domingo, 31 de dezembro de 2023

Entre devaneios e pôneis coloridos

        

    Uma coisa muito legal para o escritor é receber elogios. É óbvio que, não raro, chega um ou outro desaforo por algo que o leitor desgostou. Seja como for, prefiro guardar na lembrança os agrados, ainda mais aqueles que me chegam carregados de exageros, como aconteceu recentemente por um leitor-amigo, ou seja, o tipo quase incapaz de enxergar defeitos, mas que vislumbram qualidades que, bem sei, não sou merecedor. Ou sou?

    Pois bem, o leitor-amigo a quem me refiro é o renomado astrólogo Francisco Seabra, que costumo chamar de Meu Guru. Ele, talvez embevecido por algum destilado diante da aprazível praia da Ponta Negra, em Natal, me mandou essa mensagem: "Minhas mãos estão perdendo as digitais de tantas palmas para você!!!" 

    Devaneio? Extravagância? Impulso por causa daqueles momentos de euforia? Sei lá! Não faço a menor ideia! No entanto, causa-me arrepios por todo o corpo, tal como os doces beijos da minha amada, a Dona Irene. Mas nada que me mantenha nas nuvens por muito tempo,  mesmo porque a minha filha mais nova, a Malulinha, perto de completar quatro meses, vez ou outra, me lembra de que preciso trocar suas fraldas. 

    Entretanto, não é apenas de louros que vive um escritor. Tenho quase certeza de que até o incomparável Machado de Assis também recebeu críticas desfavoráveis. Não sei como o maior dos maiores as recebeu. No meu caso, digo-lhe que é uma diversão, que compartilho com a minha esposa antes de deitarmos no nosso leito tão acolhedor. 

    Já que expus o Meu Guru, bem que poderia falar um pouco sobre uma leitora, cujo nome prefiro manter no anonimato, mas que sempre me dá aquelas alfinetadas. É que a dita cuja não suporta os desfechos dos meus contos e crônicas: "Que manina você tem de sempre colocar esses finais trágicos!" 

    Não sei se essa leitora-inimiga (será que estou criando uma nova classe de leitores?) espera encontrar pôneis coloridos nos meus escritos. Creio até que ela, ao usar esse exagero de palavra que é "sempre", tem lá sua razão. O problema, parece, estar em mim, que há muito deixei de acreditar em coelhinhos da Páscoa ou, então, sou um cruel manipulador das emoções alheias. Que seja! Nada me dá mais prazer do que fugir do tradicional e esperado "e viveram felizes para sempre".

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Entre devaneios e pôneis coloridos" foi publicada por Notibras no dia 31/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/final-tragico-e-mero-devaneio-com-ponei-colorido/

       

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Isaura e as manias de Duílio

    

    Mesmo antes de aceitar se casar com Duílio, Isaura já estava ciente das manias do homem. No entanto, diante da falta de pretendentes mais apropriados, esticou o dedo anelar da mão esquerda para o gajo. No final das contas, parecia ter feito bom negócio, pois o marido lhe serviu além do esperado.

    Duílio roncava? Roncava. Mas nada que um bom par de chumaço de algodão não transformasse o quarto do casal num quase silêncio sepulcral madrugada adentro. Era bom amante? Isaura não podia afirmar com certeza, já que não tivera muitos outros. Entretanto, ela jurava para si própria que ele havia sido, de longe, o menos pior.

     Após quase 30 anos do casório, Duílio havia deixado algumas manias pelo caminho. Todavia, para desespero da mulher, ele passou a ter outras. Uma, em especial, a deixava desesperada. É que o marido não admitia que ela levasse uma banda de melancia para casa. Não mesmo! Como ele gostava de dizer, não se pode dividir algo com pessoas desconhecidas.  

     Isaura tentou argumentar por diversas vezes com o esposo, mas sem sucesso. Não adiantava falar que os filhos já estavam crescidos e devidamente casados, cada um morando com as respectivas famílias. Duílio não dava a mínima para aquele monte de melancia que acabava no lixo, já que era muita coisa apenas para o dois. 

     Finalmente chegou a tão esperada comemoração de bodas de esmeralda. Toda a família foi convidada. Duílio até havia comprado novas alianças para demonstrar todo o amor que ainda sentia pela esposa. Esta, por sua vez, prometera mesa farta, onde o prato principal seria estrogonofe de filé mignon, receita tradicional que aprendera com sua saudosa avó materna. 

        Filhos, netos e até uma pequenina bisneta estavam na enorme casa de Isaura e Duílio. Um falatório sem fim, até que alguém tocou a campainha. O marido, que estava confortavelmente sentado numa cadeira de balanço na ampla varanda, fez menção de se levantar. A mulher tomou-lhe a frente e foi ver quem era. Retornou logo em seguida puxando uma vaca, para espanto de todos.

        _ O que significa isso, meu amor?

        _ Duílio, você está certo. Não se pode mesmo dividir algo com pessoas desconhecidas.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Isaura e as manias de Duílio" foi publicado por Notibras no dia 1/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/00-da-vaca-no-bicho-sugere-que-dividir-nao-da/

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Raimundo e as palavras

    Raimundo cresceu analfabeto e, já perto dos 40, caso não fosse por Marília, continuaria alheio às letras. Amigou-se não somente com estas, mas com a mulher. Gostou tanto, que logo estava formando sílabas, palavras e arriscando uma frase inteira aqui, outra ali. Não tardou, chegou aos períodos.

    O homem, fazendo jus ao nome, ganhou o mundo. Lia as placas, os letreiros. Fazia questão de decifrar qualquer enigma por detrás daquele amontado de letras. No geral, se saía muito bem, para orgulho de Marília, que era formada em Letras.

       _ Muito bem, meu amor! Daqui a pouco você vai completar o ensino fundamental. 

     A despeito de tamanho esforço para aprender tanto em pouco tempo, Raimundo, de vez em quando, tropeçava nas palavras. E foi assim naquela manhã de domingo, quando ele passeava de mãos dadas com a amada. Diante de uma sorveteria, um enorme cartaz anunciava a vastidão de opções: Buffet de Sorvetes. No entanto, apesar das súplicas de Marília, que queria se refrescar com uma casquinha, o homem declinou.

        _ Mas por quê?

        _ Marília, sou da paz. Esse negócio de bofete não é comigo.
  • Nota de esclarecimento: O conto "Raimundo e as palavras" foi publicado por Notibras no dia 7/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/sorvete-que-desce-macio-tambem-pode-engasgar/

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

O professor de matemática

    

    Não vou conseguir precisar o dia em que aquele rapaz atravessou o portão da propriedade, sorriu confiante, apesar da vestimenta surrada, e foi direto cumprimentar meus pais, que já o aguardavam sentados a uma das mesas ao redor da piscina. Soube naquele momento que aquele jovem, apesar da aparência mais velha, contava apenas 18 anos, enquanto eu, no mês seguinte, completaria 20.

            Meu pai não tardou e se levantou. Foi em direção ao velho José, que já o aguardava, junto a um de nossos automóveis, com a porta de trás aberta. Minha mãe acompanhou com o olhar o marido. Os dois se despediram com beijos soltos no ar. Nessa época, creio que ainda guardavam um resquício do amor, que talvez tiveram algum dia.

            Assim que o Opala partiu, minha mãe pegou a mão do rapaz e veio até mim. Não muito alta, ela carregava o costumeiro du Maurier acoplado à piteira dourada. Por conta de tal hábito, um câncer a tomaria por completo duas décadas após.

            _ Augusto, meu querido, quero lhe apresentar o Olegário. Ele o ajudará nas tarefas de matemática. 

            Olegário me estendeu a mão. Olhei para ele com ar de arrogância, que, na verdade, não passava de pura inveja. Como é que aquele maltrapilho poderia me ensinar algo? Mero bandalho! Devo ter feito cara de poucos amigos, pois a minha mãe lançou-me aquele olhar fulminante. Não tive escolha e aceitei o cumprimento.

            A partir da semana seguinte, comecei a ter aulas com o meu novo professor. Um prodígio em trigonometria e geometria, devo admitir. Relutante a princípio, acabei me encantando por aquela situação. Não pelos números, diga-se de passagem, pois até hoje não encontrei razão para decorar nem mesmo a tabuada. Se me interessei, foi por aquela voz rouca do Olegário, que, ainda por cima, era dono do sorriso mais lindo que, até recentemente, não tive o prazer de ver igual.

            Durante nossas tardes no meu quarto, ele tentava a todo custo me ensinar atalhos para que eu não tomasse bomba no final do ano. Por debaixo da mesa, ele cutucava a minha perna com a sua, com o intuito de me fazer prestar atenção. Isso me causava calafrios por todo o corpo, mas, covarde que ainda sou, mirava o piso para não ser descoberto.

            As provas finais vieram e, não sei como, consegui concluir meus estudos. Na certa, devo ter me esforçado além do esperado, pois não queria decepcionar o meu mestre. Não sei se ele ficou feliz com a minha aprovação, pois nunca mais o vi. Minha mãe, hoje consigo ter maior clareza sobre isso, o dispensou assim que possível para evitar que algo pudesse causar certo constrangimento na família. 

            Passei os anos seguintes envolto em códigos civis, penais e trabalhistas. Formei-me com louvor e, a partir de então, comecei a exercer a advocacia no escritório do meu pai. Foi justamente nessa época em que conheci Glória, brilhante advogada, com quem muito aprendi do ofício.

            Protegida do meu velho, ela passou a frequentar a nossa casa. Entretidos que estávamos com o volume de trabalho, não tínhamos tempo para o amor. Foi como um acordo que nos casamos no ano seguinte, logo após ganharmos uma causa de milhões. Minha mãe pareceu aliviada com o matrimônio.

            Como prêmio, viajamos para Europa por uma semana. A agora minha esposa, com um francês muito melhor do que o meu, pareceu adorar aquelas explicações intermináveis nas idas aos museus. Como bom marido, mantive-me sempre ao seu lado, mas com a cabeça na pilha de processos que me esperava no escritório.

            Assim que o avião pousou no Galeão, senti um grande alívio. Nada mais de passeios infrutíferos por Paris, onde sentamos em todos os cafés possíveis. A companhia era ótima, é verdade, tanto é que na segunda semana de volta ao Brasil, Glória se sentiu indisposta e correu para o banheiro a fim de evitar devolver, sobre a mesa, o salmão com nozes ingerido há pouco.

            No verão seguinte, eis que estávamos na sala de parto. Minha mulher segurava minhas mãos tão fortemente, que imaginei que iria arrancar todos os meus dedos. Devo confessar que aquela era uma situação nova para mim também, porém, muito mais cômoda. Afinal, todas as dores do parto se encontravam com Glória. 

            Às 12h43 do dia 15 de fevereiro de 1989, ouvimos pela primeira vez o choro de Rubens. Minha esposa e eu, talvez não querendo deixar nosso filho chorando sozinho, o acompanhamos. Esse momento mostrou a nós dois que, apesar de ter surgido de um acordo, aquele casamento havia conseguido gerar um fruto do nosso amor. 

            Depois de alguns meses de correria, a nossa vida acabou entrando nos eixos. É verdade que agora tínhamos um filho para criar e, hoje posso afirmar, o tempo é sábio e toma conta de tudo. Ou, caso não cuide tão bem assim, o dinheiro ajuda a superar as dificuldades.

            Nosso menino cresceu cercado de todos os mimos e regalias, é verdade. No entanto, até entre os abastados há certos percalços. Seja como for, lá estávamos para lhe dar o suporte necessário. E foi assim que fizemos, quando, antes de completar 10 anos, ele cismou em ser tenista.

            Compramos os melhores materiais esportivos, contratamos o mais afamado treinador. Até mandamos construir uma quadra de tênis na nossa ampla propriedade. Entretanto, essa febre passou e a raquete, comprada a peso de ouro, foi parar em algum canto.

            Aos 13, Rubens cismou que queria ser músico. Como dinheiro não era problema, compramos vários instrumentos, mas, no final, o nosso rapazinho desistiu de todos. Ainda carregou a gaita no bolso por alguns meses, mas nunca o vi soprando-a nem uma vez sequer.

            Rubens, prestes a concluir o ensino médio, parece ter herdado a minha aversão por números. Por isso, a minha mãe, ainda que adoentada, contratou um professor de matemática para o único neto. Na hora nem me dei conta da situação, até que, sentados a uma das mesas ao redor da piscina, vi passar pelo portão um jovem de lá seus 25. Na verdade, soube logo em seguida, ainda contava 18. Ele parou diante de mim e sorriu um sorriso, que há muito guardo na lembrança, e, então, naturalmente, acabei por me encantar por aquela rouquidão: "Prazer, sou o Olegário!"

  • Nota de esclarecimento: O conto "O professor de matemática" foi publicado por Notibras no dia 25/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/olegario-ensinando-o-22-4-de-pai-para-filho/

sábado, 23 de dezembro de 2023

Calixto, o dono da banca

    

    Calixto era muito conhecido no bairro, já que há quase duas décadas era o dono de uma das poucas bancas de jornal do local. É verdade que havia outras duas ou três, mas nenhuma vendia empadinhas de cabeça de camarão tão saborosas. Uma iguaria à parte, vendida por cinco reais ou, não raro, dada como brinde a algum freguês que gastasse bem além do usual.

    O homem, apesar de afirmar categoricamente que tinha exato 1,60 m, não passava de 1,55, já contando as palmilhas especiais e os saltos em dobro dos sapatos pretos caprichosamente engraxados. Empertigava-se todo, mas a barriga proeminente não o permitia fazê-lo por mais que um ou dois minutos, quando muito. O boné do Internacional completava o quadro, que, provavelmente, agradaria ao Fernando Botero.

    Um dos clientes mais assíduos era o Paulino, um senhor de lá seus 70 ou mais. Costumava dar o ar da graça no final da tarde, quando o movimento na banca já havia diminuído. Ia pegar a sua encomenda, que era o jornal do dia anterior. Esse hábito poderia parecer estranho para a maioria, mas era logo explicado pelo velho. Cardíaco que era, não queria desafiar o coração com notícias frescas. 

    Gorgonzola era outro freguês que passava quase diariamente no local, geralmente para comprar jornal e um bocado de balinhas. Chamava-se Alberto, mas ganhou a alcunha por conta do cheiro desagradável expelido pelos pés, a despeito da quantidade quase infinita de produtos que já havia usado para tentar resolver o inconveniente.

    Dona Matilda, uma mulher enorme em todos os sentidos, passava de vez em quando pela banca. Falava mais que a própria língua, mas sempre com um largo sorriso no rosto. Era apaixonada pelo Calixto, mas nunca tinha se declarado, pelo menos não explicitamente. Talvez o homem fosse como tantos outros, ou seja, precisava de um empurrãozinho para perceber. 

    Pois bem, lá estava o Calixto com aquela mulher apaixonada. Os dois conversavam trivialidades, quando, então, passaram dois homens discutindo. Não demorou, começaram a trocar sopapos bem em frente à banca. Rolaram no chão, como meninos em barranco. Isso foi a deixa para que dona Matilda e Calixto tivessem um pequeno interlúdio.

    _ Já brigou, Calixto?

    _ Capaz! Sou baixinho, gordinho e diabético. Se eu brigar, morro sem precisar tomar um soco. Caio duro só no afã.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Calixto, o dono da banca" foi publicado por Notibras no dia 26/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/calixto-e-matilda-se-aproximam-em-meio-a-briga-alheia/


Orlando Fala Fina

    

    Orlando, que era Silva que nem o famoso cantor, falava fino com as mulheres da sua vida. Havia sido assim com a mãe, com as tias, com as irmãs e até com a avó, que lhe fazia doces e afagos quando menino. Quanto ao pai, um traste. Não que fosse diferente dos demais homens da família, pois todos eram como cópias mal-ajambradas uns dos outros.

    Por conta de tais influências, o homem, ora era polido, ora se travestia de bruto, ainda mais quando dava ouvidos aos tios e, em especial, ao genitor. De tanto escutar que lugar de mulher é na cozinha, procurou uma que não trabalhasse fora. O problema é que, após algum tempo, todas buscavam coisas novas, inclusive a Rtinha que, agora, queria até fazer faculdade. Pois é, para você ver! Faculdade!

    Mas a Ritinha era a atual, mas não se sabe até quando. Quanto à Janete, a primeira, não aguentou um mês de namoro. Tratou logo de arrumar um emprego do outro lado da cidade. E não é que em pouco tempo já ganhava mais que o namorado? 

    _ Isso não pode! - Orlando ouviu do pai.

    Para não ficar mal com o velho, Orlando quis falar grosso com a Janete. Que nada! Assim que começou a subir o tom, levou logo um passa-fora. Lá se foi a Janete, que, parece, começou a sair com um colega do serviço. Vê se pode?!

    Houve também a Solange, que parecia mais ajuizada. Pois bem, saiu-se pior do que a primeira. A mulher, que nem era mais moça quando conheceu o nosso Orlando, ainda quis cantar de galo, como se para tal não precisasse ter gogó proeminente. 

    Acredite ou não, a fulaninha gostava de sair de vez em quando com as amigas. Isso mesmo! Com as amigas! Era uma pouca vergonha, todas bebendo ao redor de uma mesa de bar. Aquilo já era demais! Não durou dois meses. E olha que foi muito, graças à paciência do Orlando, que, compreensivo que era, tentou convencer a amada sobre a conduta de uma mulher correta. Não adiantou, tamanha a descompostura daquela desclassificada. 

    Mas voltemos à Ritinha. Pois é, ninguém lhe tirava da cabeça a ideia de fazer faculdade. Desolado, Orlando buscou os sábios conselhos do pai, como se ele tivesse algum que prestasse.

     _ Pai, não sei o que fazer. Só arrumo mulher que não vale nada.

    _ Cada um vive como dá.

    _ Como assim?

    _ Ué, às vezes, você arruma essas mulheres porque é o que cabe no seu orçamento. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Orlando Fala Fina" foi publicado por Notibras no dia 23/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/quando-a-falta-de-grana-frustra-sonho-amoroso/

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

José Seabra, um homem completo

    _ Edu, aguenta firme aí, pois estou ralando demais por aqui. Demais!

    _ Pode deixar, Chefe! Essa vida de editor não é mesmo fácil. Não queria estar na sua pele.

    _ Acredite, é uma missão que me foi dada. Preciso cumprir a minha sina. A cruz é pesada, mas Deus me deu forças para carregá-la.

    Pois bem, foi exatamente esse o interlúdio que tive há pouco com o José Seabra, que, entre um gole e outro naquela cachacinha com caldo de camarão, me pediu mais uma crônica urgentemente para cobrir um buraco de Notibras. Seja como for, a minha ingenuidade costumeira me levou a acreditar que o Seabra estava atolado de serviço. Que nada! No máximo, com os pés fincados nas areias da aprazível  praia de Itapuama, localizada no município de Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, Brasil.

    Pensei em fazer uma reclamação formal, mas desisti depois que a minha amada, a Dona Irene, me mandou essa: "Dudu, cuidado, que o santo é de barro!" Por conta desse sábio conselho, resolvi não prolongar minha costumeira rabugice. Afinal, o relógio na parede da cozinha já apontava que eu precisava correr ou, senão, poderia receber aquele famoso bilhete azul, que, talvez para os mais novos, não faça o menor sentido. Pois bem, para esses e os desmemoriados, trata-se da famigerada carta de demissão. 

    Peguei uma almofada bem macia e a coloquei sobre a cadeira. Liguei o computador e as palavras pareciam não querer se juntar. Frases, então, nem pensar. Meu pensamento estava totalmente voltado para a praia. Gente, como gosto de praia! Como fico inebriado pela maresia, por aquela infinidade de ondas, que chegam sem cerimônia e lambem meus pés, como a me instigarem para um mergulho. Não resisto e tchibum!

    Quase meia-noite e sem qualquer perspectiva, desisto e caminho para o quarto. Talvez a minha mulher ainda esteja acordada. Que nada! Dorme o sono das mães de primeira viagem. Deito-me ao seu lado tentando não despertá-la, quando percebo que acabou de chegar uma mensagem no celular. É o Seabra: "Edu, um homem longe do mar é um ser incompleto".
  • Nota de esclarecimento: A crônica "José Seabra, um homem completo" foi publicada por Notibras no dia 21/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/dona-irene-fala-e-cartao-azul-fica-guardado/
    

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Adalgisa e o quadril

    

    Adalgisa não estava bem naqueles dias. Não que tivesse acontecido algo tão grave assim. Isto é, grave até que era, mas que não se pode afirmar que iria causar mudanças radicais na vida da mulher. Afinal, tratava-se da mudança repentina dos 38 para os 42. Não na idade, já que ela ainda não havia chegado aos 30.

    O problema de Adalgisa era com o manequim. Por conta de algumas coxinhas, além, é óbvio, de um ou outro bombom sorrateiramente escondido em sua bolsa, aquela calça jeans parecia permanentemente aposentada bem lá no fundo da gaveta. Para a mulher, o problema eram os quadris, que pareciam ter alargado mais do que o esperado. O marido, apesar de não ter notado a diferença, parecia apreciar, já que sempre dava um jeito de se aproximar por trás e beijar o cangote da amada.

    _ Para com isso, Elias!

    _ Por quê? Não gosta mais?

    _ Tô gorda!

   Tentando esconder suas curvas, Adalgisa passou a usar vestidos cada vez mais largos. Praia? Nunca mais! Ela não tinha coragem nem de colocar um biquíni, tamanho o incômodo que sentia apenas de olhar seu reflexo no espelho mesmo a portas trancadas.

    Outro hábito que foi deixado de lado foi fazer amor à luz do dia. Não mesmo! No máximo à noite e, mesmo assim, no mais completo breu. Elias, que era um completo devoto da mulher, teve que desenvolver olhos de gato para encontrar o caminho das pedras. E, entre uma topada aqui e outra ali, parece que se saiu bem ou, então, Adalgisa não quis colocar mais lenha na fogueira.

    Dos vestidos até o tornozelo, foi um pulo buscar conforto na igreja. Fez amizade com algumas beatas e, a partir de então, passou a falar mal das mulheres que se cobriam com poucos panos. Onde já se viu tanta falta de compostura? Aquilo não era coisa de Deus. Não mesmo! Uma mulher precisa saber se comportar em público!

    Pois bem, lá estava o casal fazendo compras no mercadinho do bairro. Elias empurrava o carrinho, enquanto Adalgisa, preocupada com as economias, fazia contas de cabeça para escolher o produto mais barato. O marido, entretido com o aparelho celular, não percebeu quando passou uma beldade de lá seus 25 anos, desfilando com uma blusinha de chamar a atenção. 

    _ Você viu que pouca vergonha?

    _ Vi o quê?

    _ Aquela rapariga ali.

    _ E o que tem a moça, meu amor?

    _ Moça? Que moça? É uma despudorada! Desfilando pelada por aí.

    _ Pelada? Ela está vestida.

    _ Elias, me poupe! Aquela blusinha transparente dá pra ver tudo e mais um tanto assim!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Adalgisa e o quadril" foi publicado por Notibras no dia 8/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/gordinha-vira-beata-e-ataca-roupas-transparentes/

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

O velho e os vermes

               Hoje acordei como sempre. O costumeiro mau-humor, certamente herança de um antepassado calabrês, continua firme nos meus olhos profundos e na minha boca retorcida. Lavei o rosto na água gelada, que levou o último resquício de esperança de retornar para cama e esperar pela Senhora da Foice. 

          Minha esposa, que casou por imposição dos pais, miseráveis que eram, não suportaria tamanho martírio de se deitar ao meu lado, nem sequer uma vez mais. Por sorte, foi acometida por um câncer, que a tomou por completo. Recebi a notícia por uma enfermeira, que se deu ao trabalho de me ligar àquela hora da madrugada.

Foi sepultada num dia de sol, como se libertada da minha insuportável companhia. Lembro-me exatamente da feição de alento em seu rosto no dia de sua partida, dentro daquele caixão, que me custou os olhos da cara. Pálida, é verdade, mas serena. Quanto às maçãs, nada que um pouco de maquiagem não a fizesse mais corada na hora da despedida. 

          Eis que aqui estou, ainda cumprindo a minha sina, sem coragem de cortar os pulsos ou me atirar da janela. Segundo andar. Na certa, daria com a fuça naquele jardim repleto de rosas. Se pararia de respirar ou não, é mais uma dúvida que me corrói.

Ouço o barulho de crianças gritando lá embaixo naquele maldito parquinho. Aquele lugar deveria ser demolido. Que construam algo mais útil ali. Que seja uma repartição pública, mas que acabem logo com esse martírio. Não suporto gente miúda se esgoelando, como se vivesse uma felicidade que não existe. 

          Sinto o aroma do lixo apodrecido vindo da cozinha. Isso mesmo! Não o jogo fora há quase duas semanas. Por que faço isso? Hum! Bem, vou matar a sua curiosidade, antes que você me mate de tédio.

Deixo que os vermes, a maioria depositada por moscas, se deliciem com os restos de comida deixada de lado de propósito. Vermes precisam de alguém que lhe dê algo para comer.

Portanto, não me julgue por isso! Se a minha vizinha possui gatos, que mal tem se eu crio vermes? Certamente, você também tem lá as suas manias. Ou vai querer me enganar que a sua vida é recheada de pôneis coloridos? 

          Não pense você que sou um imundo. Pois não sou! Tomo banhos regulares, mas nada de exageros.  Isso, por sinal, me faz lembrar de um momento da minha infância. Quer sabê-lo? Vou lhe contar, mas guarde segredo ou, então, seja mais um a falar mal de mim. Não me importo, assim como nunca liguei para todos os outros que me conheceram nesses meus quase 100 anos. Completo-os depois de amanhã.

          Antes de entrar nos pormenores, devo lembrá-lo de que sou de uma enorme família, cheia de irmãos. Sou o segundo, logo abaixo de Judith, de uma prole de quase 15. Quase porque três não tiveram o desgosto de enxergar as trevas deste mundo. Que sejam 12, tanto faz. Uma longa escada de ano em ano, às vezes falhando um ou outro, dependendo do tempo das viagens do meu falecido pai ou, então, por conta de algum natimorto. 

          Tudo começou quando contava com três ou quatro anos. Não estou certo, talvez tivesse sido pouco antes, pouco depois. Detalhes sem qualquer relevância. Minha mãe, com uma barriga gigantesca, carregava um dos meus irmãos. As pernas inchadas, os pés parecendo patas de elefantes, mamãe se arrastava pelo quintal pendurando trapos, a maior parte encardida, no longo varal. Judith e eu aos seus pés, como dois carrapatos tentando sugar o máximo de sangue daquela força bruta de total ignorância. 

          _ Judith, minha filha, quer ver o seu irmãozinho aqui na barriga da mamãe?

          Minha mãe levantava um pouco a blusa e falava para Judith encostar um dos olhos no seu umbigo. Minha irmã obedecia e abria aquele sorriso, como se descobrisse algo que jamais vislumbrei. Em seguida, mamãe me puxava pelo braço e me mandava fazer o mesmo. E, por mais que eu abrisse e fechasse meus olhos, nunca consegui enxergar além da sujeira depositada no umbigo da minha mãe. 

         Esse costume foi passado para os filhos subsequentes, que foram jogados neste mundo. Meus irmãos, talvez cúmplices de mamãe, sempre responderam com aquele sorriso de felicidade em seus rostos. Fui tomado por sentimentos, ora de incapacidade, ora de inveja, ora de profundo ódio, até que, pouco antes dos 18, deixei-me cair no mundo. Nunca mais os vi. 

          Dos 18 aos quase 100, eis que estou aqui. Não me arrependo de nada que fiz ou deixei de fazer. No entanto, também não sinto orgulho da minha jornada de vida. Bem sei que, não tarda, serei eu o devorado pelos vermes que cultivo.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O velho e os vermes" foi publicado por Notibras no dia 14/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/quando-o-corpo-aguarda-para-ser-degustado/

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Bebel, a inimiga do fim

 

    Aquela bolinha escura havia sido um mimo do homem para a amada. Chegou enrolada em um paninho florido antes mesmo de completar dois meses e, apesar de saudosa do calor materno, logo se sentiu acolhida no colo da mulher. Bebel, uma buldogue, parece que havia tirado a sorte grande.

   Ganhou roupinhas, sapatinhos, colarzinhos, brinquedinhos dos mais variados. Diante de tantos presentes, a cachorra gostava mesmo era do ossinho. Roía o dia inteiro, até que chegava a hora de passear. Corria com a cara mais feliz e se postava diante da porta. O casal sorria e, admirado, dizia: "Nossa, como a Bebel é inteligente!"

    Já na calçada, todos olhavam para aqueles três. A mulher, orgulhosa da filha, lançava sorrisos ao vento. Não que o marido fosse muito diferente, mas era contido. No entanto, a tudo observava, tanto é que estufafa o peito como se tivesse ganho a maratona nas olimpíadas. Por sua vez, Bebel também representava divinamente o papel que lhe cabia. A danadinha, quase saltintando, desfilava todo o seu glamour e, ao passar, despertava o despeito dos vira-latas em situação de rua.

    Essa rotina de passeios pelo bairro e, em seguida, repousos prolongados em fofas almofadas era tudo o que a Bebel desejava. Como parecia feliz aquela cachorra! A realeza em forma de buldogue. Nada além do que o melhor dos mundos para quem lhe é de direito. 

    Das almofadas para as largas calçadas e, em seguida, de volta ao aconchego do lar, doce lar, onde a filha única poderia se deliciar com aquele osso. Roía, roía, roía. De tanto roer, acabava adormecendo com o osso na boca. O ronco vinha fácil. Tão fácil, que ela nem percebia quando acordava horas após e nem se dava conta que havia adormecido. Dava mais algumas roídas, o ronco não tardava a tomar conta de todo o ambiente. 

    Pois foi num desses passeios pelo bairro que o casal se deparou com um parque. Não um parque de balanços e gangorras. Não. Era um grande gramado todo cercado, onde cães de diversas raças ou não corriam desembestados. A princípio, os pais de Bebel deram no máximo uma olhadela naquela situação, até que ela começou a puxar a guia em direção ao parquinho. Foi preciso pegá-la no colo. Que nada! Não adiantou. A cadelinha começou a chorar na voz dos cães.

   Diante de tal situação, restou aos pais de primeira viagem atender ao pedido da mimada. Não demorou, lá estava a Bebel correndo de um lado para outro com aqueles novos amiguinhos, feitos naquele exato momento. Eram eternas crianças em forma de cachorro. 

    A tarde se esvaiu diante dos olhos cada vez mais admirados do casal. A energia da Bebel parecia sem fim. A mulher ainda tentou chamar pela filha, mas sem sucesso. A buldogue não lhe dava ouvidos, tamanha a euforia vivida. 

    _ Bebel! Bebel! Bebel! Vem com a mamãe! Amanhã a gente volta!

    _ Meu amor, a nossa menina parece que é inimiga do fim.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Bebel, a inimiga do fim" foi publicado por Notibras no dia 15/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/filha-unica-buldogue-conhece-e-brinca-com-irmaos-humanos/

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

A vizinha, o rato e o umbigo

    

    _ Caiu?

    _ Caiu.

    _ Quando?

    _ Ontem.

    _ Cadê?

    _ Guardei num saquinho.

    _ Vai fazer o quê?

    _ Ainda não decidi.

    _ Cuidado!

    _ Cuidado com o quê?

    _ Pro rato não comer.

    _ Que rato? Comer o quê? 

    _ O umbigo.

    _ Por quê?

    _ Se o rato comer, vira ladrão.

    _ Quem?

    _ Quem o quê?

    _ Quem vira ladrão? O rato ou a criança?

    _ A criança.

    _ Besteira!

    A vizinha bebericou um pouco do chá de camomila, enquanto a recém-parida a encarava. Era óbvio o seu incômodo com aquela história de rato devorador de umbigos. Onde já se viu tamanho disparate? Tolice de gente que não tem o que fazer. Que vá levar mau agouro para bem longe!

    Terminado o chá, a vizinha disse que precisava ir, pois ainda passaria na mercearia do seu Oliva. Coisa pouca, um quilo de arroz e algumas cebolas. As duas se despediram com promessas de novos encontros. Breves, por assim dizer. 

    Mal fechou a porta, a mulher soltou um palavrão. Na verdade, foram dois ou três, mas que não vale a pena mencioná-los. Coisas de puerpério. Entretanto, calejada que era, bem sabia que cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. 

    A mulher foi direto para o quarto. Catou o saquinho com o umbigo e tratou logo de trancafiá-lo no cofre. Com o filho no colo, lançou um olhar de onça brava para a fresta debaixo da porta.

    _ Agora quero ver algum rato pegar o umbigo do meu menino!

  • Nota de esclarecimento: O conto "A vizinha, o rato e o umbigo" foi publicado por Notibras no dia 11/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/a-historia-da-vizinha-o-rato-e-o-umbigo/

domingo, 10 de dezembro de 2023

Malulinha, a gauchinha

    

    Lá estava a Dona Irene desesperada, pois havia perdido a filha de vista por um minuto. Um mísero minutinho! Cadê aquela garota?

    _ Malulinha, cadê você? Malulinha!!!

   Nada! Nadica de nada da menina, que, bem antes de andar, já engatinhava pela casa à procura de aventuras. Mas cadê essa guria? Vamos tentar ajudar aquela mãe desesperada, que havia se distraído com a Bebel e a Clarinha por um instante. Ah, essas duas outras são as irmãs caninas da Malulinha. Irmãs de sangue, pois, não raro, as três se engalfinham por conta de uma bolinha.

    Nascida e criada no Menino Deus, o mais tradicional bairro de Porto Alegre, a Malulinha possui alguns amiguinhos por ali. Pois é, ela se diverte muito com o Serginho, que é apenas dois dias mais velho. Dois dias! Acredita nisso? Também apronta muitas com a Nena, que vive reclamando dos preços de tudo. Outros coleguinhas são a Jojô, a Florisbela, o Bicudo e o Ravi. 

    Mas voltemos à residência da Malulinha, onde sua mamãe já estava arrancando os cabelos de tão desesperada. Olhou debaixo das camas. Nada. Olhou dentro dos armários. Nada. Olhou até dentro da máquina de lavar. Nada. Onde teria se metido aquela espoleta?

    Dona Irene, de tão aflita, nem percebeu que a Bebel e a Clarinha também haviam desaparecido, tamanha a preocupação com a caçulinha da trupe. Na verdade, ela até percebeu, mas demorou um tempinho. É que ela se lembrou de pedir ajuda às suas filhas caninas para encontrar a Malulinha. Mas cadê aquelas duas? Aliás, cadê aquelas três?

    A campainha tocou. A mulher foi atender. Era o Dudu, seu marido, que trazia duas melancias, uma em cada mão, o que o impediu de abrir a porta.

    _ Olha o que eu trouxe!

    _ Nem precisava falar.

    _ Ué, o que houve?

    _ A Malulinha desapareceu!

    _ Como assim?

    _ Não sei como.

    _ Cadê a Bebel e a Clarinha?

   _ Sumiram também. Não faço a menor ideia de onde aquelas três podem estar. Já revirei toda a casa e nada. 

    _ Será que elas não foram dar uma volta na pracinha?

    _ Não, pois as coleiras estão aí penduradas na porta.

    _ Hum... Tenho uma ideia!

    _ Que ideia, Dudu?

    O homem foi até a cozinha, lavou uma das melancias e a partiu. Colocou vários pedacinhos em uma grande bacia e, em seguida, voltou a conversar com a esposa.

    _ Amor, que tal comermos uma melancia inteirinha só nós dois?

    Não deu outra! De dentro de uma enorme caixa de papelão, que estava bem ali no canto da sala, eis que surgem as três irmãs. Elas estavam brincando de pique-esconde com a mãe, que não sabia que estava naquela brincadeira. Bobas que não são, trataram logo de sair do esconderijo, pois adoram melancia.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Malulinha, a gauchinha" foi publicado por Notibras no dia 10/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/cheiro-de-melancia-faz-fujonas-darem-as-caras/

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Califa, o valentão

   

    A confusão tomou conta do bar. Califa, no alto de quase 1,90 m, bateu forte com a mão sobre a mesa de vidro. Ela se partiu como se fosse folha de papel de seda. Abaixou-se e catou um caco do chão, levou-o à boca, mastigou-o. O sangue escorreu pelos lábios. Esbravejou: Já puxei cana no Central! 

    Músculos talhados na dureza da vida, aquele homenzarrão sabia apanhar e, melhor, batia com gosto. Apesar de alguns que já estavam mais que calibrados pelo líquido da coragem, ninguém teve ímpeto de encarar o valentão. Pra que ter um nariz quebrado por quase nada? Todos deixaram o falastrão esbravejar, até que, cansado da própria voz, Califa se recostou na parede ao lado e, não tardou, adormeceu. 

    Já quase meio-dia, foi despertado por um dos tantos vira-latas do bairro Menino Deus, que lhe lambeu o rosto sem a menor cerimônia. Soltou um arre na certeza de que desferiria um murro no intrometido, mas, diante daquele ser com cara de cachorro, abriu o maior dos sorrisos. Era o Caramelo, um dos mais pulguentos da região. 

    Com algum esforço, o homem ergueu-se sustentado pela parede. No bar, apenas o velho Inácio, que fazia a faxina. Califa não teve coragem de encará-lo e tratou de sair o mais rápido possível do local. Foi acompanhado por Caramelo até a esquina. Todavia, o cachorro, talvez percebendo que nada receberia além de afagos sem futuro, tomou outro rumo. 

    Enquanto caminhava, Califa tentava se lembrar do ocorrido na noite anterior. A boca ardia por conta dos cortes. Sentiu o gosto de sangue, que também se via presente, mas seco, na mão esquerda. Que diacho teria acontecido? Alguma contenda? Na certa com um adversário respeitável. A memória insistia em não o lembrar do papelão que ele havia proporcionado aos presentes na noite anterior.

    O homenzarrão, de repente, estacou, assustado com a sirene de duas viaturas policiais. Ele apenas acompanhou os dois carros, que pararam logo adiante. Os policiais desceram rapidamente e correram em direção a um rapaz, que tentava driblar os transeuntes, até que, desequilibrado, tropeçou e foi direto com a cara no chão. Ainda atordoado, foi algemado e arrastado até o cubículo do camburão. 

    Califa, olhos arregalados, observou aquela cena. Um arrepio correu por toda a sua espinha. Ser preso era seu maior pavor. Ele não conseguia nem imaginar a vida de alguém atrás das grades. Aquilo não era vida para ninguém, ainda mais para ele, acostumado a comer broa de milho nos finais de semana.  

  • Nota de esclarecimento: O conto "Califa, o valentão" foi publicado por Notibras no dia 13/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/prisao-de-franzino-faz-machao-repensar-a-vida/