou que essa viagem do Seabra fosse apenas mais uma de suas loucuras, mas que não duraria além de alguns dias, quiçá duas ou três semanas. Ledo engano, no que me incluo entre os inocentes, puros e bestas, que, apesar de já ter tido o prazer de morar em Ipanema, estou aqui cumprindo a minha sina de mais uma temporada em Brasília. 
    Que seja assim ou assim seja, não importa, como bem diz o meu colega de labuta, o Wenceslau Araújo. Este, aliás, me grita assim que o meu celular toca. Vejo que é o Daniel Marchi, também conhecido como Bruxo do Méier. Atendo e ele me diz que vai me mandar mais um conto incrível para ser publicado na próxima segunda-feira. Fico animado com a notícia, mas o Wenceslau me grita novamente. Ele está com uma passagem na mão esquerda.

    _ Edu, tô indo pro Rio! Ah, não se esqueça!

    _ Do quê, Wenceslau?

    _ Hoje é o aniversário do Chefe! 
  • Nota de esclarecimento: A crônica "Náufrago em Barra de São Miguel" foi publicada por Notibras no dia 19/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/todo-dia-ele-faz-tudo-sempre-igual-acorda-as-4-da-matina/

 

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Paixonite aguda

  

    Sandrinha, batizada, registrada e escarrada Sandra Gomes Pereira, era costumeiramente chamada pelo diminutivo, não apenas pelos familiares, como também pela vizinhança, que não perdia a oportunidade de alfinetar o menor deslize de quem quer que fosse. É verdade que, aos defuntos de última hora, eram reservadas condolências, quase nunca sinceras, mas que o momento requer. Meras formalidades de ocasião, logo esquecidas no final de um ou dois meses, quando muito, pois uma semana, na maior parte dos casos, já estava de bom tamanho.

    Aos 15, a mocinha resolveu se engraçar para o lado do Reinaldo, o rapazola mais popular da redondeza. Não que fosse mais bonito ou mais inteligente que os demais. Nem mais rico, diga-se de passagem, pois era do tipo que vende o almoço para garantir a janta. No entanto, lábia era o que não lhe faltava. 

    Completamente fisgada, Sandrinha não tinha cabeça para mais nada além do aconchego dos braços do gajo. Os pais, aflitos, tentaram de tudo, até ameaças de tirá-las do testamento, como se possuíssem bens para tal. Que nada! Assim como todos no local, mal possuíam para comer e vestir. Viviam contando os vinténs para não perderem o tênue crédito na venda da esquina. 

    Assim que o namorico caiu nos ouvidos dos moradores da rua, foi aquele falatório: "Não tarda, aparece buchuda!", "Daqui a pouco, essa aí cai no mundo!", "Tenho pena, não. Quem procura acha!", "Isso é falta de uma boa surra!", "Essa rapariga nunca me enganou!"

       Os pais da Sandrinha, sem terem mais saliva para orientar a filha, chamaram o padre. Não resolveu. Tentaram o pastor, mas logo perceberam as intenções distorcidas do homem. Apelaram para a Dona Clô, renomada na região por conta de vários trabalhos de descarrego. Que nada! Parece que o feitiço do Don Juan era mais anafado.

        Tudo parecia perdido quando, numa tardezinha de sexta-feira, eis que a garota, mal entrou em casa, viu a mãe derramada no sofá da sala, chorosa. O pai, defronte à janela, fumava mais um cigarro. Seus olhos, ao longe, não enxergavam solução para aquele caso perdido. A filha, o homem agora tinha certeza, estava perdida no mundo. 

        Sandrinha, quase na ponta dos pés, foi ter com a mãe. Abraçou-a e, arrependida que estava, jurou que nunca mais iria ter com o Reinaldo. O pai, vendo aquelas duas em pranto, foi se juntar à reunião de soluços e lágrimas. 

        _ Você quer tomar um chá, minha filha?

        _ Quero, sim, mamãe.

        Em poucos minutos, a mesa estava posta com chá e torradas amanteigadas. Os três se sentaram e degustaram aquela iguaria maternal. Sandrinha se mostrou realmente arrependida pelos seus últimos atos. Como é que ela se deixou levar por aquela paixão? Não! Aquilo havia de terminar ali mesmo! Acabou e pronto! Nada mais de Reinaldo ou qualquer outro. 

        Por volta das nove, foi se deitar. Já era mais que hora de uma mocinha estar na cama. O remorso a corroía, ainda mais porque Sandrinha havia percebido o mal que havia proporcionado aos pais e, em especial, à sua doce amada mãezinha. Nunca mais! A lição havia sido aprendida.

        Já pela manhã, um sábado ensolarado, a mãe acordou bem cedo e foi preparar o café da manhã. O marido, atraído pelo cheiro de pão quentinho, logo apareceu. Os dois se abraçaram, trocaram beijos e suspiros. O alívio de ter a filha de volta havia trazido conforto ao seio familiar. Sentaram-se à mesa e, enquanto faziam o dejejum, perceberam que Sandrinha continuava dormindo. 

        A mãe, talvez mais zelosa, levantou-se e foi até o quarto da menina. Abriu a porta bem devagar para não despertar a filha quando, então, não a encontrou. Cama feita, janela aberta. Olhos arregalados, a mulher constatou o inevitável. Os hormônios haviam falado mais alto.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Paixonite aguda" foi publicado por Notibras no dia 23/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/paixonite-aguda-faz-sandrinha-cair-no-mundo/

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Camila Morgado e a minha manteiga sem sal

   

    Eram os anos 1990, eu morava em uma das vagas que meu primo Henrique alugava na rua Voluntários da Pátria, em Botafogo, justamente o bairro onde nasci na mais linda cidade deste nosso planeta, que não é plano, apesar de alguns incautos habitantes ainda insistirem em tamanho disparate. E, olhando agora para aqueles tempos, parece-me que vivíamos num caos, mas éramos jovens e praticamente não parávamos no nosso lar, doce lar de então. 

    Apesar de sermos todos primaveris, eu destoava dos meus companheiros de moradia. Não que eu fosse mais bonito ou mais feio que os demais. Também não era mais gordo ou magro, nem mais alto ou mais baixo. O lance é que todos eles buscavam o estrelato, eram artistas atrás de um espaço na concorrida vida dos palcos. 

    Não me lembro de todos que passaram pelo apartamento do meu primo. No entanto, acabei me tornando amigo da Catia Carvalhal, que tentava se tornar dubladora. Ela era amiga de outra moradora, uma jovem atriz ainda desconhecida, bem magrinha, loira e de olhos enormes de um azul da cor do céu em um dia de praia. Seu nome? Camila Morgado.

    Apesar de não receber nenhuma fortuna, eu era o único que ganhava o suficiente para ter uma vida razoavelmente confortável. Desse modo, minha condição financeira, entre todos que moravam no apartamento em Botafogo, era a melhor. No entanto, como bem me disse uma outra atriz em começo de carreira, a minha vida devia ser muito chata. Não sei se isso era totalmente verdade, mas entendi o que ela quis dizer, pois o meu destino me reservava algo comum entre a população em geral. 

    Nessa época, eu me ocupava com o curso de medicina veterinária na Rural do Rio (UFRRJ), que fica em Seropédica, bucólico município do estado do Rio de Janeiro. De lá, pegava um ônibus e rumava para o Andaraí, bairro suburbano da Cidade Maravilhosa, onde trabalhava no Banco do Brasil na parte da compensação, que começava à noite e terminava apenas de madrugada. Quando dava, ia para casa e dormia por uma ou duas horas, tomava um banho e voltava para as aulas na Rural. 

    Para quem não conhece os trajetos que fazia, imagine um grande triângulo, onde Botafogo, Seropédica e Andaraí ficam em cada uma das pontas. Os lados teriam distâncias aproximadas de 85 km, 75 km e 15 km. A rotina era pesada e, por isso, costumava aproveitar os trajetos e tirava aquela soneca. É verdade que, por conta disso, às vezes, também perdia o ponto de descida e precisava caminhar de volta por alguns quilômetros. Mas nada que piorasse tanto o que já estava complicado demais. 

    Nesse tempo, o dia que mais me dava prazer era a sexta-feira, pois sabia que, no dia seguinte, não precisaria acordar cedo e poderia dormir por mais algumas horas, mesmo que necessitasse estudar para uma ou outra prova. Dessa forma, ao sair do banco, rumava para o aconchego da minha cama, acompanhado da certeza de que meu corpo repousaria por pelo menos oito horas.

    Pois bem, foi justamente num sábado que aconteceu algo que até hoje me faz dar boas gargalhadas. É que eu gosto de manteiga sem sal e dura. Entretanto, por algumas vezes, percebi que alguém a retirava da geladeira e a salpicava de sal. Longe disso me tirar do sério. Na verdade, eu até achava graça, pois me levava a um devaneio, que, naquela época, era extremamente necessário para mim. 

    O engraçado é que, ao escrever sobre essa história, chego a sentir o sabor daquela manteiga mole e salgada no biscoito cream cracker. Isso me ajuda a ter boas lembranças de um tempo de muita correria. Talvez eu esteja romantizando um período conturbado da minha existência. Seja como for, lembrar disso me faz sentir muito bem.

    Mas voltemos ao conforto da minha cama naquele sábado dos anos 1990. Dormia o sono dos moribundos, quando, então, fui despertado por duas vozes femininas muito agradáveis. Logo as reconheci: Catia e Camila. Elas gargalhavam, mas não dei muita atenção, pois meu travesseiro me parecia muito mais interessante naquele momento. Todavia, o seguinte interlúdio me fez voltar as orelhas para a pequena cozinha.

    _ Catia, quem é o sem-noção que só compra manteiga sem sal e ainda coloca na geladeira?

    _ Sei lá! Mas é um sem-noção mesmo!

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Camila Morgado e a minha manteiga sem sal" foi publicada por Notibras no dia 16/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/camila-morgado-e-a-minha-manteiga-sem-sal/

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Chulé, o maltrapilho

    

    Chulé perambulava pelo bairro. Descalço, ainda assim o odor dos pés era algo indescritível, que saltava aos olhos, que lacrimejavam por conta do flagrante horror. Feridas purulentas, intratáveis ou, então, deixadas de lado, que faziam aquele homem claudicar por avenidas, ruas e vielas, metendo-se em becos sem saída, plena escuridão, o destino sombrio. 

    Se alguém sabia o nome do moribundo, parece que guardou para si. Era conhecido por Chulé, mas outras alcunhas também costumavam, vez ou outra, ser utilizadas com o mesmo asco: Catinguento, Pestilento, Podre e até mesmo Mefítico. Este último apelido, obviamente, fora dado por um estudioso da nossa rica língua, o Epaminondas. 

    Aliás, para quem não sabe, Epaminondas é um nome grego. com significado condizente com o nosso sábio conhecedor das palavras. Pois tal epíteto quer dizer justamente aquele que está acima do melhor. Dessa forma, percebe-se claramente o abismo que separava aqueles dois seres, que perambulavam pelo mesmo bairro, pelas mesmas avenidas, as mesmas ruas e, provavelmente, vielas idênticas. No entanto, era óbvio que ocupavam nichos diferentes, tamanho o disparate entre mundos tão distintos. 

    Epaminondas, do alto dos seus luxuosos sapatos, seria capaz de flutuar apenas para não ter o desprazer de pisar sobre o pus deixado pelo andrajoso. Que nojo! Chegava a ter ânsia. Pegava o lenço no bolso do elegante paletó, colocava-o sobre as narinas e os lábios e seguia o caminho dos bem-aventurados. 

    Quanto ao Chulé, talvez nem mais se dava conta do desprezo ou, então, de tão acostumado, já o carregava em algum dos bolsos furados da calça puída. Não queria mais viver, mas sobrevivia às custas das sobras de algum afortunado com olho maior do que a barriga, que teria colocado mais feijão no prato. 

    O moribundo rastejava ligeiro para não ser vencido por um dos inúmeros ratos do esgoto. Ali, tudo era esgoto, que já não fedia tanto às narinas insensíveis do Chulé. Acostumara-se. Melhor, sem opção, conformara-se.

    Causador de tantos embrulhos nos estômagos alheios, eis que, certa madrugada, Café sentiu uma pontada no peito e se viu à beira da morte. Arrumou coragem não se sabe de onde para vencer os quase dois quilômetros que o separavam do hospital. Mal chegou, cambaleou, mas conseguiu se apoiar na caçamba de lixo. Puxou aquele ar pútrido que lhe era tão íntimo, deu dois passos e tombou. Morto, não fechou os olhos, talvez espantado pela própria desgraceira. 

    O corpo do maltrapilho foi encontrado por um vigilante logo pela manhã. Acudiu-lhe o médico de plantão, que nada pode fazer, a não ser atestar, de tão óbvio, o óbito. Alguém perguntou pelo nome do defunto. Ninguém soube responder. Já era tarde para perguntar. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Chulé, o maltrapilho" foi publicado por Notibras no dia 15/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/dor-no-peito-mata-homem-que-nao-tinha-nome/

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Cecília e o queijo

    

     Cecília, aos 30, continuava solteira e nem lhe passava pela cabeça se casar. Não que lhe faltassem pretendentes, que eram muitos. Afinal, tamanha beleza não poderia mesmo passar despercebida. Que mulherão! 

     Apaixonada pela vida e pela própria imagem refletida no espelho, Cecília, até de chinelo de dedo, desfilava pelo bairro Menino Deus com a desenvoltura de uma modelo na passarela em Paris, apesar de nunca ter ido além de Viamão. Mas não pense você que não lhe faltassem carnes, pois aquele corpo era uma fartura de curvas sinuosas e, caso o piloto não ficasse atento, acabava derrapando e dando com a fuça no guard-rail.

    Apesar de tanto glamour, o que se conta à boca pequena por aqui é que a moça acabou se engraçando com um mineirinho de Visconde do Rio Branco. De tão apaixonada ficou, trocou a costela assada  pelo queijo por um mês inteirinho. Pois é! E, para piorar, nem era fevereiro, mas desses quase infinitos que nem agosto. 

    Para encurtar a história, parece que o intestino da mulher parou de funcionar regularmente. Isso mesmo! Cecília ficou entupida! Enquanto o queijo entrava por cima, nada saía por baixo. É verdade que os gases, até mesmo por sua fluidez, encontravam brechas para, vez ou outra, empestear o ambiente. Por conta disso, o namorado, que possuía alergia a odores diferentes dos de rosas, voltou para a cidade natal. Dizem que não avisou, saiu de mansinho e nem bilhete de despedida deixou. Um cafajeste!

      Mas deixemos o traste de lado e voltemos à linda Cecília. Ela já não ia ao banheiro há quase uma semana. Tanto é que, não raro, alguém lhe parabenizava pelo bebê que estava por vir. Que bebê? Não existia bebê! Pobre mulher! Além das dores que estava sentindo, os fofoqueiros de plantão não a poupavam de anedotas. 

        Cecília já estava desesperada com a situação. Até pensou em ir ao hospital para dar cabo daquela situação, quando, por um desses acasos da vida que só acontecem em Porto Alegre, eis que ela conheceu uma senhora especialista em fazer o número dois. E isso aconteceu justamente ali na esquina da Marcílio Dias com a Getúlio. 

        _ Guria, se isso não for gravidez avançada, é melhor tomar um chá dessas ervas aqui.

        Sem ter para onde correr, Cecília aceitou a sugestão. Correu para casa, fez quase um balde de chá com as tais ervas. Não tardou, foi aquele alívio. Tanto é que, no dia seguinte, ao encontrar a especialista, houve o seguinte interlúdio, tão peculiar aos gaúchos.

        _ Tô vendo, pela cinturinha, que funcinou.

        _ Ah, não sei como agradecê-la, senhora! Finalmente fui aos pés!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Cecília e o queijo" foi publicado por Notibras no dia 14/1/2024. 
  • https://www.notibras.com/site/virgem-aos-30-pum-fedido-e-barriga-de-gravida/

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Duas vidas, um parque e o silêncio

            Vera, por um desses eventos fortuitos que acontecem quase com ninguém, teve a sorte de enviuvar justamente no primeiro dia de trabalho do então marido, Júlio, no Banco Central nos idos de 1985. Não que faltasse amor pelo esposo, mas tal imprevisto acabou por lhe render uma polpuda pensão vitalícia. Sem filhos, a jovem viúva, no auge dos seus 27, teve dinheiro de sobra para comprar vários vestidos e viveu o luto por um ano inteirinho.  

            Ela, que havia se mudado para Brasília por conta do marido, acabou ficando por ali. Sentia falta da família, é verdade, mas fincou os pés naquela terra vermelha e nunca mais quis voltar para Belo Horizonte. Ademais, o apartamento, mesmo que pequeno, já estava montado e, melhor, ela gostou daquele silêncio. 

             Conforto, economia e uma renda muito acima do razoável foram mais que suficientes para aplacar aquele sentimento de querer ir embora, que, vez ou outra, a instigava. Foi ficando, ficando, ficando, até que a capital se tornou seu lar. É verdade que as promessas de largar tudo aquilo e se mandar para uma cidade praiana ainda são ditas para os mais próximos. Seja como for, Vera está tão incrustada em Brasília, que ninguém mais acredita nas suas palavras. Além do mais, hoje, prestes a completar 63, talvez até ela própria já tenha perdido o ânimo de abandonar a cidade projetada por Lúcio Costa.

            Ângelo, a despeito de ter morado longe de Brasília por quase quatro décadas, retornou para a sua terra natal. Viajou o mundo por conta do trabalho, mas, encardido desde as primeiras horas de vida pelo vermelho daquele chão, não teve dúvida de que seu lugar era ali. Aposentado e viúvo, voltou no final de 2021, quando os 70 anos já lhe batiam à porta.  

            Não ficou rico, mas estava longe de ter que fazer economias para chegar ao fim do mês para manter a geladeira cheia. Além disso, era um homem prático. Tão prático, que preferiu comprar um pequeno apartamento. Nada mais que dois quartos: um para ele, outro para possíveis visitas, que, na verdade, eram raríssimas. Por isso, tal cômodo se tornou uma espécie de escritório ou, como Cida, a faxineira, dizia, o quarto da bagunça. 

            O velho, mesmo que acessível, teve certa dificuldade de fazer amizade. Ficou sócio de um clube, mas logo percebeu que horas ao sol só lhe trouxeram uma pele mais bronzeada, o que até lhe destacavam os olhos claros. Mas desistiu daquilo, continuou sem amigos. Ainda mais porque muito sol poderia lhe causar um câncer de pele. Acostumou-se com aquela vida silenciosa.

             Vera e Ângelo, apesar de morarem na mesma quadra, no mesmo prédio, ela um andar acima, nunca haviam se notado. Provavelmente por conta dos horários distintos ou, talvez, pela miopia. Seja como for, os dois passaram a fazer caminhadas por recomendação médica. Aliás, a mesma geriatra, que ainda não havia chegado aos 40.

            Os dois, a princípio, não gostaram daquela atividade física, mas logo descobriram o prazer de andar ali pertinho, no aprazível parque Olhos D'Água, uma belezura de lugar. Aquelas paisagens, na verdade, tornavam as caminhadas tão prazerosas, que os dois, não raro, davam duas, três voltas, sem se darem conta, tamanho o grau de relaxamento.

            Invariavelmente, Vera e Ângelo faziam uma pausa na Lagoa do Sapo, onde degustavam toda aquela mansidão. Uma flor com seu colorido aqui, aquela borboleta de asas graúdas ali, a tartaruga esquiva entre a folhagem aquática. É possível que aqueles dois captassem tudo, a despeito dos sentidos já envelhecidos. Gastos sim, mas com certeza mais experientes para apreciar as maravilhas ao redor.

            Interessante era que, apesar de tantas idas e vindas, jamais haviam se reparado. No entanto, naquele dia, lá estava aquela mulher diante da Lagoa do Sapo, quando Ângelo se aproximou. Ele nem a percebeu, pois seus olhos míopes miravam aquela água mansa à sua frente.

            Os velhos se encontravam a não mais de dois metros um do outro. Ela foi a primeira a perceber a presença de alguém, mas não teve ânimo de olhar para o lado, mesmo porque estava entretida com os peixes no fundo da lagoa. Ângelo, apesar de distraído, foi despertado pelo perfume exalado pela pele da mulher. Tímido, porém, manteve a vista numa enorme árvore, mas seu pensamento já era outro.

            Curiosos, finalmente se olharam. Vera, mais corajosa, sorriu e, então, se pronunciou: "Bonita lagoa". Ângelo concordou com um leve movimento de cabeça. Por um instante, abstraíram-se daquele lugar, até que o canto de um joão-de-barro os transportou de volta para seus próprios devaneios. Silêncio total.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Duas vidas, um parque e o silêncio" foi vencedor do Concurso da Revista Eco Literário 2023.


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  • https://drive.google.com/file/d/1sjZ_TPKqKhLwStXoqbdpqIHx6qV_UO6K/view
  • O conto "Duas vidas, um parque e o silêncio" foi publicado por Notibras no dia 8/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/duas-vidas-um-parque-e-o-silencio-da-jovem-viuva/