sexta-feira, 17 de maio de 2024

Pelas estradas do Nordeste

        

           Minha vida, desde os meus 13 anos, foi rodar pelo Nordeste. Tudo, na verdade, começou na minha pequena e encantada Belmonte, litoral da Bahia, onde nasci e me criei correndo atrás dos guaiamus. Esse tempo de menino, no entanto, findou-se assim que papai faleceu, e minha mãe precisou dar conta dos filhos, total de cinco, sendo eu o mais velho.

          Fui trabalhar de ajudante de caminhoneiro e, não tardou, fiz minha primeira viagem para Salvador. De lá para Recife foi um pulo, até completar todas as oito capitais no litoral nordestino. Faltava Teresina, que, por conta do trabalho, só fui conhecer há pouco mais de um ano. E, apesar de não ter ficado por lá além de alguns dias, possuo um enorme carinho e, melhor, profunda gratidão por aquela cidade. E, se você tiver um tempinho, sente-se, que vou lhe contar.

          Após quase 20 anos na estrada, consegui comprar um caminhão. E, por conta disso, passei a fazer viagens bem além do litoral. E eis que, em junho do ano passado, fiz um frete para a capital do Piauí, onde dormi em um pequeno hotel. Uma noite apenas. Todavia, foi mais que suficiente para transformar a minha vida, que desde sempre havia sido um poço de solidão, em um oásis de fartura. 

          Assim que entrei no hotel, fui atendido por uma mulher de seus lá 45 anos, idade que regula com a minha. Trocamos algumas palavras, até que ela me entregou as chaves do quarto. Tomei um banho e, em seguida, meu estômago clamou por um bom prato de comida. Desci as escadas. No entanto, para meu azar, não havia nada aberto àquela hora, pois já era quase uma hora da madrugada. Troquei algumas palavras com a recepcionista.

          — Tá com muita fome?

          — Um pouco.

          — Se quiser, preparo um sanduíche pra você.

          Não sei se foi a estrada que me arrancou todo o orgulho, mas aceitei de pronto a oferta daquela mulher, que disse se chamar Joana. E, enquanto aguardava na recepção, ela foi até a cozinha do hotel e, em pouco mais de cinco minutos, retornou com um belo sanduíche de queijo e uma garrafa de suco de acerola. 

          Agradeci e dei uma boa mordida, quando pude sentir o quão bom estava aquela refeição, que, àquela hora, me pareceu um manjar dos deuses. Joana apenas observava, talvez curiosa por saciar a fome de um faminto naquela madrugada.

          — Muito bom, Joana!

          — Minha avó me dizia que o melhor tempero é a fome.

          — Está muito bom mesmo! 

          Após comer, perguntei quanto era. Joana apenas sorriu e disse que não era nada, que era por conta da casa. Diante de tamanha generosidade, eu me senti obrigado a ficar por ali conversando com a minha quase amiga. E, confesso, a conversa foi muito melhor do que o sanduíche, que, por sinal, estava delicioso. 

          Fui dormir por volta das três horas. Acordei próximo ao meio-dia. Tratei de arrumar as coisas e voltar para a estrada. Passei na recepção para pagar pela hospedagem. Fui atendido por um rapaz. Agradeci e fui em direção ao meu caminhão, quando percebi que Joana vinha toda sorridente em minha direção.

          — Já de partida, Zé Carlos?

          — Preciso pegar meu rumo, Joana.

          — Que pena. Volta quando?

          — Não sei. Dependo dos fretes.

          — Então, siga seus planos. 

          Joana me deu um forte abraço e um beijo na bochecha. Não sei se ela fez de propósito, mas conseguiu com que eu sentisse vontade de ficar mais um pouco em Teresina.

          — E quais são os seus planos pra hoje, Joana?

          — Hoje é dia de me apaixonar por você.

          Diante de tal convite, não tive escolha nem desejo de pegar a estrada naquele dia. Fui para a casa de Joana, onde nos amamos por quase uma semana, até que, sem mais poder viver longe dela, decidimos juntar os trapos. E aqui estou, na nossa casinha na minha cidade natal, esperando a minha amada acordar. A mesa já está posta. Hoje teremos sanduíche de queijo e suco de acerola. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Pelas estradas do Nordeste" foi publicado por Notibras no dia 17/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/vida-de-caminhoneiro-se-completa-juntando-trapos/

Um dia daqueles

           É, o dia estava bom até eu sair da cama: um amigo em surto de ansiedade, outro em luto, um terceiro tomou um fora. E, para piorar, descobri que esses três amigos sou eu. Além do mais, o destino parece que me pregou uma peça, pois me chamo Benvindo José da Felicidade dos Santos. Quanta ironia em um nome tão comum! Aposto que você conhece, no mínimo, uns três. 

        Meu pai, que queria repetir o próprio nome no primogênito, acabou convencido por mamãe a mudar de ideia. Tudo por conta da data do meu nascimento, dois de novembro lá pelos idos de 1973. Do meu pai, restou apenas José e dos Santos. Felicidade, que mamãe nunca teve, foi invenção de minha avó, já acometida pela catarata. Mesmo assim, ela, até o último suspiro, jurava que havia enxergado esse sentimento nos meus olhos.

          Pois perdi vovó e, ao buscar conforto no colo da minha então namorada, a Rita, percebi uma mensagem há pouco recebida no celular: "Benvindo, não te amo mais. Creio que nunca o amei de verdade. Então, adeus!" Diante de tais notícias devastadoras, como é que alguém não fica deprimido? Taí o motivo de tanta ansiedade. 

          Nessas horas, queria ter a coragem do meu bisavô, cuja demência avançada o atormentou pelos anos 1940. Garrucha na mão, nem precisou pensar para puxar o gatilho. Foi aquele festival de sangue e massa encefálica para todo lado. Minha mãe me disse que foi necessário mais de ano de sabão e esponja para tirar as manchas na parede da antiga casa. No final, acabaram dando uma boa mão de tinta branca para esquecer tamanha desgraça.

          Para falar a verdade, mamãe, a despeito do ocorrido com o avô, sempre me disse que essa vontade de andar armado era coisa de homem pequeno. Não no tamanho, mas por conta da masculinidade abalada. Ela até hoje gosta de dizer que sujeito fraco é o que precisa ostentar na cintura algo que lhe falta na virilha. 

          Pois não serei eu a dar mais esse desgosto à minha mãe. Que sabão e esponja tenham outro destino mais nobre do que limpar as paredes daqui de casa. Além do mais, não tenho revólver, nem mesmo um simples estilingue. E, antes que eu possa pensar em outra alternativa para meu fim, eis que sou salvo por uma mensagem no celular. É meu grande amigo Leo, apaixonado por futebol: "Benvindo, que tal ver o nosso Vascão lá na casa do Seabra?" 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Um dia daqueles" foi publicado por Notibras no dia 17/5/2024.
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quinta-feira, 16 de maio de 2024

Aconteceu em 1973

    

        Era 1973, a tímida Alice ensaiava passos ao som de "O Vira", dos Secos & Molhados, nos intervalos do emprego de balconista na loja de tecidos. No final do expediente, caminhava até o ponto de ônibus, bem ali na equina. Direto para casa, da casa para o trabalho na manhã seguinte. 

          Alice estava na cidade há menos de um ano. Morava com o irmão, que havia chegado à capital logo após a conquista do tricampeonato. O pouco que ganhava, separava algumas notas para as despesas da casa e o restante entregava ao irmão, que juntava mais um tanto para enviar para a família lá em Codó, no Maranhão.

          Pois foi numa segunda-feira, princípio de abril ou maio, que a mocinha reparou em um rapaz de camisa branca e calça xadrez, sapatos gastos, mas que ainda davam para cobrir bons quilômetros. Os cabelos jogados para o lado cobriam-lhe metade da testa, enquanto o par de costeletas quase negras conferia àquele bonito rosto um ar de mais velho. 

          A moça percebeu a agitação do homem, que tragava a todo instante um cigarro, enquanto olhava para os lados, como se fugisse de algo. E foi justamente em um desses momentos em que ele notou aquela jovem. A primeira troca de olhares. O rapaz jogou a guimba no chão e a apagou com o sapato e sorriu para Alice. Tímida, ela abaixou o rosto e escondeu o sorriso junto aos seios.

          Não tardou, aquele homem entrou num ônibus, enquanto Alice o observava. Ela o acompanhou com o olhar e, logo em seguida, percebeu que o seu coletivo havia chegado. A mulher subiu, pagou a passagem e, sem local para se sentar, foi em pé até descer próximo à sua residência. Tempo suficiente para conjecturar muitas coisas.

          Na terça-feira, Alice achou que o dia demorou mais do que o devido, mas, por fim, deu a hora de sair. Ansiosa, seus passos foram mais ligeiros, até que chegou ao ponto de ônibus. O rapaz não estava lá. Será que ele já teria pegado o ônibus ou, pior, tudo havia sido apenas um sonho? Tal devaneio, todavia, foi deixado de lado assim que ela sentiu alguém lhe tocar o ombro. Alice se virou e deu de cara com aquele homem, que lhe sorriu pela segunda vez.

          — Prazer, me chamo Pedro.

          Alice, surpresa, não conseguiu esconder tamanha felicidade e, então, ofereceu seu melhor sorriso. Ela levou sua mão até a do homem, que já estava com a sua estendida. Os dois se cumprimentaram, mas não tiveram muito tempo para conversarem. Dessa vez, foi o ônibus da mulher que chegou primeiro. Ela entrou e, assim que subiu o primeiro degrau, acenou com a mão. Pedro beijou a palma da própria mão e acenou de volta.

          Após quase dois meses de conversas curtas naquele ponto de ônibus, Pedro segurou as mãos de Alice e, olho no olho, a pediu em namoro. A moça, que há tempos desejava aquilo, sorriu e disse sim. O homem, tomado de coragem, aproximou o rosto e beijou a face da mulher, que se sentiu respeitada.

          — Caso não seja inapropriado, gostaria de ir até a sua casa amanhã para oficializarmos o namoro. Naturalmente, desde que seu irmão concorde.

          Dia seguinte, uma sexta-feira, pela primeira vez, o casal tomou o mesmo ônibus. Sem local para sentar, os dois foram em pé, lado a lado, até descerem próximo à residência da mulher. Apesar do curto trajeto, ao qual Alice estava acostumada, naquele dia pareceu levar horas.

          O irmão da moça, que já sabia o motivo da presença daquele homem, aceitou com bons olhos o namoro. Pedro convidou a namorada e o cunhado para assistirem a um show que aconteceria no dia seguinte, um sábado. Ambos aceitaram o convite, enquanto jantavam e tomavam suco de groselha.

          O sábado chegou, mas nada do Pedro aparecer. Certamente algum imprevisto, Alice e o irmão imaginaram. Sem telefone para receber recados, a mulher passou o final de semana angustiada, até que, na segunda-feira feira, foi trabalhar na loja de tecidos. Ainda preocupada com o sumiço do agora namorado, a garota conseguiu esconder seus sentimentos, pois precisava atender a clientela.

          Final de expediente, Alice, passos apressados, foi para o ponto de ônibus. Não encontrou Pedro e, então, resolveu esperar por algum tempo. Veio seu ônibus, mas o deixou ir. Pegaria o próximo. Nada do namorado. Perdeu o segundo, o terceiro, mas não pode deixar o quarto. Subiu os degraus e lançou o olhar desolado para fora. 

          No dia seguinte, Alice também esperou pelo namorado, mas ele não apareceu. Fez o mesmo no outro dia. Todavia, nenhuma notícia do Pedro. O que teria acontecido com ele? Ela chorou o que precisou chorar, até que as lágrimas, exaustas por serem derramadas, voltaram-se para seu coração amargurado da mulher.

          Ainda hoje, 2024, as pessoas que frequentam o mesmo ponto de ônibus observam aquela velha, cabelos brancos, face enrugada. Seus olhos, ainda ansiosos, parecem esperar por alguém que, talvez, nunca volte. Tempos de chumbo. 

  • Nota de esclarecimenhto: O conto "Aconteceu em 1973" foi publicado por Notibras no dia 16/5/2024.
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quarta-feira, 15 de maio de 2024

Gilda e a sua vovó lendária

     

          Não sei se você conhece a Gilda, filha da dona Nice, aquela da rua de baixo. Um pitéu por assim dizer. Por onde passa, é aquele mundaréu de olhares, muitos interessados, outros tantos de pura inveja, beirando o ódio. Como é que pode ser tão bonita?

          Andam dizendo por aqui que a moça quer ser atriz, mas tal bafafá carece de verdade. É que soube de fonte fidedigna que a Gilda quer ser bióloga, esse povo que sabe tudo de planta e bicho, além de outras coisas da natureza. Inteligência não lhe falta, pois herdou tal qualidade da mãe, que é advogada das boas.

          A beleza, certamente, não veio do pai, mas da avó materna, a lendária Odete, rainha de carnavais de outrora. Olhares saudosos, todavia, afirmam que Gilda, apesar de belíssima, ainda assim não consegue superar os predicativos da vovó, cujo casamento foi aquele quiprocó. Tudo porque Agnaldo, o noivo, possuía um irmão gêmeo, o Ednaldo, tão idêntico, que dizem que até os dois não sabiam quem era quem. 

          Resumo da história. Agnaldo, de tão emocionado no dia do casório, aceitou uma taça de vinho logo cedo. Tomou mais uma, depois outra e não sei mais quantas. Estatelou-se na cama e, esquecido por ali, só acordou na manhã seguinte.

          Pobre Odete, ficou sem o noivo, você deve estar pensando. Que nada! Ednaldo, que queria porque queria aquelas carnes, aproveitou a oportunidade e se fez de noivo. Pois é, casou-se com a noiva do irmão.

          Mas não pense você que a história terminou por aí. Ah, não mesmo! Para não ficar feio para a família, Ednaldo e Agnaldo combinaram trocar as identidades para sempre. E foi o que fizeram. 

          Se Odete algum dia percebeu a troca, ninguém sabe ao certo. Mas há quem jure que, logo na manhã após a noite de núpcias, ela tenha arregalado aqueles olhos de cílios enormes, que quando piscavam quase faziam barulho. Em seguida, sorriu o sorriso das mulheres bem-amadas e disse para o marido:

—Agnaldo, meu amor, que bom que você deixou aquela timidez de lado. Acredita que até pensei em desistir do casamento?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Gilda e a sua vovó lendária" foi publicado por Notibras no dia 15/5/2024.
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terça-feira, 14 de maio de 2024

Chá com torradinhas e buraco

            

          Gervásia, Almeida por parte do pai, famoso industrial dos anos 1970, falido 20 anos após pelos desastrosos planos do governo, nasceu e se criou na vastidão da cidade de São Paulo. E, se a mulher não herdou a fortuna que um dia esperou receber, vivia confortavelmente em um dos sete apartamentos após o inventário. Quanto aos outros, alugava-os a peso de ouro em bairros nobres da capital paulista. 

          Aos 73, acabou se mudando para Brasília. Tudo por causa do filho caçula, que virou sócio de um importante escritório de advocacia por lá. Um amor de rapaz, mas que nem por isso justificava aquela preferência por parte de Gervásia. Coisas de mãe, alguém poderia dizer, provocava rancor no resto da prole. 

          Devidamente instalada em um amplo apartamento na Asa Sul, Gervásia sentia falta das amigas de carteado. Um bando de velhos, por assim dizer, que passava tardes acaloradas à custa de chá servido com torradas. Geleia ou manteiga, de acordo com o gosto de cada um. 

          Gervásia se sentia tão isolada em Brasília, que estava disposta a aceitar qualquer convite para eventos. E, na primeira oportunidade que surgiu, lá foi a velha cumprir o papel de moradora na reunião de condomínio. Entre tantos assuntos desinteressantes, acabou se aproximando da Eulália, idosa quase tão anosa como ela. 

          Surgiu uma conexão tão forte entre as duas, que resolveram prolongar o papo após a reunião acabar. Prometeram um chá para o dia seguinte, e foi o que aconteceu, justamente no apartamento da Gervásia. Conversa vai, conversa vem, descobriram tantos gostos em comum. Amavam o Cauby Peixoto, eram apaixonadas pelo Marcello Mastroianni e adoravam jogar buraco. 

          Eulália, que possuía uma patota que já havia dobrado o cabo da boa esperança há tempos, propôs outro chá para a quinta-feira. Quis porque quis que o evento fosse no seu apartamento, mas foi convencida por Gervásia que fosse no dela. Dito e feito, lá estava aquela gente bebericando chazinho e degustando torradinhas no lar, doce lar da Gervásia. 

          Mesa armada, as duplas foram formadas e o jogo de cartas virou tradição naquele prédio. Ninguém queria perder aqueles eventos tão disputados. De vez em quando, apareciam dois ou três outros velhos. Para falar a verdade, eram mais velhas do que velhos, principalmente as quase inseparáveis Vânia e Deise Mentirinha. Esta era conhecida por tal alcunha não porque tivesse o hábito da inverdade, mas pelo simples fato de ser uma mulher bem baixinha, quase anã. E, como mentira tem perna curta, o apelido pegou logo na infância e, mesmo após tantos anos, a perseguia. No início a irritava, chegou até quase virar caso de polícia. E virou! 

          E foi assim que ela conheceu seu falecido marido, Paulão Suspiro, o então delegado linha dura da 1ª Delegacia de Polícia de Salvador. Aliás, o policial não era afeito à guloseima que lhe serviu de alcunha. Isso era devido aos suspiros que as mocinhas da época davam quando se defrontavam com aquele homem charmoso, ainda mais quando afiava as pontas do bigode bem cuidado. Seja como for, Paulão, que media para lá de um metro e noventa, logo de cara se viu apaixonado pela Deise. E tudo porque ela, então com menos de 20 anos, havia ido à delegacia depor contra um grupo de arruaceiros que vivia zombando de suas perninhas tão curtas: “Olha, menina, mentira tem perna curta!”, provocavam.

          O depoimento caiu no esquecimento. A moça chegou até mesmo a agradecer a Deus pelo apelido, já que foi graças a ele que conheceu o homem da sua vida. E, dessa forma, passou a não ligar. Ou melhor, até ligava, mas quando as pessoas passavam muito tempo sem lembrá-la do apelido. Tanto é que vieram os filhos, os netos e, mesmo assim, ela sempre fez questão de falar para todos, sem exceção, como foi o dia do primeiro encontro com o seu Paulão Suspiro. 

          Os dois viveram 45 anos relativamente felizes, até que Paulão não suportou os efeitos de um enfisema pulmonar e, depois de agonizar por quase duas semanas, deu seu último suspiro. Mentirinha, meio a contragosto, atendendo aos apelos do filho que acabara de se separar, mudou-se para Brasília. Infeliz no começo, acabou se enturmando com a Eulália, com quem passou a dividir as agruras da viuvez. Mas deixemos de lado tais histórias, pois hoje o jogo de buraco está tão disputado, que periga sair faísca.   

  • Nota de esclarecimento: O conto "Chá com torradinhas e buraco" foi publicado por Notibras no dia 14/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/gervasia-paulista-faz-jogo-de-buraco-soltar-faisca/

Adúlteros e quitutes

    

            Helena não era necessariamente a mais atraente, mas, aos 25 anos, possuía atrativos próprios da idade. Isso, aliás, foi mais do que suficiente para chamar a atenção de Ribamar, 43 anos, casado com Ruth, formosa aos 38 e, para tornar a história ainda mais atraente aos curiosos de plantão, prima de Helena. Prima de verdade e, pelo visto, sem qualquer consideração.

          Dizem que aconteceu num encontro de família há quase dois anos. Todavia, de tantas versões sobre o ocorrido, digamos que foi no Natal, mas há quem afirme categoricamente que aconteceu na Páscoa. Independentemente da data, Ribamar esticou os olhos para o lado das coxas torneadas da Helena, que desfilava enfiada dentro de um vestido minúsculo. O que é bonito é para ser mostrado. 

          Enquanto Ruth, faca na mão, estava prestes a cortar o peru, que repousava morto sobre a enorme mesa, formou-se uma fila. Ribamar, demonstrando cavalheiro como ele só naquele dia, cedeu o lugar para Helena, que sorriu agradecida. Até aquele momento não eram íntimos, mas, talvez por conta do espírito natalino, conversaram amenidades e trocaram telefones. 

          O primeiro encontro daqueles dois aconteceu na cidade vizinha, Teresina, na residência da Martinha, que é tia de Ruth e de Helena. A dona da casa, passada dos 80 anos, fingiu-se de sonsa, pois, parece, estava acostumada com aquelas coisas na família. Não se sabe ao certo se a velha tapou os ouvidos ou, então, uma providencial surdez a acometeu enquanto Helena e Ribamar se conheciam debaixo dos lençóis no quarto ao lado. 

          Depois de prosearem por horas, a fome se fazia presente no estômago dos enamorados. Todavia, Martinha, boa anfitriã que é até hoje, já havia preparado alguns mimos em formato de cuscuz, queijo, presunto e suco de caju. Se o casal quisesse, havia também aquele bolo de fubá que já estava saindo do forno. 

          Agradecidos pela hospedagem, Helena e Ribamar se despediam da anfitriã e voltavam para Caxias antes que alguém desse por falta daqueles dois. Uma desculpa aqui, outra ali, as coisas pareciam se ajeitar, até que Ruth começou a desconfiar da pouca disposição do marido. Como é que pode? Algo estava errado, pois Ribamar, apesar de quase 20 anos de casado, comparecia pelo menos três vezes por semana. 

          Cabreira como ela só, Ruth fingiu-se de boba por alguns dias, até que resolveu seguir o gajo. Por mais de uma vez, perdeu o marido de vista, até que, numa quarta-feira, repleta de desalento pela situação, buscou conselho justamente da Martinha. Encontrou a tia tomando chá de ervas, enquanto sobre a mesa repousavam algumas iguarias. 

          Martinha, atriz das boas, acolheu a sobrinha com um abraço. As duas se sentaram, enquanto Ruth começou a expor suas preocupações em relação ao marido. A tia apenas observava, enquanto continuava bebericando o chá. Ficaram ali por quase duas horas, até que Ruth, percebendo que já havia falado demais, disse que precisava voltar para casa, antes que o marido chegasse. 

          Porta aberta, tia e sobrinha trocaram beijos, mas eis que um gemido agudo chegou aos ouvidos das duas. Ruth olhou para Martinha, que tentou apressar a despedida, mas a sobrinha não se convenceu, ainda mais porque escutou outro gemido, agora mais grave, vindo detrás da porta do quarto.

          — É o gato.

          — Gato? Que gato? Até onde sei, a senhora nunca gostou de gato, tia.

          Sem forças para impedir a sobrinha, Martinha viu Ruth abrir a porta e tomar aquele susto. A confusão se armou e só não aconteceu morte porque a velha, já prevendo o pior, mantinha todas as facas devidamente escondidas. Helena, apesar da surra e da humilhação de fugir pelada pela rua, sobreviveu. 

          Quanto ao Ribamar, recebeu passivamente alguns tabefes na cara. Sem argumentos ou desculpas para inventar, calou-se até que, quase um mês após o ocorrido, foi aceito de volta pela esposa. O casal, aliás, costuma frequentar semanalmente a casa da Martinha. Afinal, a velha, além de excelente anfitriã, sabe preparar ótimos quitutes para corpos que precisam recompor as energias.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Adúlteros e quitutes" foi publicado por Notibras no dia 14/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/martinha-a-velha-tia-ve-helena-correr-nua-pela-rua/

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Entre a realidade e o devaneio

    

    Joana, mulher afeita à matemática desde sempre, foi se enrabichar justamente pelo Francisco, apaixonado em todo o seu ser por poesia e religião. Não que os números sejam apenas dígitos, mesmo porque a aritmética, a álgebra e a geometria têm lá seu lado encantador, apesar da maioria das pessoas só enxergar a sua faceta lúgubre. E aqueles dois se entenderam entre versos livres ou amarrados a unidades, dezenas, centenas e alguns milhares. Coisas do coração.

          Apegada à realidade, Joana não se importava se o amado conseguia ver a força de Deus em tudo. Até quando Francisco ficou encucado que o perímetro de um quadrado poderia ser o mesmo de um retângulo, mas suas áreas seriam distintas, ele, olhos arregalados, exclamou: "Que maravilha! Só Deus poderia fazer isso possível!" A mulher, apesar do espanto pela maneira mística do homem enxergar a ciência, não quis buscar pendenga, mesmo porque Francisco beijava bem. 

          E assim aqueles dois foram se ajeitando. Joana, depois de alguns anos de união estável, se viu grávida de gêmeos. Ficou receosa do marido se desesperar com a notícia e, somente após o quinto mês, Francisco desconfiou. 

          — Meu amor, ou você está mais gordinha ou, então, vamos ser abençoados com a chegada de um bebê.

          — Duas.

          — Duas o quê? Não entendi, Joana.

          — São gêmeas.

          Francisco, ao pé da barriga da mulher, começou a falar que tudo aquilo era mais um presente de Deus. Ela, por sua vez, pensou em questionar o marido: "Será que você se esqueceu que fazemos amor regularmente?" Mas deixou quieto. Melhor viver em paz, ainda mais porque precisava arrumar as coisas para as crianças que iriam chegar.

          Maria Luiza e Luiza Maria nasceram no início de setembro. Deram muito trabalho, é verdade. Todavia, as alegrias foram tantas, que Francisco até questionou a esposa sobre novos filhos. Joana, mais racional, talvez tenha perdido um pouco a linha, mas nada que pudesse condená-la. Afinal, puerpério tem essas coisas.

          — Tá maluco, Francisco?

          Nunca mais tocaram no assunto. As meninas, cada vez mais fortes, cresceram e, não tardou, chegou o tempo de creche, escola, vestibular, faculdade, primeiro emprego. Quando os pais perceberam, aquelas duas já carregavam no colo as próprias crianças. E assim as coisas aconteceram e continuaram acontecendo, até que, repentinamente, o coração do Francisco parou. Parou de vez, como era nítido ao vê-lo gélido naquele caixão.

          Joana, chorosa, foi consolada pelas filhas. Triste momento após quase 50 anos de relacionamento. Maria Luiza e Luiza Maria, cada uma de um lado, abraçaram a mãe.

          — A vida é como uma vela acesa, meninas.

          — Uma bênção divina, né, mamãe?

          — Não, Maria Luiza. Com um sopro, se apaga.  

  • Nota de esclarecimento: O conto "Entre a realidade e o devaneio" foi publicado por Notibras no dia 13/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/casal-vive-realidade-e-devaneios-ate-a-viuvez/

domingo, 12 de maio de 2024

Mestre-cuca desde sempre

    

Há quase 30 anos, metido com gastronomia, finalmente consegui abrir meu próprio restaurante aqui em Recife, cidade em que nasci. E, apesar de tanto tempo, ainda não completei 40 anos. É que, desde menino, adorava criar receitas novas com o auxílio da Solange, minha irmã dois anos mais velha. 

        Sentado que estou numa das 38 mesas, sorvo um café antes de começar os preparativos do dia. Olho ao redor e não consigo deixar de pensar que tudo isso teve início a partir de brincadeiras de um menino com ideias que arrancavam caretas de mamãe. Apesar de tudo, ela sempre foi minha maior incentivadora nesse longo caminho até aqui. Ah, dona Sílvia, como eu queria que a senhora estive aqui vendo a cara de satisfação da clientela a cada garfada. Aos trancos e barrancos, aquele garoto conseguiu!

          Mamãe falava que um dia me veria mestre-cuca. Não sei se cheguei ao nível que ela esperava, mas creio que não me saí tão mal assim. Seja como for, ela me ajudou nesse longo caminho, pois sempre me deu dicas sobre os sabores dos alimentos. Dizia para ter cuidado para não sobrepor o gosto de um em relação a outro. Todos mereciam ser ouvidos pelas nossas papilas. Pois é, ouvidos! Mamãe sabia se fazer poeta até quando me ensinava a arte de cozinhar.

        Certa vez, lá pelos idos de 1994, 1995, minha irmã e eu havíamos colocado uma quantidade inimaginável de ingredientes sobre a ampla mesa da cozinha. Farinha de trigo, ovos, leite, coentro, sal, açúcar, tomates cortados em pedaços minúsculos, um tanto de cebola, azeite, pimenta do reino e algumas pimentas malaguetas. Começamos a misturar aquilo tudo, quando mamãe chegou. 

          Curiosa, ela ficou nos observando por um instante. Solange e eu continuamos a preparar a nossa receita maluca, quando, então, minha mãe sorriu e, por fim, tivemos o seguinte interlúdio.

              — Crianças, que miscelânea é essa?

              Minha irmã sorriu aquele sorriso de nervoso que até hoje tem. Mamãe, que não era boba, percebeu que eu estava encucado com algo.

              — Matheus, você sabe o que é miscelânea, né?

              — Sei, sim, senhora. Mas prefiro goiaba. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Mestre-cuca desde sempre" foi publicado por Notibras no dia 12/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/mestre-cuca-desde-sempre-mas-o-cardapio/

Só o gordinho pra resolver o problema

            Lá estava o Santana arrastando o corpanzil para mais um plantão na delegacia. Nesse dia em questão, o humor não estava dos melhores. Mas sejamos justos com o policial, já que isso é coisa rara, se bem que acontece todos os dias. Até em sonhos, dizem as más e até as boas línguas, o Santana vive resmungando. 

          Entrou no recinto, passou direto sem cumprimentar quem quer que seja. Nem mesmo uma simples troca de olhares, ainda mais porque ali se encontrava o agente Ricky Ricardo, para quem o Santana devia uma grana há tempos e, pelo visto, ainda não encontrara ânimo para quitá-la. Mas não pense que o Ricky achava tal situação ruim. Na verdade, ele até gostava, pois tinha o seguinte pensamento: "Me livrei de um zé ruela por cem reais. Saiu quase de graça!"

          Além do Ricky e do Santana, também estavam na delegacia os agentes Meio Quilo e Satanás, além do delegado Maurinette, que, por conta da pinta de galã, estava tentando virar ator. Quanto ao escrivão Tô Chengando, ainda não havia chegado, mas já mandara mensagem dizendo que daqui a pouco, no mais tardar até o final do plantão, estaria na delegacia. 

          Já na cozinha, o Santana encheu uma xícara de café. Fez cara de quem não gostou, mas, logo que viu a Sissi, que havia preparado uma garrafa da bebida mais brasileira, tentou disfarçar. Pois é, até o Santana sabia que a mulher não aceitava desaforo.

          — Tá uma delícia, Sissi!

          — Hum! Ainda bem, Santana! Fica esperto, pois comigo o buraco é mais embaixo.

          O Santana desviou o olhar e tornou a encher a xícara na esperança de convencê-la de que havia mesmo gostado do café. Sorveu tudo forçando um sorriso debaixo do vasto bigode. Pensou até em encher a xícara novamente, mas começou a sentir tonteira por conta de tanta cafeína. Melhor evitar um piripaque.

          Enquanto isso, aproveitando o raro momento de calmaria na delegacia, os policiais estavam de bate-papo. Todavia, não tardou, entrou uma mulher esbaforida, que era conhecida da prima de uma tia, que, por sua vez, seria vizinha de um amigo do irmão do delegado Miranda. Ela havia sido vítima de furto.

          — Me falaram pra procurar um policial gordinho, que ele resolveria a minha situação.

          Instintivamente, todos, inclusive o Meio Quilo, encolheram a barriga. Sobrou pro Santana, que apareceu naquele exato momento. A mulher não teve dúvida.

          — É você!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Só o gordinho pra resolver o problema" foi publicado por Notibras no dia 12/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/agente-mau-humorado-provoca-risos-no-plantao/

sábado, 11 de maio de 2024

Amigas opostas

    

            Otimista que nem ela só, Yasmin causava gastura na melhor amiga, que era o oposto de tanta certeza da felicidade. Mas amizade é para isso mesmo, pois não há defeito que as separe. Pior seria se fossem convergentes nas ideias, mas inimigas. Aí, até as maiores virtudes seriam vistas como imperfeições gravíssimas.

          —  Ana Paula, animada pro churrasco na casa do Juvenal?

          — Ih, amiga, acho que nem vou.

          — Mas por quê, mulher?

          — Deve cair o maior temporal.

          — Que nada! Vai dar praia até semana que vem. 

          — Ih, então, não vou.

          — Mas por quê, mulher?

          — Vou acabar pegando um câncer de pele.

          — Ah, Ana Paula, só você pra ser tão baixo-astral. Mas deixa de besteira, que passo aqui à tarde pra irmos juntas.

          Quando as duas chegaram à casa do Juvenal, a voz de Beth Carvalho já tomava conta do ambiente. Yasmin, toda sorrisos, carimbou a bochecha do anfitrião com o batom rosa fúcsia. Ana Paula, cujo bico não lhe dava trégua, olhava aquilo tudo cheia de tédio.

          Juninho, famoso pelo samba nos pés, puxou Yasmin pelas mãos. E lá foi o casal de última hora dançar, cantar e gargalhar até que a garganta ficou sedenta por aquela cerveja. Os dois, cada qual com seu copo na mão, bebiam a gelada, quando a Ana Paula chamou a amiga no canto.

          — Yasmin, vamos embora!

          — Que embora que nada, mulher! A festa tá show!

          — Só se for show de horrores, né?

          — Ana Paula, hoje é sexta-feira, deixa a felicidade entrar.

          — Hum! Pra que tanta felicidade, Yasmin?

          — Mulher, se a vida me dá limões, trato logo de fazer uma limonada.

          — Pois eu espremo tudinho nos olhos.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Amigas opostas" foi publicado por Notibras no dia 11/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/yasmin-faz-limonada-mas-ana-paula-chupa-os-limoes/

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Elis e a fase ruim

    

    Não era religiosa, mas tinha lá suas superstições, ainda mais porque nascera na terra de todos os santos, apesar de, menina ainda, ter se mudado para Lauro de Freitas, bem ali grudadinho. Tanto é que nunca abandonara a cidade natal, pois gostava de caminhar até a praia do Flamengo, onde passava longas manhãs e um tiquinho das tardes com os amigos. 

          Elis, nome de cantora, sempre foi ciente das limitações para o canto, mas conseguiu coxas torneadas que nem Tina Turner. Imagine se soubesse que um dó é um dó, um ré é um ré e até que um lá é um lá. Que nada, pensava Elis debaixo daquele sol em frente à praia: "Com o que tenho, já dá pra saracotear o mundo!"

          A moça, longe de estar equivocada, era pura felicidade, como provou os anos de glória que se seguiram. Isto é, até que chegou não aos 30, mas aos 33. Que ano foi aquele para Elis! Tudo parecia dar errado. De tão errado, tinha até medo de se queimar ao abrir a geladeira. Conselhos pululavam de toda parte.

          — Amiga, vou te levar num babalorixá.

          — Já conversou com o padre?

          — Isso aí é mandinga!

          — Tá parecendo bruxaria.

          — Olho gordo na certa!

          — Isso é inveja, amiga!

          E foi justamente quando a azarada estava ouvindo tanto palpite, que chegou um pastor, que também quis dar pitaco onde não tinha sido chamado. Elis olhou aquele homem de terno preto naquele calor infernal e não teve dúvida.

          — Ih, quando o Tinhoso não vem, manda o secretário.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Elis e a fase ruim" foi publicado por Notibras no dia 10/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/quando-a-coisa-ta-feia-nem-o-tinhoso-aparece/