quarta-feira, 31 de maio de 2023

O quadro torto


    As gerações se sucediam naquela família, que permanecia na mesma mansão isolada por muros elevados. A vizinhança há anos comentava sobre os misteriosos eventos que, de tempos em tempos, aconteciam por detrás daquela muralha de pedras tão antiga, onde os musgos lhe conferiam um ar ainda mais sombrio. 

     A enorme placa no portão dizia que aquela propriedade havia sido construída em 1884, mas muita gente insistia em afirmar, categoricamente, que datava do século XVII. Seja como for, todos sabiam que ali fora palco do crime que abalou toda uma época: o assassinato de Matilde Rossi, primeira esposa do Comendador Tommaso Giordano. 

     O casal não deixou herdeiros, já que Matilde, apesar de pronunciada gravidez, foi flagrada com outro na cama. Tommaso, num ataque de fúria, estrangulou a esposa, enquanto o amante, o belo Mattia, escapulia pela janela do majestoso sobrado. 

   O Comendador mandou construir um mausoléu de mármore sob uma araucária. O caixão, lacrado, foi depositado enquanto uma pequena plateia chorosa lamentava a perda precoce da senhora, que, até então, ninguém sabia ser adúltera. Quanto ao Mattia, não se sabe ao certo o que lhe aconteceu.

    Uma das versões é de que o amante, depois de fugir da alcova, fora encontrado após dois dias escondido em uma mata próxima. Após horas de tortura, seu corpo teria sido esquartejado e deixado para que as onças dessem cabo de suas carnes. Um triste fim para um rapaz tão formoso e apreciador de beijos, carinhos e afagos.

     Distinta história, no entanto, aponta para outra direção. Mattia, sabedor do que poderia lhe acontecer, teria fugido para o Rio de Janeiro. Segundo consta, o pé de pano foi acolhido por uma ou duas senhoras, talvez viúvas, e passou o tempo deitando-se em uma eterna vida de luxúria. 

   Como não poderia deixar de existir, uma versão mais simplória afirmava que o jovem havia retornado para a sua cidade natal, Paola, no extremo sul da Itália. Sem dinheiro para a passagem, Mattia teria trabalhado de ajudante de cozinha do vapor. Não se sabe ao certo seu destino a partir desse ponto. Todavia, não são raras as suposições de que ele teria se tornado o preferido de alguma ricaça.

    Apesar de pairar dúvidas sobre o destino de Mattia, parece certo o que teria acontecido com a pobre Matilde. Logo após retirar suas mãos do pescoço da esposa, Tommaso constatou que ela não apresentava mais sinais de vida. Nenhuma respiração, nenhum pulsar, apenas o corpo inerte, apesar de ainda morno. 

   O marido traído mandou chamar Francesco, homem de confiança. Sem alarde, contou-lhe somente o necessário. O machado foi primorosamente afiado e, num golpe certeiro, o empregado cortou a cabeça da adúltera. Esta foi posta em um saco de estopa e levada para o galpão. Em seguida, foi depositada em um enorme frasco de vidro com formol, que Tommaso havia guardado para suas experiências de conservação de restos de caças. 

     Após o enterro do corpo mutilado de Matilde, o Comendador ordenou que lhe trouxessem outra italianinha. O casório aconteceu em menos de um ano. Tiveram oito filhos, mas somente a única menina sobreviveu. Os sete varões morreram, um a um, de maneira misteriosa. 

     O primogênito caiu da janela do sobrado, a mesma janela por onde Mattia havia se livrado das garras do Comendador. Lorenzo, o segundo na linha de sucessão, teve o crânio esmagado por um enorme galho da araucária que fazia sombra na tumba de Matilde. O terceiro, o quarto e os demais também não escaparam. Todos mortos antes de completarem sete anos. 

     A pequena Giulia sobreviveu e, antes de completar 16, foi desposada por Giuseppe Esposito, um próspero comerciante. A felicidade do casal parecia completa com o nascimento do primeiro filho, Carluccio. Todavia, o menino não chegou aos seis meses. Foi levado por uma febre de mais de 40 graus.

     Giulia, apesar do enorme sofrimento, engravidou mais três vezes. Todos meninos, todos mortos antes dos sete. Até que, finalmente, veio a pequena Alice, única sobrevivente. Herdou tudo, cresceu formosa, casou-se. A sina continuou, pois apenas a única filha vingou. Todos os meninos morreram nos primeiros outonos. 

        O mistério continua pairando sobre aquela família. Ninguém sabe ao certo o real motivo por tantas tragédias. Há os que afirmem que a culpa disso tudo é daquele quadro, que ainda está na ampla sala de jantar. A moldura, de vez em quando, tomba para a esquerda, como se anunciando cada morte. É o rosto de uma bela mulher, cujos olhos parecem sonhar com o filho ainda no ventre. 
  • Nota de esclarecimento: O conto "O quadro torto" saiu na Coletânea Odisseia 2023 do Coletivo Fomento Literário.
  • O conto "O quadro torto" foi publicado pelo Notibras no dia 03/07/2023.
  • https://www.notibras.com/site/velha-mansao-do-entorno-tem-historia-de-arrepiar/

        

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Estelionato amoroso

Galanteador

    Mesmo o enorme espelho do quarto era incapaz de captar tamanha soberba. Aquele homem de beleza algo acima da média sorria todos os sorrisos possíveis. Os ângulos eram caprichosamente observados, como se Arnaldo não os conhecessem de cor desde sempre. 

    Aos 47, lutava contra a balança quase diariamente para manter os exatos 82 kg distribuídos em 1,78 m, que se transformava em algo pouco além de 1,80 por conta das palmilhas especiais. Um charme, diria boa parte das mulheres do Distrito Federal. E como falava bem, tal qual conhecesse assuntos diversos, dos mais simples aos mais rebuscados. Não que isso fosse necessariamente verdade. Todavia, diante daquele rosto tão distinto, como alguém poderia desconfiar?

    Arnaldo, sentado à mesa na sacada, observava com atenção o obituário do jornal. Aliás, um hábito que herdou de sua falecida avó, mas com intenções diversas. Enquanto a finada tinha lá seus costumes mórbidos, Arnaldo buscava viúvas desamparadas e endinheiradas. Um cafajeste, alguns diriam. Entretanto, o gajo tinha lá uma boa desculpa para tal intento: "Eu ofereço meus serviços de qualidade em troca de  alguns mimos. Nada mais do que meros mimos."

    Não por acaso, a desamparada Ruth, viúva recente do finado Alberico, se sentiu compelida a retribuir tamanha devoção com um Rolex. Não que o Arnaldo tivesse pedido algo em troca de tantos afagos, beijos e carícias. Ele simplesmente não pode dizer não àquela mulher de duas dezenas de anos mais vivida. Ademais, o que era um Rolex diante de tamanha fortuna herdada por Ruth? Uma ninharia, creio que todos concordariam.

    Arnaldo sorriu diante do anúncio do falecimento de Afrânio Barreto, conhecido empresário do ramo de calçados. A viúva, Sarah, convidava para a despedida repentina do saudoso marido, que mal havia completado 70. O velório e o enterro seriam naquele mesmo dia, ali no cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul. 

    Diante de tais informações, ele fez uma breve busca na internet e, depois de fazer algumas anotações, tratou de se arrumar, pois o espetáculo estava próximo a começar. O arremate final foi justamente o caríssimo relógio dourado, tão bem ajustado no pulso esquerdo da ave de rapina.

Sarah, a desamparada

    Um séquito considerável dava o último adeus ao finado marido de Sarah, enquanto essa, totalmente desolada pela perda, era amparada por amigos e familiares. Foi justamente nesse ambiente tristonho que entrou Arnaldo. Ele observou o lugar e, com a maior desfaçatez, foi direto para o caixão. Encarou o defunto como se o conhecesse de longa data e, sem qualquer esforço, enxugou uma lágrima providencial que escorreu pela sua face deslavada. 

    A viúva, sentada logo ali, não deixou de notar aquela figura estranha até então. No entanto, tão distinto era o cavalheiro, que se deixou levar por devaneios, ainda mais quando Arnaldo depositou um lírio sobre o morto. Ela, apesar de nunca o ter visto, teve certeza de que já o conhecia, bem como ouvira falar muito bem dele pela própria boca do marido. 

    Arnaldo, que de vez em quando se surpreendia com a sua capacidade de convencimento, foi até Sarah, que já o olhava como se fossem amigos de longa data. Talvez para não contrariar a viúva, os presentes cumprimentavam aquele estranho com a maior naturalidade. Ele pegou a mão direita de Sarah e a levou até seus lábios dissimulados. Disse palavras que a mulher queria ouvir, enquanto a encarava, com o intuito de hipnotizá-la. Nem precisava de tamanho esforço, pois a viúva já parecia totalmente envolvida por aquele homem de aparência tão digna. 

        _ Desculpe, sei que já nos conhecemos, mas não me recordo do seu nome.

        _ Arnaldo Carvalho, às suas ordens.

        _ Sim, isso mesmo! O Afrânio me falava muito bem do senhor.

        A conversa durou alguns minutos, até que Arnaldo teve certeza de que havia fisgado a velha. Ele tirou um cartão do bolso do paletó e o depositou nas mãos trêmulas de Sarah. Ela apertou aquele pequeno pedaço de papel e, tímida, o guardou em sua bolsa. Arnaldo se afastou e foi para o canto oposto, de onde poderia entender melhor as relações do falecido com aquela gente. Sentimentos sinceros, mas também abutres se engalfinhavam ao redor do féretro.

        Após quase duas horas daquelas lamúrias, eis que a desolada mulher autorizou o enterro. Arnaldo, atento a tudo, logo se postou ao lado esquerdo do caixão. Fez questão de pegar a alça dianteira e, com a ajuda de mais cinco cavalheiros, ergueu o caixão em direção à cova. Aquele gesto não passou despercebido por Sarah, que, mesmo chorosa, se sentiu confortada por tamanha devoção de um fiel amigo do falecido se fazer presente durante a dolorosa partida. 

        O ataúde foi cuidadosamente depositado no fundo da tumba previamente preparada. Depois das rezas e com o consentimento de Sarah, o coveiro pegou a pá e colheu uma boa quantidade de terra. No entanto, antes que o homem prosseguisse, Arnaldo tomou-lhe a pá e, ele mesmo, depositou aquele conteúdo sobre o caixão do morto. Em seguida, sem se virar para o coveiro, entregou-lhe a pá. Seus olhos se mantinham conectados aos de Sarah, e assim se prosseguiram até que todos foram se dispersando. Arnaldo, com um leve aceno de cabeça, se despediu da viúva e foi embora, certo de que logo se veriam novamente.

Márcia

        Arnaldo despertou ao lado daquela beldade. Seu nome? Márcia. Uma bancária de seus 28 anos, vizinha de prédio do amante, ali na quadra 216, Asa Norte. Há tempos os dois se conheceram numa reunião de condomínio, mas começaram a sair juntos apenas no último mês. 

        Márcia, apesar do trabalho intenso, conseguia conciliar bem seu dia, pois estava adaptada à rotina. É verdade que a paixão por aquele homem consumia boa parte de seus pensamentos, mas nada que pudesse comprometer seu excelente desempenho como gerente do Banco do Brasil. 

        Por outro lado, Arnaldo mal encontrava tempo para desfrutar aquele sentimento que o havia pego de surpresa. Não que ele já não tivesse passado por algo parecido, mas isso havia acontecido quando ele era um vendedor de carros numa concessionária. Desde então, o homem passara a ganhar a vida de outra forma: satisfazendo suas clientes, que, quase sempre, não sabiam que estavam diante de um profissional da arte de ludibriar. 

        Há quase duas décadas no ramo, Arnaldo tivera dezenas de namoros, noivados e, pasmem, seis casamentos em cidades distintas espalhadas pelo país, até se fixar na capital, onde, segundo suas próprias palavras, era justamente ali que se encontrava o poder e, consequentemente, os lucros poderiam ser bem maiores. Bigamia, aliás, era o menor dos seus crimes. 

        Ele teria mentido para Márcia desde o primeiro encontro. Disse que era empresário do ramo de importação. Fluente em inglês, não despertou desconfiança na mulher, mesmo porque ela não teria motivos para duvidar. Por que ele iria mentir? Seja como for, Arnaldo e Márcia passaram a se amar sempre que possível. Todavia, durante dois ou três dias, ele precisava se ausentar, sempre a pretexto de viagens a negócios. 

        Tais compromissos, aliás, envolviam a mais nova cliente de Arnaldo: Sarah. Pois é, parece que a mulher mal teve tempo de se sentir enlutada pela perda do finado Afrânio. Totalmente fisgada, ela se entregou à luxúria nos braços daquele homem. Apaixonada como uma garota de lá seus 15, encheu o namorado de mimos. Temos que ser sinceros, pois Arnaldo cumpriu muito bem seu papel, retribuindo cada ganho com o suor de seu corpo sobre o da viúva. 

Elaine

        Além de Ruth, Sarah e mais quatro viúvas endinheiradas, Arnaldo acabara de arrumar uma nova cliente. Quer dizer, cliente era como ele as chamava, mas todas pensavam que eram únicas na vida daquele homem. Seja como for, a mais recente iludida tinha nome e sobrenome: Elaine Honda de Albuquerque.

        Apesar de não ser viúva, a mulher carregava uma característica comum com as outras: a solidão. Casada com um famoso empresário, Elaine passava semanas sozinha na enorme mansão do casal, localizada no Park Way. No entanto, por conta desses acasos da vida, ela conheceu o agora amante justamente quando ele estava acompanhado de outra cliente, a Laura, num famoso restaurante da cidade. 

        Bastou uma troca de olhares para que o novo casal se formasse. Arnaldo, confiante como ele só, deu um leve toque no quadril de Elaine, enquanto ela já ia embora. Acabou ficando para mais uma bebida. Tomou duas, não se sabe ao certo quantas outras. Tanto é que a própria Laura, inocente, pediu ao amado que deixasse a amiga em casa. 

        Arnaldo atendeu prontamente o pedido de Laura. Mal sabia ela que estava colocando uma raposa dentro do próprio galinheiro. Já naquele dia, Elaine, totalmente embriagada, ordenou que o pobre Arnaldo fosse direto para um motel. Amaram-se e adormeceram ali mesmo, até que, depois de horas, ele, como qualquer cavalheiro, cumpriu com a palavra e, finalmente, deixou a amiga de Laura em casa. 

       Elaine, além de mais atraente que Laura, começou a encher o amante de presentes. Talvez querendo acabar com o relacionamento dele com a amiga, ela chegou a lhe fazer um pequeno empréstimo de cem mil dólares, já que Arnaldo mentiu dizendo que todo o seu dinheiro estava aplicado na bolsa de valores.   

     Abarrotado de trabalho, Arnaldo foi obrigado a dar mais atenção para Elaine, até que o corpo começou a dar sinais de estafa. Ele precisava de umas férias e, por isso, mentiu para as clientes. O calhorda inventou que iria fazer uma viagem a negócios para São Paulo. Todas, por incrível que pareça, acreditaram na lorota.

        Arnaldo chegou ao seu apartamento já tarde da noite naquela sexta-feira. Exausto, mal tomou um banho quente, caiu na cama. Poderia ter dormido durante dois dias, mas foi despertado pelo barulho da campainha no dia seguinte, por volta das 16 h. Com a cara amarrotada, o homem ainda tentou sorrir para Márcia, que entendeu que ele precisava dormir. Ele a convidou para entrar e, então, os dois acabaram adormecendo na cama abraçadinhos, como dois adolescentes apaixonados. 

Brasília, pequena Brasília

        Uma das características da capital é que parece que todo mundo se conhece. Isso não é necessariamente verdade, mas não é raro alguém falar para beltrano que conhece cicrano e, por conta dessas coincidências que acontecem frequentemente em Brasília, todos se veem como membros de uma grande confraria. Este, aliás, foi um erro de Arnaldo, que imaginou que a capital, por ser a capital, fosse uma cidade grande. 

        Pois lá estava a Elaine na agência do Banco do Brasil, a mesma em que a Márcia trabalhava. Toda sorridente, a ricaça não conseguia esconder a satisfação de se encontrar apaixonada. Tanto é que a gerente se sentiu à vontade para fazer um comentário.

        _ A paixão nos deixa assim.

        _ Bota assim nisso!

        As duas mulheres sorriam, quando, então, Elaine se sentiu livre, leve e solta para mostrar uma fotografia da razão de tamanha felicidade. Foi um baque! Diante daquele rosto tão conhecido, eis que Márcia quase perdeu as estribeiras. Lá estava Arnaldo, o seu Arnaldo, todo sorridente com Elaine em seu colo. No entanto, profissional que era, atendeu a cliente da melhor forma possível. A endinheirada Elaine continuaria faturando às custas de aplicações bem orientadas pela gerente. 

        Enquanto guardava a sua fúria para si, as horas foram desenrolando de maneira vagarosa, até que, finalmente, chegou o momento de se despedir de mais um dia de trabalho. Desorientada, Márcia foi caminhando para casa. Milhões de pensamentos passavam pela mente em polvorosa. Ora decidia uma coisa, logo em seguida já pensava em fazer outra. Certa estava de que colocaria um fim naquilo tudo logo mais.

        Chegou ao prédio onde morava, passou pelo porteiro sem cumprimentá-lo, apesar de sempre ter sido tão cordial. Enfurecida, entrou no elevador e apertou o terceiro andar, apesar de residir no quinto. Tocou a campainha do apartamento de Arnaldo. Nada! Ainda esperou por alguns instantes, até que subiu as escadas, abriu a porta e entrou no seu apartamento. 

        Ainda estressada, Márcia resolveu tomar um banho. Tirou toda a roupa e a atirou no cesto. Entrou no chuveiro e, não suportando tamanha dor, se sentou sob a água que escorria e chorou. Chorou copiosamente em soluços.         

Um corpo que se cala

        Arnaldo chegou tarde ao seu apartamento. Exausto por mais uma noitada satisfazendo a insaciável Elaine. Ele até pensou em inventar uma desculpa para se desvencilhar daquela mulher, ainda mais porque ela requeria cada vez mais atenção. Todavia, ele não poderia tomar uma atitude dessas, pelo menos até encontrar outra cliente tão generosa. 

        Sentou-se na poltrona da sala, enquanto olhava sorridente para o medalhão de ouro cravejado com diamantes formando as letras A e E, entrelaçadas. Realmente era uma grande prova de que Elaine ainda poderia render bons frutos. Levantou-se, foi até o quarto, se postou diante do cofre escondido atrás de um quadro comprado na feira da Torre de Televisão. Digitou o código e, como se acostumado a fazer aquilo diversas vezes, jogou a joia no fundo do cofre e o trancou.

        Na cozinha, abriu a geladeira, pegou a garrafa de vinho tinto quase vazia, resultado de um jantar há poucos dias com Márcia. Pegou uma taça, despejou o líquido, deu um leve giro com a mão. Sentiu o aroma do vinho e, apaixonado que estava, brindou à amada. Pensou em ligar para ela, mas precisava descansar. 

        Foi até a sala, onde se sentou na poltrona. O corpo cansado, a mente em polvorosa. Realmente estava apaixonado por Márcia. Sorveu o líquido e, em seguida, depositou a taça sobre a mesinha de centro. Sem perceber, adormeceu por uma hora ou duas.

        O homem foi despertado pelo latido de um cachorro num prédio próximo. Por um instante, pensou em continuar dormindo. Desorientado, acabou se levantando e se dirigiu ao quarto. Retirou os sapatos e se esparramou na imensa cama, mas não conseguiu voltar a dormir. Seu pensamento se mantinha na amada. 

        Arnaldo olhou para o pulso e viu as horas no seu Rolex: quase seis da manhã. Ele sabia que a namorada se levantava cedo, pois gostava de ir à academia nas primeiras horas. Tomou coragem, calçou os sapatos e foi ao banheiro.

        Olhou no espelho a cara amassada por mais uma noite mal dormida. Lavou o rosto, escovou os dentes, penteou os cabelos. Tomado de desejo, foi até o apartamento de Márcia.

        Diante da porta, tocou a campainha. Não demorou, a gerente do Banco do Brasil abriu a porta. Seu olhar era de desprezo, algo que Arnaldo há muito não via no rosto de uma mulher. 

        _ O que foi? Aconteceu alguma coisa?

        _ Como você pode ser tão cretino?

        Arnaldo, por mais culpa que carregasse sobre os ombros, não poderia imaginar o que teria acontecido. Márcia lhe contou que havia visto uma fotografia dele com Elaine. O homem tentou explicar, mas nada parecia convencê-la.

        _ Some daqui! Nunca mais apareça!

        Pego de surpresa, ele ainda tentou convencer a mulher com uma história, mas não teve tempo suficiente para criar uma desculpa convincente. Márcia estava decidida. Desesperado, Arnaldo segurou firme o braço da amada. 

        _ Me solta!

        Tomado de angústia, Arnaldo insistiu. Márcia, para se ver livre daquele homem, lhe desferiu um tapa no rosto. Enfurecido, ele segurou forte o pescoço da mulher, que se viu sem ar. Márcia, olhos arregalados, aos poucos foi perdendo os sentidos. Após quase três minutos, seu corpo, já sem vida, caiu na entrada da sala. 

        Arnaldo, desesperado com o que havia acabado de fazer, ainda tentou reanimar a amada. Todavia, já era tarde. Márcia estava morta. Assassinada pelas mesmas mãos que a acariciaram por alguns meses. 

        Ele fechou a porta. Levou o corpo da amada para o sofá. Arnaldo chorou por um instante, até que percebeu que precisava encontrar uma saída para aquela situação. Pensou, pensou, pensou, até que teve uma ideia, que, a princípio, lhe pareceu a mais óbvia. Decidiu colocar fogo no apartamento. 

        Foi até a despensa, onde encontrou uma garrafa de álcool. Jogou sobre o sofá, depois pelas nas cortinas, na mesa da sala. Foi até o quarto, onde olhou a cama. Lembrou-se das vezes em que ele e Márcia haviam se amado ali. Não teve dúvida. Jogou o resto do líquido sobre a cama. Riscou um fósforo e, não demorou, as labaredas lhe esquentaram a face.

        Voltou para a sala. Incendiou tudo ao redor. Olhou pela última vez o rosto sem vida de Márcia. Saiu do apartamento, pegou as escadas, logo estava no seu apartamento. Foi até o quarto, onde quase desmaiou na cama. 

        Arnaldo nem percebeu os gritos desesperados dos moradores: "Fogo! Fogo!" Também não ouviu a sirene do carro de bombeiros. Quando finalmente despertou, era como se tivesse tido um pesadelo. No entanto, não demorou, lembrou-se do ocorrido. Ele havia assassinado Márcia.

Investigação policial

        Após os bombeiros apagarem o fogo, a polícia civil foi acionada. Um corpo carbonizado havia sido encontrado no apartamento. Assim que os agentes Pedro e Gustavo chegaram ao local, o porteiro, Edmundo, falou que a única moradora daquela unidade era Márcia Gomes dos Santos.  

        Os policiais questionaram se Márcia estaria passando por algum problema. Edmundo respondeu que a mulher era sempre alegre. Inclusive, de acordo com o porteiro, ela havia se envolvido com um dos moradores do prédio: Arnaldo, do 302. Enquanto a perícia criminal estava no local, Pedro e Gustavo foram até o apartamento de Arnaldo.

        Eles tiveram que tocar a campainha várias vezes, até que Arnaldo surgiu com uma toalha enrolada na cintura. Os policiais perguntaram se podiam entrar. O morador, com um sorriso cativante, os convidou a se sentarem no sofá. 

        _ O senhor conhecia a senhora Márcia?

        _ Conhecia? Como assim? Nós somos namorados.

        _ O senhor não soube?

        _ Soube o quê? O que aconteceu?

        _ O corpo da senhora Márcia foi encontrado hoje. O apartamento dela foi incendiado.

     Arnaldo, depois de décadas de prática, não demorou a ficar com o rosto consternado. Talvez verdadeiras, as lágrimas escorreram até tocarem nos cantos dos lábios. O gosto salgado o fez imaginar que houvesse cometido algum erro, que pudesse incriminá-lo. 

        _ O que aconteceu com ela?

        _ O senhor não pode nos dizer?

        _ Não sei. Tudo estava tão bem entre a gente. O que aconteceu, meu Deus?

       Os policiais se entreolharam. Gustavo, então, entregou um cartão para Arnaldo. Ele pediu ao morador que fosse no dia seguinte conversar com eles na delegacia, ali mesmo na Asa Norte. O homem pegou o cartão e, em seguida, se despediu dos policiais. 

        Assim que os dois homens saíram, fechou a porta. Inúmeros pensamentos passavam pela cabeça de Arnaldo. Ele precisava agir antes que seu crime fosse descoberto. Pensou em diversas possibilidades, mas nenhuma lhe pareceu totalmente adequada. 

        Foi até o quarto. Abriu a parte de cima do armário, de onde retirou uma mala de viagem. Colocou-a sobre a cama e a abriu. Foi até o cofre, digitou o código. Retirou todos os objetos. Os atirou dentro da mala. Catou algumas roupas e fez o mesmo. Iria fugir. Precisa fugir. 

Mariane, a vizinha 

        Mariane trabalhava numa delegacia na Ceilândia. De tão entretida com as inúmeras investigações, nem soube do incêndio ocorrido no prédio onde morava, justamente em um dos apartamentos do seu andar. Saiu do trabalho quando o relógio já anunciava quase 22 horas. 

        A agente suspirou, como se aliviada por mais um dia produtivo. Ela estava trabalhando num caso de uma quadrilha de estelionatários, que há tempos aplicava golpes na região. Mariane, assim que ligou o carro, pensou que, dentro de no máximo mais uma semana, concluiria seu relatório e, então, o entregaria para o delegado. Este, por sua vez, não teria dúvida em indiciar os criminosos. 

        Durante o trajeto, a mulher ligou o rádio. Não demorou, ouviu a notícia do tal incêndio ocorrido justamente no edifício onde morava. Ouviu o nome de Márcia Gomes dos Santos, mas não se lembrava dela. Quer dizer, tinha vaga recordação, mas não estava certa. Seja como for, a ansiedade de chegar logo a sua residência a fez pisar mais fundo no acelerador, apesar dos inúmeros radares na Estrutural.

        Assim que entrou na garagem subterrânea do seu prédio, sentiu o cheiro de queimado no ar. De pé em frente ao elevador, apertou insistentemente o botão, como se isso fosse fazê-lo ir mais rápido. Resolveu ir pelas escadas e, depois de vários degraus, finalmente chegou ao quinto andar. 

         Esbaforida, passou pela porta do apartamento de Márcia e, então, rumou para o seu, que ficava ao fundo do corredor. Entrou e foi ver se havia algum dano. Nenhum. Tudo indicava que o incêndio havia sido contido antes de se alastrar. 

        A policial buscou informações na internet e, então, ficou a par do ocorrido, isto é, das coisas que a polícia civil já havia informado para a imprensa. As investigações prosseguiriam. Em seguida, Mariane pensou que era melhor relaxar, pois teria muito trabalho no dia seguinte.

        Tomou um banho bem quente. Colocou uma camiseta velha e um short folgado. Com os cabelos enrolados em uma toalha, foi até a cozinha, onde preparou um chá de camomila. Mas, antes que levasse a xícara aos lábios, ela se lembrou que havia uma câmera na entrada do seu apartamento. 

        Mariane puxou as filmagens. Lá estava um homem em frente à porta do apartamento de Márcia. A policial já havia visto aquele rosto, sabia que era morador do edifício, mas não sabia seu nome. A agente baixou o arquivo para um pen drive e saiu de casa decidida a entregar aquelas filmagens na delegacia da Asa Norte, mesmo que já se passasse da meia-noite.

Perseguição fatal

        Mariane trocou de roupa e desceu de elevador até a garagem. Assim que abriu a porta do seu carro, percebeu que um homem estava colocando uma enorme mala no veículo logo adiante. Por um instante, ela não prestou muita atenção, até que, finalmente, a policial o reconheceu. Era o mesmo homem que aparecia nas filmagens. 

        A mulher, apesar de surpresa, tentou disfarçar, enquanto Arnaldo entrava no veículo e, apressado, saía do local. Mariane foi em seu encalço, pois percebeu que ele estava fugindo.  Ela, apesar de estar armada, sabia dos riscos da situação. Então, telefonou para a delegacia da Asa Norte. 

      Enquanto perseguia Arnaldo, Mariane foi informada pelo policial que a atendeu que os responsáveis pela investigação do caso eram os agentes Pedro e Gustavo. Ela entrou em contato com Pedro, que se prontificou a dar apoio para a colega.  Ele telefonou para Gustavo, que pulou da cama e, em menos de dez minutos, já estava dirigindo em direção às coordenadas que haviam sido informadas por Mariane.

       Arnaldo, já na altura do Eixão Sul, percebeu que estava sendo seguido. Ele acelerou, mas Mariane também fez o mesmo. O homem começou a suar, apesar do frio seco do inverno brasiliense. Temendo ser capturado, acabou perdendo o controle do veículo pouco tempo depois de sair da Asa Sul. Bateu nas grades do zoológico. 

        Atordoado, Arnaldo desceu do carro e pulou a cerca. Mariane telefonou para Pedro e o informou do ocorrido. Ele pediu para que ela o aguardasse. Gustavo chegou logo em seguida.

        Mais alguns minutos, Pedro estacionou próximo aos colegas. Os três pularam a cerca e entraram no zoológico. Enquanto isso, Arnaldo tentava se esconder no meio daquela escuridão, ao mesmo tempo em que alguns animais emitiam sons. 

        Os três policiais sacaram suas armas e começaram as buscas no local. Os três ligaram suas lanternas e tentavam iluminar o ambiente. Pedro, ao passar pelo fosso dos leões, tomou um susto, pois o rei dos animais rugiu tão alto, que parecia que estava logo atrás do policial. 

        Desesperado, Arnaldo sentiu que estava prestes a ser capturado quando, então, se viu diante de um enorme lago. Sem muitas opções, ele entrou na água e ficou apenas com parte da cabeça para fora, o suficiente para continuar respirando. Dali, ele podia avistar as luzes emitidas das lanternas a aproximadamente 300 metros. 

        Os pensamentos do fugitivo estavam a mil quando, então, sentiu uma pressão enorme na perna direita, que o arrastou para o fundo do lago. Era Dalila, a famosa jacaré-açu  que havia levado pânico à capital federal há poucos anos. O pobre homem não teve chance contra mais de cinco metros de força bruta. Foi devorado pelo enorme animal.

       Os policiais continuaram a busca por mais quase duas horas, quando, finalmente, decidiram retornar para os veículos. Já fora do zoológico, conversaram por mais algum tempo. Os três imaginaram que Arnaldo havia cruzado o zoológico e, então, evadido para algum local. Todavia, estavam certos de que, mais cedo ou mais tarde, ele seria capturado. Seja como for, já sabiam que Márcia havia sido assassinada.

        Os dias seguintes não revelaram o paradeiro de Arnaldo, apesar das inúmeras fotografias expostas pela mídia. Enquanto isso, na pequena ilha no meio do lago do zoológico, Dalila exibia um abdômen enorme, pois ainda estava digerindo os restos mortais do estelionatário amoroso. Logo ali ao lado, sob uma árvore, um macaco brincava com um relógio. Mas não qualquer relógio. Era um Rolex.

Fim

  • Nota de esclarecimento: O conto "Estelionato amoroso" foi publicado, em formato de folhetim, pelo Notibras entre os dias 16/05/2023 e 24/05/2023.
  • 1) https://www.notibras.com/site/arnaldo-galanteador-comecou-pelo-obituario/
  • 2) https://www.notibras.com/site/sarah-desamparada-cai-na-rede-do-sedutor/
  • 3) https://www.notibras.com/site/marcia-bancaria-cai-no-jogo-do-amante-farsante/
  • 4) https://www.notibras.com/site/elaine-viuva-de-marido-vivo-vira-a-nova-amante/
  • 5) https://www.notibras.com/site/brasilia-cidade-pequena-e-seu-lado-indecente/
  • 6) https://www.notibras.com/site/marcia-traida-rompe-e-vira-um-corpo-sem-vida/
  • 7) https://www.notibras.com/site/investigacao-policial-e-arnaldo-pensa-em-fuga/?fbclid=IwAR02Uykalj0RlG5O_c5yehXHDExwAJG8uPcL7h48odYhNxoa1BLHHeDUgcw
  • 8) https://www.notibras.com/site/investigacao-policial-e-arnaldo-pensa-em-fuga/
  • 9) https://www.notibras.com/site/dalila-reaparece-e-arnaldo-vira-sobremesa-no-zoo/

Juventude eterna

    

    Apolo, apesar do nome, não tinha aparência apolínea. Não que fosse feio. Mas nada de especial. Passaria quase despercebido pela multidão, caso não fosse todo aquele cuidado com a aparência. Morria de medo de envelhecer. 

      Se surgisse um fio de cabelo branco, lá ia o homem arrancá-lo com uma pinça ou, na falta de uma, com as pontas dos dedos. Doía, é verdade, mas dor pior era perceber que, de tantos cabelos brancos, ele não conseguia arrancá-los todos. Ou, se o fizesse, ficaria igualzinho ao seu vizinho, que só saía de casa após passar uma generosa camada de protetor solar na careca. 

      Pensou em usar boné ou até mesmo um chapéu. Logo desistiu da ideia, mesmo porque não fazia muito sentido usar tais apetrechos o tempo todo. Optou por uma estratégia mais radical. Trabalhosa, é verdade, mas que o deixaria tranquilo para desfilar seus cabelos cheios de gel.

        Decidido, entrou logo cedo em uma farmácia. Parou diante da estante de produtos de beleza e, não demorou, escolheu a tinta com o tom mais próximo ao dos seus cabelos. Voltou quase correndo para casa, tamanha a ansiedade para se livrar daqueles sinais de velhice, que tanto o incomodavam.

        Mal abriu a porta, foi ler a bula. Era até simples. Despeja aqui, mexe ali, logo a coisa ficou pronta. Diante do espelho, começou a passar aquela mistura nos cabelos. Algum tempo após, entrou debaixo do chuveiro e viu aquela tinta escura descer pelo ralo. Pronto! Seus cabelos ficaram como novos. Sentiu vontade de passear pelo bairro, onde todos poderiam perceber que ele estava mais jovem. 

         O homem vestiu uma calça jeans quase apertada, pegou a blusa mais descolada, calçou o par de tênis colorido. Ficou em pé diante do espelho por quase meia hora. Olhou-se de todos os ângulos e, satisfeito, saiu quase saltitante de felicidade. 

        Já na calçada, fazia questão de parar diante de todas as vitrines. Não que quisesse comprar algo, mas apenas se sentiu apaixonado pela própria imagem refletida. De vez em quando, um vendedor saía para atendê-lo. A resposta, no entanto, era sempre a mesma: "Obrigado, estou apenas olhando". 

        Após quase o dia inteiro batendo pernas, o estômago reclamou. Se estivesse em qualquer outro lugar, entraria numa lanchonete. Como morava em Porto Alegre, sentou-se à mesa da primeira lancheria que encontrou.

        De tanta fome, resolveu encarar um xis. Enquanto aguardava, observava os outros clientes, certo de que todos estavam admirando seu cabelo quase preto. Que sensação deliciosa!

        Tão distraído estava em seu devaneio, que não percebeu quando a Anita, uma colega que há muito não via, se sentou justamente à mesa ao lado. Não demorou, os dois cruzaram olhares e, em seguida, resolveram se sentar juntos. 

        A mulher fez seu pedido, mas não tão guloso como o do amigo. Apenas um hambúrguer modesto e um suco de laranja. Apolo, vez ou outra, passava as mãos nos lustrosos cabelos, talvez para impressionar a figura feminina à sua frente. Ela sorria, como se estivesse gostando de ser paquerada daquela forma.

        _ Sabe o que sempre gostei em você, Apolo?

        _ Não. O quê?

       _ Apesar da aparência até jovem, de vez em quando você age como um velho. No bom sentido, é claro!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Juventude eterna" foi publicado pelo Notibras no dia 27/8/2023. Por uma solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história fizesse alguma referência ao Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/cabelos-negros-falsos-fazem-apolo-brochar/

quarta-feira, 17 de maio de 2023

O taciturno e a santa


    Arquimedes, desde sempre,  possuiu pouco talento para fazer amizades. Não fora popular nem mesmo entre os seis bebês que nasceram quase ao mesmo tempo no hospital do bairro. Não que fosse feio, mas o contrário também não era algo que se pudesse afirmar sem aquele incômodo peso na consciência. 

    Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, se bem que, durante a adolescência, alguém poderia facilmente afirmar que o rapaz passara fome. Que nada! Era mera consequência do estirão próprio da idade, época em que a desproporcionalidade tão disforme é apenas mais um dos problemas que aflige boa parte dos seres humanos. Quanto às espinhas, estas vieram aos quilos pontuar a face sem atrativos do então jovem Arquimedes. 

    Sem talento para os esportes, ao rapaz só restava ficar no gol, já que este era o local dos perebas. E, de tanto levar boladas na fuça, desistiu disso tudo e meteu as caras nos estudos. Formou-se com certo mérito e, antes dos 30, se enfiou num serviço burocrático em certa repartição pública. 

    Mal entrava no trabalho, ia direto para a mesa bem ao fundo, enquanto  a maioria dos colegas, quase todos sorridentes, gastava tempo ao redor da mesinha do café. Esse distanciamento lhe trouxe apelidos jocosos, mas isso, aparentemente, não o incomodava, exceto um: taciturno. Todavia, se fazia de surdo e, consequentemente, se mantinha mudo. 

    Nos festejos na repartição, seja por conta de aniversários, seja por comemorações de final de ano, Arquimedes pegava seu quinhão de bolo e salgadinhos, além de um copo de refrigerante, e rumava para o seu canto. Diante daquelas iguarias, taciturno que era, passava mais tempo a pensar que comer. Não raro, as sobras eram maiores do que o comido. 

    Com a mente em polvorosa, Arquimedes nem se deu conta do desespero de seus colegas, quando o Joel, um dos mais animados, deu com a cabeça na quina da mesa de comes e bebes. Enfarte fulminante, sem nem tempo para uma mera prorrogação. O jogo se findou ali mesmo. 

    Diante de tamanha gritaria, Arquimedes foi despertado de seu transe. Olhou por um momento aquele rebu e, finalmente, tomou ânimo para ver o que estava acontecendo. Ele se aproximou e, então, logo percebeu o sangue escorrendo da testa do morto. Aquele líquido, vermelho como sangue, era sangue. Arquimedes se ajoelhou, esticou o braço e, utilizando a ponta dos dedos, não sentiu qualquer resquício de pulso no corpo ainda morno.

        O enterro foi no dia seguinte. Arquimedes pensou até em não ir, mas as circunstâncias o obrigavam. Não que fosse amigo do falecido. Na verdade, nem nutria qualquer simpatia por ele. Entretanto, por conta das sessões de terapia, o homem precisa mudar de atitude diante da vida. 

        Arquimedes chegou ao cemitério, onde já se encontravam familiares e amigos do Joel. Doroteia, a viúva, chorava bem ao lado do caixão. Desolada, era amparada por uma fila de pessoas. Arquimedes, que nunca havia estado em um velório, entendeu que deveria entrar naquela fila e, então, se postou logo atrás de uma senhora de lá seus 70 anos. 

        O homem prestava atenção a cada afago que a viúva recebia. As palavras de conforto eram processadas na mente de Arquimedes, que, àquela altura, se assemelhava à hora do rush. De certo que precisava de um guarda de trânsito para tamanho turbilhão de pensamentos, mas logo chegou a sua vez. E, querendo ser original, não conseguiu escolher as palavras mais adequadas, o que aumentou ainda mais o choro de Doroteia.

        _ Parabéns, senhora! O Joel está mais bonitão do que nunca!

    Todos olharam abismados para Arquimedes. Este nem percebeu o desconforto provocado e, antes que passasse a vez para o próximo da fila, findou suas mais sinceras condolências de maneira desastrosa. Seu cotovelo esbarrou na escultura de cerâmica ao lado do caixão. A santa espatifou no chão frio da capela. Pois é, Arquimedes acabara de matar a Nossa Senhora Aparecida!

  • Nota de esclarecimento: O conto "O taciturno e a santa" foi publicado pelo Notibras no dia 27/05/2023.
  • https://www.notibras.com/site/arquimedes-parabeniza-a-viuva-e-mata-a-santa/

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Calçado de mendigo

    

    De todos os seres humanos que vivem em uma cidade, provavelmente os mais desprotegidos sejam os mendigos. Todavia, essas pessoas são, também, as mais rechaçadas, como se fossem pragas dessa sociedade incapaz de encontrar lugar digno para elas. Em tempos de meritocracia, que se virem! Como se fosse simples assim.

     Pois é justamente nesse quadro que se encontra o Francisco, que é apenas mais um entre tantos indivíduos em situação de rua neste país imenso chamado Brasil. De tão enorme, por aqui deveria ter espaço mais que suficiente para cada cidadão. No entanto, a coisa não funciona dessa maneira.

    Também há de se notar a enorme religiosidade dos brasileiros. Somos, desde antes do nascimento, inundados de crenças, o que nos transforma em verdadeiros bastiões da moral e dos bons costumes. Se bem que isso, também, não procede. Seja como for, gostamos de alardear para os quatro cantos que somos assim. E ai de quem se atreve a nos contradizer. Certamente escutará um "Sai pra lá, Satanás!"

        Voltemos ao nosso amigo, ou melhor, conhecido, já que mendigos não possuem amizades fora das ruas. Talvez nem por esses ambientes desprotegidos tenham algum. Quiçá o cachorro que lhes faz companhia nas noites frias de inverno. As pulgas, de certo, não fazem distinção entre o sangue de um e de outro.

        Angélica, apesar do nome e de toda a sacristia que a acompanhava por onde fosse, adorava alardear que havia vencido na vida graças aos próprios esforços. Obviamente que ela suprimia o fato de ter tido pai e mãe dedicados, que até lhe deixaram certa herança: uma padaria, uma bela casa de esquina, sem contar os dois apartamentos, que lhe garantiam um bom aluguel. Completava a renda com a aposentadoria magra de professora. No final das contas, figurava sem problema na dita classe média, conforme o último censo. 

        A mulher, de vez em quando, passava pelo pobre Francisco. Geralmente, era o momento em que Angélica virava o rosto para o outro lado, como se sentisse repulsa daquele ser desprezível. Ele, de tão miserável, possuía apenas o pé esquerdo de um gasto sapato. De acordo com a precisão, variava de lado, seja por uma ferida que não sarava, seja por um calo mais incômodo.

        Não se sabe ao certo o que fez com que Angélica olhasse pela primeira aquela figura imunda. Seja como for, ela o fez. E o observou por inteiro. Altiva, mas com certa dó da situação daquele homem, sentiu vontade de lhe fazer uma caridade.

        _ Qual é o número do seu pé?

        _ O que tiver, dona. Pé de pobre não tem tamanho.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Calçado de mendigo" foi publicada pelo Notibras no dia 30/05/2023.
  • https://www.notibras.com/site/chico-dois-pes-um-sapato-e-a-doacao-de-angelica/

sexta-feira, 5 de maio de 2023

O destino de Perfídia

        Não sei se o que me aguarda é o Céu ou o Inferno, mas, confesso, continuo dormindo tranquilamente, apesar de malfalada há décadas. E tudo por conta de um ciúme tolo, quase infantil, do meu então marido, o senhor Bento Santiago, vulgo Bentinho. Talvez você ainda não esteja ligando o nome à pessoa. Pois bem, fui honestamente batizada de Capitolina, mas foi como Capitu que caí na boca do povo. Seja como for, posso lhe garantir que não fui a única. Duvida? Então, preste atenção na história que irei lhe contar.

    Perfídia ganhou esse nome pela sonoridade que tanto agradou sua mãe, fã de Altemar Dutra. Cresceu sem entender as risadinhas de alguns quando descobriam como a garota se chamava. A mãe, por sua vez, nunca se deu conta de que havia traçado o destino da filha assim que a registrou no cartório. 

     A menina cresceu mais formosa do que a maioria naquela cidade. Tão bela se tornou, que logo atraiu os olhares mais sortidos. Obviamente que os olhos que a fitavam não eram apenas os de desejos, mas também os de inveja. Alguns até ambíguos, onde esses sentimentos se misturavam.

    A jovem, bem cedo, causou discórdias inconciliáveis. Tanto é que até o padre foi chamado para resolver tais pendengas, já que os pastores não se entendiam, pois todos pareciam desejar aquele pitéu para si. Diante de tamanha hipocrisia, juntou-se uma pequena quantia, que foi entregue à mãe de Perfídia, com a condição de irem embora daquela cidade. 

    Sem maiores perspectivas, as duas compraram passagens pro próximo ônibus e, antes que a primavera terminasse, rumaram para a capital. Mal chegaram, a velha morreu de disenteria, coisa comum naqueles tempos. Sozinha, Perfídia, apesar da tristeza de ter que enterrar sua própria mãe, se sentiu livre pela primeira vez na vida. 

    A mulher usou preto por alguns dias, mas logo percebeu que havia nascido para as cores vivas. E foi assim que resolveu procurar pelo primeiro emprego, já que o dinheiro andava ainda mais curto do que a sua saia. E lá foi a moça de pernas torneadas em direção à padaria da esquina, onde não havia cartaz de procura-se funcionário. E daí? Isso não foi empecilho para Perfídia.

    O velho Joaquim, que nem era tão velho assim, foi chamado pela balconista, a Doroteia. Uma mulher estava à procura de emprego. Joaquim resmungou algum palavrão e se levantou enfurecido, certo de que aquele dia havia começado pelo avesso. No entanto, assim que bateu os olhos naquela formosura, mudou de ideia e a contratou antes que ela fosse embora. 

    Viúvo há poucos meses, o dono da padaria se viu apaixonado por Perfídia. Então, assim que as coisas se ajeitaram, ele tomou coragem de propor casamento para a jovem mulher, que mal entrara na casa dos 20. Ela, que estava passando pano sobre o balcão, gostou da proposta e, já no mês seguinte, com toda papelada em mãos, o casório foi realizado. 

    Perfídia gostou de acrescentar o sobrenome do marido ao seu, já que ela carregava, desde sempre, apenas o da sua falecida mãe. Perfídia da Silva Almeida. Soava respeitoso. A mulher gostou tanto, que fez questão de emoldurar a certidão de casamento e pendurá-la na ampla sala do apartamento, que ficava justamente em cima da padaria. 

    Agora ela era a patroa e, por isso, não precisava mais se preocupar com a faxina do comércio. Gastava seu tempo entre o salão e algumas compras. Joaquim, mesmo sendo mão de vaca, não se atrevia a contrariar a esposa, pois era muito bem recompensado durante as noites de alcova. O ciúme, todavia, estava sempre presente, pois todos os fregueses da padaria corriam os olhos pelo corpo de Perfídia. Tanto é que ele insistia para que ela não ficasse muito tempo por ali.

    Obediente como uma boa esposa que era, Perfídia mal pisava no comércio do esposo. Gastava seu tempo lendo as revistas de fofocas ou, então, batendo perna pelo bairro. Pra quê? Acabou se encantando por Augusto, um belo gajo recém-casado. Apesar dos compromissos firmados, os dois se entregaram às tardes num quarto de motel do outro lado da cidade. Afinal, era necessário manter a seriedade.

    Não se sabe se a esposa de Augusto descobriu o entrevero, já que era moça de família e, portanto, sabia que homens dignos também precisavam se divertir. Quanto ao Joaquim, parece que ele andava preocupado com os sumiços da mulher. Tanto é que pensou em dizer para ela passar mais tempo na padaria, mas logo se lembrou dos fregueses atrevidos. 

    Para encurtar a história, eis que era uma quarta-feira, por volta das 14 h, quando Joaquim tombou direto no chão da padaria. Clientes e funcionários tentaram acudi-lo, mas já era tarde. O coração do velho havia parado antes mesmo do rosto se esborrachar na cerâmica fria e gasta. Enquanto isso, lá do outro lado da cidade, a agora viúva se divertia com o amado entre os felpudos lençóis da traição. Perfídia!!! 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O destino de Perfídia" foi publicado pelo Notibras no dia 06/05/2023. Por solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/joaquim-cai-como-um-pao-mofo-e-a-viuva-enriquece/
  • O conto "O destino de Perfídia" faz parte da antologia Nova Literatura Indie da editora Obook, 2023.
  • O conto "O destino de Perfídia" faz parte da antologia Capitu da Cartola Editora, 2023. Para tal coletânea, foi acrescido o primeiro parágrafo, que, originalmente, não constava nas publicações anteriores.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Dezessete anos no arame

    Belarmino, mal saiu pelo enorme portão de ferro, teve os olhos ofuscados pelos raios solares. Apertou as vistas e, em seguida, quis abri-las para sentir ao máximo toda aquela liberdade. Aos 42, ele havia passado mais da metade da vida atrás das grades, sendo que, os últimos 17, sem qualquer direito a saídas. Ou, no linguajar dos detentos, o homem havia puxado 17 anos no arame.

    Sem muito estudo, acabou conseguindo um emprego de ajudante de pedreiro. O salário mal dava para as despesas. Não que fossem tantas, pois Belarmino fora morar no quartinho de fundos da casa de uma sobrinha, a Dolores, que era casada com Marcos, um próspero corretor de imóveis da região de Porto Alegre. Todavia, apesar dos gastos não serem tantos, a necessidade era tamanha, que logo sentiu desejo de viver, em um ano, tanto tempo perdido.

    Não raro, Belarmino acordava suado durante as madrugadas. Era difícil aceitar que não precisava mais se esquivar da navalha de um desafeto. Corpo teso, adrenalina corria nas veias saltadas dos seus braços. Sentado na cama, puxava um cigarro barato do maço. Fumava um, dois, às vezes até cinco, enquanto lembranças o atormentavam. 

    O pensamento o levou a uma noite quente na cela, que dividia com exatos 42 detentos. Ele, que era um dos mais antigos, estava deitado próximo às grades, uma posição privilegiada, que aplacava aquele estado deplorável. Até uma leve brisa corria pelo corredor da prisão naquele dia e, relaxado, adormeceu. Um erro.

    Uma dor intensa no peito o despertou. Calango Doido, que buscava alcançar o topo da pirâmide, havia esfaqueado Belarmino. Por sorte, a faca encontrou o esterno do homem. Partiu-se, momento em que, agora de olhos bem abertos, Belarmino arrancou o pedaço espetado em seu peito e, sem pensar, o enfiou direto no pescoço do seu algoz. 

    Calango Doido levou as mãos ao próprio pescoço, mas já era tarde para se fazer algo. Não conseguiu gritar, pois foi sufocado pelo próprio sangue, que jorrou. Agonizou por não mais de dois minutos. Morreu ali diante daqueles 42 homens. Por coincidência, a mesma idade de Belarmino hoje, que continua preso ao seu passado.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Dezessete anos no arame" foi publicado pelo Notibras no dia 21/07/2023. Por uma solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto original para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/solto-fumando-belarmino-fica-preso-ao-passado/