quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Douglas, o segurança de cabaré

    

    Douglas, apesar do nome pomposo, não passava de reles mortal, desses que diariamente são pisados por quem nasceu com os pés bem calçados. E, caso a sola fosse pontiaguda, tratava logo de aprumar o lombo e aceitar a sina que lhe cabia. 

    O homem não chorava mágoas, mesmo porque não lhe sobrava tempo para tal, já que o trem não iria prolongar a parada por bico de resmelengo. Corria sem tempo para pensar e, junto à massa, firmava o corpo para não perder o equilíbrio com o sacolejar do vagão. Até sobrava um sorriso quando, finalmente, descia na Central do Brasil, de onde apressava o passo até o Largo da Carioca, mesmo porque era prudente economizar o dinheiro do metrô para momentos de maior precisão. 

    Aquela rotina, que se iniciara há mais de uma década, só lhe dava folga aos domingos, isto é, desde que não tivesse que fazer um extra pelo Centro. Para quem não nasceu endinheirado, um a mais era muito bem-vindo. De faxineiro, garçom, porteiro ou guardador de carros, Douglas se travestia de acordo com a ocasião. Até segurança de cabaré, emprego arranjado muito mais por indicação do que pelo físico, pouca coisa além de franzino. 

    Douglas, aconselhado por um mais tarimbado, logo percebeu que um olhar vazio, aliado a um bigodinho bem aparado, era mais que suficiente para desencorajar quase todos os fregueses indispostos ao pagamento pelos serviços prestados pelas funcionárias do recinto. É verdade que, para os demais, havia um outro remédio, bem firme à cintura. Um bom cassetete de madeira envolto com couro numa das pontas, para não causar calos nas mãos de quem batia. 

    O gajo, por mais complicadas situações que enfrentava, jamais havia retirado o porrete, a não ser para o guardar na gaveta da sala da cafetina, quando o turno se findava. Não seria ele a se indispor com algum bacana por conta de mal-entendido. Douglas sabia seu lugar e, de lá, só arredava o pé se fosse para fazer as vontades de Larissa, uma das mais requisitadas do local. O homem, na verdade, parecia arrebatado por aquela beldade. E, certamente, estava!

    _ Você tem namorado, Larissa?

    _ Por que essa pergunta, Douglas? Tá pensando em me pedir em namoro?

    Sem pedido formal, o romance daqueles dois quase não aconteceu, caso não fosse por um desses acasos que não costumam surpreender os azarados. Douglas, que nem jogava no bicho, acordou certo dia e apostou no burro. 

    Deu burro! Não ficou rico, mas ganhou o suficiente para não precisar economizar no dinheiro do metrô por um bom tempo. Supersticioso que era, não gostava de mudar de hábitos assim tão de repente. Continuou indo a pé da Central do Brasil até o cabaré. 

    _ Douglas, por que esse sorriso bobo? Por acaso ganhou na loteria?

    _ Larissa, minha flor, pois você acredita que ganhei no bicho?

    Aqueles dois engataram um romance, ou melhor, namorico, mesmo porque Larissa, moça dedicada ao ofício, não tinha lá muito tempo para dar atenção a outro, ainda mais quem quisesse usufruir daquilo tudo sem meter a mão no bolso. Ah, não mesmo! Alguns beijinhos e, vá lá, uns amassos aqui, outros ali.

    Por mais que a mulher tentasse, não conseguia arrancar um vintém do pretendente. Mas o quê? Se aquele dinheiro não lhe era devido, era mais que óbvio que aquele corpo, com tantas curvas a serem exploradas, se fazia merecedor. 

    Diante daquele impasse, Larissa não teve escolha e, então, confidenciou suas intenções aos irmãos, dois trogloditas sem tutano, mas recheados de disposição nos músculos. Sequestro! Isso mesmo, meu senhor! 

    A princípio, o plano era repleto de detalhes, mas que, por conta da incapacidade intelectual dos executores, se transformou em um simples assalto no momento em que a vítima estaria retornando para o lar, doce lar. E foi como aconteceu naquela madrugada, quando um sonolento Douglas abriu a porta do seu modesto quarto e sala em Madureira. 

    Douglas nem tentou reagir. Tratou logo de levantar o velho colchão da cama, onde havia guardado a quantia exata de doze mil reais. Ele até pensou em depositar tudo no banco, mas ficou com medo de ser pego em alguma malha fina do tal leão do Imposto de Renda. 

    O homem perdeu tudo. Ficou triste, é verdade. Mas logo tratou de se recompor, pois, afinal, nunca tivera mais do que o suficiente para não ter que virar mendigo. Não virou, ainda mais porque continuou a usar as pernas para caminhar da Central do Brasil até o cabaré. Nada de metrô! Aquilo era luxo.

    Larissa pagou o que devia aos irmãos. Quinhentos para cada um e nada mais. Estava de bom tamanho. Não seria ela que iria sustentar vagabundo. Se quisessem mais, que corressem atrás dos próprios sonhos.

    Pois bem, mas coincidência pouca é bobagem. E não é que, dois dias após o roubo, aqueles dois trogloditas apareceram justamente no trabalho da irmã? Isso mesmo! Não foram lá para pedir dinheiro, mesmo porque sabiam que Larissa era linha-dura. Foram gastar tudo com as colegas de labuta da irmã. 

    Douglas, cuja vida o moldou imune a traumas por conta de um mero assalto, bateu o olho naqueles dois e, logo, os reconheceu. Pensou em chamar a polícia, mas não o fez, pois, antes de pegar o aparelho celular no bolso, viu a sua amada indo em direção à mesa daqueles homens. O segurança se aproximou dos três, quase ao mesmo tempo em que Larissa lhe lançou o sorriso mais lindo do cabaré.

    _ Douglas, quero que conheça meus irmãos.

    O homem ficou estático, mas, incapaz de fazer gestos que demonstrassem qualquer animosidade. Estendeu alegremente a mão para cumprimentar os, agora, quase cunhados. Não que eles um dia fossem, realmente, se tornar, já que Larissa gostava de respeitar as regras da casa, ou seja, se consumiu, tem que pagar. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Douglas, o segurança de cabaré" foi publicado por Notibras no dia 29/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/amante-no-trabalho-perde-fruto-da-grana-do-bicho/


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Arroio Dilúvio

    Quem perambula por ali nem imagina o que se passa pela cabeça daquele curso d'água. E aquilo tem cabeça? Daqui a pouco vão dizer que possui até coração. História mais sem pé nem cabeça! Talvez você tenha razão, pode até não ter cabeça, mas o Arroio Dilúvio tem lá as suas vontades. 

        Para quem não sabe, tal riacho é natural da antiga capital, Viamão, onde viveu seus primeiros anos de menino. Cresceu e quis morar na bela Porto Alegre. E por aqui tem andado desde então, desfilando toda a sua placidez pela cidade. Aos poucos, como nada é para sempre, vem morrendo no Guaíba. Pois é! No Guaíba! Pra você ver como é que as coisas acontecem pelas bandas de cá. 

          A despeito do lixo jogado sobre sua cabeça, o Dilúvio tem, ao longo dos anos, evitado reclamações até há pouco. Ih, cá estou de novo com essa história de cabeça. Mudo para leito, ainda mais porque o arroio mais famoso por aqui grita a plenos pulmões que não aguenta mais tamanho descaso com a sua pessoa. Que parem urgentemente com essa coisa de fazê-lo de lixeira!

     Tem peixe? Tem ou, então, as garças que ainda insistem naquelas margens estão confabulando, talvez algo que ouviram dos antigos, quando por ali dava até para nadar sem correr o risco de erisipela, senão algo mais horrendo. Tipo o quê? Ah, sei lá! Uma leptospirose ou cólera. Vá saber!

      Tá vendo aquele casal? Qual? O de mãos dadas. Pois é, aqueles dois começaram a flertar logo ali. O rapaz, um bobalhão, não soube escolher as palavras apropriadas. Sorte dele, pois a moça parecia encantada por aquele tipo tão comum por aqui. 

     Certamente, você deve estar se perguntando: Afinal, o que é que o Dilúvio tem a ver com esse romance? Pois bem, lembrando nossos irmãos lá de cima, apenas lhe digo: Não se aperreie! 

   Como lhe contava, lá estavam aqueles dois. A moça, sábia como quase todas, e o bobalhão, apenas mais um rapaz entre tantos outros praticamente idênticos. Hesitoso, nem chegou a gaguejar, pois lhe faltaram sílabas para tal. E quis prosseguir, mas ela encurtou o passo e começou a apreciar a mansidão do arroio. Encantada que estava, não ouviu nem escutou murmúrio do gajo, mas apenas o sussurro daquelas águas lá embaixo. 

    A moça, não se sabe se após cinco ou dez minutos, disse que sim. O rapaz, certo de que a havia conquistado, lhe ofereceu o braço. Ela aceitou o convite e, enquanto atravessava a Ipiranga, voltou o olhar para o Dilúvio e lhe sorriu o sorriso mais apaixonado. Se isso aconteceu dessa maneira, não posso lhe afirmar com certeza. Entretanto, é assim que me recordo e, melhor, é como gosto de lembrar. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Arroio Dilúvio" foi publicado por Notibras no dia 28/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/romance-comeca-e-vira-eterno-no-hoje-rio-poluido/


    

 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Caio Fernando Abreu e o Van Gogh da minha mulher

    

    Eis que estava aqui no aconchego da sala admirando a réplica quase original de "Os Lírios", famoso quadro de Van Gogh, quando a minha esposa, a Dona Irene, me despertou do transe: "Amor, você acredita que o Caio Fernando Abreu morou aqui no nosso apartamento?". Levo alguns míseros segundos para concatenar as ideias aqui na cachola, que ainda estava presa a 1889, ano em que aquele Vincent, em momento de profunda inspiração, saiu do amarelo e atiçou a tela com verde e azul.

    _ Sério?

    _ Sério!

    _ Não acredito!

    _ Pois acredite!

   Antes de prosseguirmos nessa discussão, que já bem sei quem vai vencer, haja vista todas as anteriores e, certamente, as futuras, minha mulher me esfrega na cara a certidão vintenária. 

    _ Tá vendo?

    _ O quê?

    _ Aqui, ó, seu bocó!

    Como não encontro o nome do Caio Fernando, a Dona Irene me explica que ele havia comprado o apartamento no nome dos pais. Aliás, até quem vendeu a propriedade para o famoso escritor foi o Leozinho, que ainda mora aqui no prédio. Mesmo assim, ainda era difícil acreditar nessa história, por mais que eu desejasse. Isto é, até que a minha esposa, em um gran finale, me mostra uma fotografia do Caio Fernando aqui na nossa sala, posando próximo à janela. Touché! Não é que ela estava certa?

    Volto a olhar o Van Gogh preso à parede, mas a minha mente viaja até a crônica "A Morte dos Girassóis", do Caio Fernando. Apesar de não ser um grande conhecedor de sua obra, já li e reli esse belo texto algumas vezes ao longo dos anos. Meu devaneio me transporta para uma suposta relação entre a crônica e o quadro. Nada a ver ou, ao menos, não consigo vislumbrar qualquer paralelo entre os dois. Insisto, mas logo deixo de lado tal tese.

    Algo me perturba. Lembro que o Caio Fernando e eu ocupamos o mesmo espaço, mesmo que em épocas distintas. Será que ele escreveu algum conto ou crônica ou sei lá o quê cá onde estou? Bah! Aqui estou eu, carioca, me fazendo de gaúcho, tamanha a perplexidade que me domina. 

    Inquieto, preciso tomar um ar. Convido minha amada para beber um café na esquina. Já na portaria, olho a Getúlio. Em frente, o movimento no Bar do Vavá anuncia que hoje tem Colorado. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Caio Fernando Abreu e o Van Gogh da minha mulher" foi publicada por Notibras no dia 25/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/caio-fernando-abreu-e-o-van-gogh-de-dona-irene/

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

À flor da pele

    

    Rosa e Vanderlei, assim que terminaram a sobremesa, resolveram prolongar o momento com um café. Era um dia especial para os dois, que comemoravam nove anos de casados. A mulher, passando os dedos na joia que lhe adornava o pescoço, imaginou ter tirado a sorte grande. Não que o marido fosse o melhor dos homens, mas, segundo sua avalição, até que o Vanderlei não era dos piores.

    _ Sabe quem me ligou anteontem?

    _ Quem?

    _ A Catarina. 

    O esposo fez cara de quem não se lembrava dessa tal Catarina. Talvez nem a conhecesse, mas isso não impediu que Rosa lhe refrescasse a memória, mesmo que não existisse qualquer coisa para ser lembrada. Não querendo contrariar a esposa justamente naquele dia, Vanderlei lançou-lhe um olhar de interesse. Foi o bastante para que a mulher começasse a falar. Dona de uma memória praticamente infalível, Rosa contou que havia trabalhado por quase dois anos com Catarina numa cafeteria.

    _ Nessa época, a Catarina estava tentando passar no vestibular. Ela queria fazer administração, pois tinha vontade de abrir seu próprio negócio. Eu estava bem no início do curso de enfermagem. Éramos jovens e sonhadoras. 

    _ E o que ela queria com você?

    _ Anteontem?

    _ Sim.

    _ Queria marcar um encontro, pois precisava me contar algo. Mas creio que já sei o que é.

    A partir desse ponto, Rosa disse que havia um funcionário da cafeteria. Seu nome? André. Pois é, esse rapaz, que regulava em idade com as duas, não mais de 20, 22 anos, começou a se interessar pela Catarina. 

    _ O André a chamou para sair, mas ela não estava muito interessada. Mesmo assim, saiu. 

    _ Por quê?

    _ Por que o quê?

    _ Por que ela saiu, apesar de não estar interessada?

    _ A Catarina não estava com ninguém, então, aceitou.

    Depois do primeiro encontro, logo veio o segundo. Não que Catarina estivesse apaixonada, mas foi deixando a situação prosseguir. Ademais, não havia conhecido muitos homens nessa época e, parece, André seria praticamente igual aos demais, ou seja, um completo idiota. A amiga de Rosa talvez pensasse que todos os homens fossem daquele jeito. Não que estivesse por inteiro errada. Seja como for, os dois começaram a se relacionar de forma mais frequente. Ele dizia que a estava namorando. Ela apenas assentia com a cabeça. 

    O casal já iria completar seis meses de namoro, quando, então, Catarina chegou aflita ao trabalho. Ela foi até Rosa e lhe disse que precisava falar algo urgentemente. O que seria? Teria passado no vestibular? Não, isso não era possível, pois era início de abril. 

    _ A Catarina estava com os nervos à flor da pele.

    _ Por quê?

    _ Por causa do André.

    _ O que ele fez com ela?

   _ Nada. Simplesmente ela não o amava. Aliás, não tinha a menor condição dos dois continuarem juntos.

    _ E o que ela fez?

    _ Ué, se separou. Não saiu mais com ele. Mas depois de uns 20 dias reataram.

    _ Ele pediu pra voltar?

    _ Não. Foi ela.

    _ Como assim?

    _ Duas semanas depois que deu um passa-fora no André, ela descobriu que estava grávida. 

    Catarina não possuía família. Aliás, havia uma irmã, mas não se falavam há anos. Os pais moravam na região rural de Formosa. Ela não queria voltar para lá. No entanto, também não tinha condições de sustentar uma criança. Já passava aperto apenas com as próprias despesas. 

    André, apaixonado pela namorada e, agora, feliz pela ideia de ser pai, fez o pedido de casamento numa sexta-feira no final do expediente. Houve uma pequena comemoração com os funcionários, ao total seis, parabenizando os noivos. 

    _ Até hoje me lembro do olhar desesperançoso da Catarina. Mas foi o caminho que ela escolheu naquela época. 

    Rosa lembrou que o casório aconteceu três meses após, quando a barriga ainda não estava tão pronunciada. O casal foi morar nos fundos da casa dos pais de André. Ele até pediu para que a esposa largasse o emprego, mas a situação financeira não era das melhores. Catarina trabalhou até meados de dezembro, quando nasceu Joaquim.

    _ Então, as coisas se ajeitaram, né?

    _ Por um tempo, pois a Catarina adorou ser mãe. Era um chamego só com o filho. 

    Quando Joaquim estava para completar dois anos, Catarina, que nessa época havia saído da cafeteria e arrumado um emprego em um consultório de dentista, telefonou para Rosa. A voz embargada, precisava conversar com a amiga urgentemente.

    _ O que ela queria?

    _ Marcamos um encontro naquele mesmo dia. Foi na hora do almoço, perto do trabalho dela. 

    _ Tá. Mas o que ela queria?

   _ Ela estava com os nervos à flor da pele. Não suportava mais olhar na cara do André. Nem do cheiro. Ela odiava o perfume que ele usava. 

    _ Ela se separou?

    _ Sim. Ela saiu de casa com o filho. Mas acabou voltando com o André.

    _ Ele foi atrás dela?

    _ Não. Ela que foi.

    _ Como assim? Ela se arrependeu?

    _ Ela descobriu que estava grávida novamente. 

    _ Caramba! Que azar!

      Vanderlei continuava olhando com curiosidade para a esposa. Ele aguardou por um momento, mas nenhuma palavra da mulher. Rosa observou por um instante aquele homem que ela havia escolhido para ser seu. Tomou o último gole do café, que já havia esfriado.

    _ Vanderlei, meu amor, pague a conta. Estou exausta. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "À flor da pele" foi publicado por Notibras no dia 26/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/gravidez-faz-amor-de-catarina-virar-bumerangue/

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Antenor e o chimarrão

     

    Antenor, gaúcho de São José dos Ausentes, poderia muito bem andar de camiseta nos invernos de Porto Alegre. Mas, não. Tinha lá seus hábitos e pudores. Tradicional que era, carregava-os consigo junto à antiga cuia de porongo e um tanto de erva suficiente para uma invernada no lombo de um cavalo crioulo na lida com o gado. Não possuía muito estudo, mal assinava seu nome, mas palavra dada era no fio do bigode. 

    O homem, assim que chegou à casa da filha na capital, foi apresentado ao Solano, o genro, herdeiro de conceituada família da indústria paulista. Sem preocupações financeiras, o rapaz bem que poderia se dar ao luxo de nunca ter que acordar antes do meio-dia. Que nada, logo se meteu nos negócios da parentada e tomou gosto pela coisa.

   Olho no olho, Antenor cumprimentou o marido da filha. Diante daquele homem feito, o velho chegou a imaginar que estava apertando a mão de um menino de não mais de seis anos. Solano, por sua vez, acostumado com a lida de gente, procurou disfarçar o incômodo provocado por aqueles calos. Diferenças à parte, não se notou agrura entre os dois tipos. 

    Na manhã seguinte, Antenor se levantou mais cedo do que o dia. Ainda sonolento, foi até a cozinha, colocou um pouco de erva na cuia, despejou a água quente, um hábito desde sempre. Espetou a bomba enquanto caminhou até a sacada do amplo apartamento. Sentou-se numa das cadeiras, nenhuma com pelego. Tomou o mate até o primeiro ronco. Agora, sim, Antenor se sentiu acordado. 

    Tentou olhar ao longe, mas o edifício bem em frente o impediu. Não havia horizonte para perder de vista por ali. Pensou em sair para dar uma volta, mas logo deixou tal ideia no canto. Sem a companhia de Poncho, a montaria de anos, talvez não soubesse retornar. Decidiu esperar alguém sair da cama. Que fosse a filha, que na certa lhe faria companhia pelo resto da manhã. 

    Entretido em pensamentos vazios, não percebeu quando alguém abriu a porta do apartamento. Era Iranilde, a empregada. Ciente de que os patrões dormiam até mais tarde, entrou na ponta dos pés e foi até a cozinha. Gaúcha que era, sentiu o cheiro tão familiar da erva. A mulher farejou até encontrar aquele homenzarrão. Quem seria? Curiosa, aproximou-se e, antes que pudesse se anunciar, foi notada por Antenor, que logo lhe ofereceu o mate, aceito de pronto e bom grado.

    O par de última hora trocou algumas palavras, enquanto o porongo, de tempo em tempo, era compartilhado. Aquela era a primeira vez, desde que havia chegado a Porto Alegre, que Antenor sentiu alguma familiaridade com o ambiente. Iranilde, por conta das tarefas que ainda lhe aguardavam, levantou-se e retornou à cozinha, sendo acompanhada pelo homem. 

    Mesa posta, não tardou, lá estava a patroa ao lado do marido. Tomaram o café da manhã, enquanto Antenor jogava fora a erva usada. Trocaram olhares e poucas palavras, como se estranhos fossem. Talvez tentando se aproximar, a mulher puxou conversa com o velho.

    _ Pai, o senhor acredita que o Solano ainda não tomou mate?

    Antenor, homem simples que era, nem por isso deixou de sorrir debaixo do bigode comprido, que lhe tapava metade dos lábios. Tratou logo de preencher a cuia com a erva e despejar a água quente. Bomba devidamente posta, entregou o porongo ao genro.

    _ Não mexa na bomba.

    _ Bomba?

    _ É o canudo, meu bem.

   Solano, no primeiro gole, queimou o céu da boca e fez cara feia com o amargor do mate. Não querendo fazer desfeita perante o sogro, engoliu tudo sem reclamar. Em seguida, tentou devolver o porongo ao sogro, que insistiu.

    _ Beba até a cuia roncar.

    Solano, apesar de querer cuspir tudo aquilo, entendeu o recado e bebericou todo o mate. Seu corpo, não acostumado com aquela quantidade de cafeína, começou a tremer. Antenor, bugre até o talo, nem por isso deixou de admirar o genro. Estava aprovado. 

    Os dias se seguiram sem quase animosidades. Solano até que passou a gostar da presença do sogro e, não raro, o instigava a contar sobre a vida no campo. Antenor, de bom grado, aceitava aquela aproximação. O jovem até comprou cuia nova, mas que ficou em desuso. Não se muda tradição de uma hora para outra, ainda mais diante de tamanha autoridade sobre o assunto.

    Naquela manhã, uma manhã como as demais, lá estavam Antenor, a filha, Solano e Iranilde na cozinha. O velho, que acabara de preparar mate, chamou a empregada a se sentar ao seu lado. O homem tomou seu gole e, em seguida, passou a cuia para Iranilde, que, após beber, a repassou para a patroa. Esta pegou seu quinhão de mate e entregou o porongo ao marido. 

    Solano, já familiarizado com chimarrão, tomou um, dois, três goles. O rapaz, ainda com a cuia na mão, não percebeu o olhar de desaprovação do sogro. A esposa até pensou em lhe chamar a atenção, mas foi precedida pelo pai.

    _ Ouvi falar de um lá em São José dos Ausentes que morreu com um porongo na mão.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Antenor e o chimarrão" foi publicado por Notibras no dia 19/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/genro-aprende-sob-olhar-severo-que-cuia-e-de-mao-em-mao/

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Lembranças de uma traição

    

    _ Boa tarde, seu Olavo.

    _ Boa tarde, Antônio. 

    _ O de sempre?

    _ Sim, por favor.

    Em alguns minutos, o garçom retornou com o café, duas torradas e o pote de açúcar. Este, por sinal, jamais era tocado pelas mãos trêmulas do cliente. No entanto, o velho parecia apreciar a sua companhia, talvez porque ela lhe trouxesse memórias de um tempo em que ele ainda acreditava na doçura do mundo. 

    Olavo, antes mesmo de tocar os lábios na xícara, observou os transeuntes, que caminhavam como formigas. Há muito, ele era um desses que precisa correr atrás do quinhão de cada dia. Entretanto, desde que veio a aposentadoria, sua maior preocupação é com o café do final da tarde. Isso, aliás, não atrapalhava seu sono, já que não precisava mais lutar contra a ansiedade de não perder a hora para o serviço.

    Um casal, não mais de 30 anos, chamou a atenção do idoso. A mulher, com os braços em volta do pescoço do amado, um tanto mais alto, sorriu de algo que acabou de sair dos lábios do parceiro. O que aquele homem teria dito para arrancar tamanho sorriso daquela jovem? Isso é apenas o mote para tornar a bebida fumegante ainda mais saborosa, já que Olavo levou a xícara aos lábios.

    Seriam amantes? O ligeiro pensamento de Olavo o levou há quase duas décadas, quando, na saída da repartição em que trabalhava, esbarrou com Eulália, que, naqueles idos, se encontrava no auge da beleza feminina. Quanto a ele, nunca se enganara com sua vulgar aparência e, provavelmente por conta disso, jamais teria imaginado que algo pudesse vir a acontecer entre os dois. Aconteceu. 

    Com lá seus quase 50, Olavo ficou surpreso com o sorriso nos lábios de Eulália naquele dia. Ela, por sinal, sempre lhe pareceu distante, apesar de trabalharem em salas contíguas há anos. Até então, nada além de cumprimentos formais ou, no máximo, troca de informações a respeito do serviço. 

    O que aquele sorriso significaria? Estaria aquela mulher, de aparência muito além do que Olavo estava acostumado, interessada justamente nele? Mas por quê? Seja como for, já no dia seguinte, os lábios daqueles dois se tocaram pela primeira vez, quando estavam no metrô a caminho de Copacabana. 

    Eulália, obviamente, foi total dona daquela iniciativa, talvez porque já soubesse da incapacidade de Olavo dar um passo em direção à traição. É verdade que o homem ficou surpreso, mas aceitou sem qualquer resistência o frescor dos lábios daquela mulher estonteante, que o arrastou pelo braço até o apartamento dela, onde se amaram até que, próximo às 20h, ele se lembrou de que também era casado. 

    O marido de Eulália era geólogo e, por conta do trabalho, passava muito tempo embarcado ou em alguma plataforma petrolífera. Ela o amava, como fazia questão de dizer sempre para Olavo. Isso, aliás, era algo que o amante não conseguia entender.

    _ Por que, então, você o trai?

    _ Mera necessidade, meu querido.

   O relacionamento entre os dois durou quase um ano, até que, por mera tolice, Olavo desejou oficializar aquele amor. Foi veementemente repreendido por Eulália, que, como dito, era toda paixão pelo marido. 

    _ Não me ama?

    _ Temos nossos momentos.

    _ Não me ama?

    _ Não seja ridículo, Olavo!

    Duras palavras, mas, nem por isso, insensatas. Elas foram a razão para que Olavo não pedisse o divórcio, que, afinal, ele estava prestes a fazê-lo. Graças a isso, seu casamento permaneceu até há pouco tempo, quando, finalmente, a esposa sucumbiu ao câncer. E, a despeito da falta de paixão desde pouco antes daquele primeiro beijo no metrô, Olavo havia tido uma vida com boas doses de amor ao lado da esposa. 

    O velho sorveu o último gole do café, ao mesmo tempo em que o casal no ponto de ônibus se despediu. Ela, apressada, entrou no coletivo, enquanto o homem acompanhou a amada com os olhos, até que o ônibus se misturou a tantos outros na avenida Nossa Senhora de Copacabana. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Lembranças de uma traição" foi publicado por Notibras no dia 18/2/2024. Por solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal. 
  • https://www.notibras.com/site/romance-casual-morreu-com-frase-ridicula/

    

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Um rosto familiar

    

    As primeiras palavras que ouvi daquele rosto familiar, apesar de não conseguir, naquele momento, saber de onde eu o conhecia, foram: "Você está bem?" Não me recordo se lhe dei uma resposta ou se voltei a desmaiar. Lembro-me apenas de acordar já nos braços do meu pai, levando-me para debaixo de uma mangueira, onde ficamos até que consegui me recuperar quase que por completo do soco que havia levado de um garoto na saída da escola. Tudo por conta de uma menina, que, naquele fatídico instante, descobri ser namorada do meu oponente.

    _ Pai, quem era aquele garoto?

    _ O que te bateu?

    _ Não. O outro?

    _ Outro? Que outro?

    _ Ele parecia com o senhor.

    _ Comigo? Não sei do que você tá falando.

    Essa conversa foi deixada bem lá no fundo de uma gaveta da minha memória durante quase 30 anos, até que, na semana passada, voltou à tona. Não por causa daquela menina dos meus tempos de escola. Na verdade, nem me recordo do seu nome. A responsável foi outra garota, por quem me apaixonei há um tempo. É a Edivânia, minha esposa tão amada, que queria porque queria uma estante para colocar na sala.

    Depois de rodar por toda a cidade à procura da tal estante, Edivânia me intimou a encontrar alguém que fizesse o tal móvel dos seus sonhos. Foi aí que acabei me esbarrando com aquele garoto que, por essas coincidências da vida, me fez a mesma pergunta, agora acompanhada de outra: "Você está bem? No que posso servi-lo?"

    Por não sei quanto tempo, ficamos nos olhando. A princípio, creio que ele deve ter me achado um louco, até que nos apresentamos.

    _ Me chamo Ailton. Minha esposa quer uma estante.

    _ Prazer. Sou o Adailton. Qual o tipo de estante que ela deseja?

    Entreguei para o homem um desenho que a minha mulher havia feito. Ele olhou com atenção e disse que o preço era tanto e o prazo de entrega era de cinco dias. Adiantei metade do pagamento e, antes de sair, tive um pequeno interlúdio com o Adailton.

    _ Obrigado.

    _ Agradeça depois que eu lhe entregar a estante.

    _ Não estou falando da estante.

    _ Não?

    _ Falo de quando você me ajudou depois de eu ter levado uma surra de um menino na escola.

    Adailton me encarou e sorriu.

    _ Você ainda se lembra disso?

    _ Quem apanha nunca se esquece.

    Adailton sorriu novamente.

    _ Fiz o que deveria ter feito.

    _ Por quê?

    _ Porque sou seu irmão.

    _ Meu o quê?

    _ Irmão. Somos irmãos. 

    Fiquei atônito por não sei quanto tempo. Parecia que aquele menino da escola havia me dado outro murro na fuça. Foi aí que o Adailton me contou toda a sua história, que envolvia meu pai, aliás, nosso pai. O meu irmão era fruto de um namoro entre sua mãe e nosso pai pouco antes dele conhecer a minha mãe. 

    Voltei para casa pensando naquela revelação. Telefonei para meu pai, que confirmou tudinho. Minha mãe sabia dessa história também. No entanto, não sei por que nunca me contaram.

Não adianta buscar culpados nessa altura da vida. Mas é difícil não pensar nas brincadeiras que não tivemos juntos, nos momentos de dúvidas na adolescência, nos almoços de domingo. Tudo é muito novo para mim, mas estou adorando ter um irmão mais velho, que, apesar de ter a minha cara, ainda assim, sou o mais bonito.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Um rosto familiar" foi publicado por Notibras no dia 6/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/apos-30-anos-briga-em-escola-revela-verdades/


sábado, 3 de fevereiro de 2024

O pai, a filha e o galo

    

        A menina caminhava ao lado do pai até a estação Arcoverde, em Copacabana. Assim que chegaram, o homem foi comprar os bilhetes. A garota, aflita para descer pela escada rolante, tomou o seu das mãos do pai. Ele sorriu, enquanto a menina passava ligeiro pela catraca. Sumiu!

            O homem ouviu um som seco assim que depositou o bilhete. Curioso, foi até a escada rolante e, lá de cima, avistou a filha com uma das mãos na testa. Logo percebeu que a garota, tentando se esconder dele, deu uma trombada contra o mármore que separa a escada que sobe da que desce. Essa doeu!

            Apressado, desceu o mais rápido possível para acudir a filha, que lacrimejava. Ele a abraçou e os dois caminharam juntos. Passaram pelas outras escadas e esteiras rolantes até que, finalmente, chegaram ao ponto de espera do metrô. 

            O pai percebeu um enorme galo na testa da filha. Ele foi até a máquina de refrigerante ali perto, depositou uma nota e, em seguida, pegou uma lata de Coca-Cola bem gelada. Ele a entregou à menina, que, mesmo constrangida pela situação, a colocou sobre o calombo. 

            Já sentados no vagão, a menina percebeu que todos os outros passageiros a encaravam com olhares curiosos. O pai a abraçou, o que a fez se sentir um pouco melhor, apesar do galo que não parava de cantar, tamanha a dor.

            Os dois desceram na Central do Brasil. O pai comprou analgésico na farmácia e, em seguida, pediu um pouco de gelo para um colega ali em um dos quiosques de salgadinhos. Rumaram para o trem, que os levaria até a estação de Madureira.

            Apesar de melhor, a garota pediu pro pai para não ir à escola naquele dia. O homem olhou a filha e disse que ela precisava ir, pois ele já estava atrasado pro serviço, que ficava na Penha Circular, o que o obrigava ainda a pegar um ônibus. 

            _ Tudo vai ficar bem. E, se não ficar, saio antes do trabalho e voltamos pra casa mais cedo.

            A menina olhou o pai e esboçou um sorriso. Enquanto ela entrava no colégio, ele atravessava a rua. Assim que o homem chegou à calçada, ele se virou e, mais uma vez, se despediu da filha. Tudo ia ficar bem. E ficou.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O pai, a filha e o galo" faz parte da antologia Pintando o Sete - Feliz dia das crianças da SF Editorial, 2023.
  • O conto "O pai, a filha e o galo" foi publicado por Notibras no dia 5/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/dor-em-trombada-com-pilastra-some-com-carinho/