sexta-feira, 30 de setembro de 2022

O dom de Joaquim

  

    Joaquim, que não era bom na escola, que não era o craque nas peladas da rua, que tinha horror só de pensar que talvez um dia terminasse como seu pai, um reles ajudante de pedreiro, desde cedo fora embalado por sonhos grandiosos. De tão grandiosos, seu rosto, nem bonito nem feio, sempre carregava aquele sorriso deveras cativante, que encantava a todos, até mesmo a ranzinza Gertrudes, que resmungava inclusive da própria rabugice. 

  Sem qualquer talento aparente, Joaquim se deparou com aquele que supera todos os outros: a arte de enganar. Dessa forma, passou a aplicar pequenos golpes aqui, outros pouco mais elaborados ali, até que quase foi pego no flagra acolá, quando tentou tirar uma grana justamente da Gertrudes. Não que ela tenha percebido ou, se percebeu, pareceu não se importar, já que Joaquim lhe fazia a vez de benquisto nas noites solitárias. Todavia, Danilo, irmão de sangue da dita cuja, percebeu a intenção do moleque e, certo dia, o chamou para uma conversa no canto.

    Pastor de igreja, Danilo vivia viajando em seu velho Fusca pelas pequenas cidades da região, onde professava a mais santa palavra para as pobres almas perdidas. Entretanto, ao invés de reprimendas, Joaquim só ouviu elogios. Sim, isso mesmo! Efusiva admiração! 

    _ Você tem um dom, meu filho! E, por isso, você precisa agradecer ao Nosso Senhor Jesus Cristo!

    Joaquim, que a princípio não entendeu aquelas palavras, nem por isso deixou de apreciá-las. Afinal, ele tinha um dom, e esse havia sido um presente do próprio Jesus Cristo! Nada de mexer com tijolos e cimento! Sua vida seria bem diferente daquela sofrida diariamente pelo seu pai, que precisava labutar em eterna humilhação para conseguir o mínimo para não morrer de fome.

    O pastor Danilo passou a dedicar parte do seu tempo a ensinar as artimanhas do ofício a seu novo pupilo, que demonstrou um talento bem acima do esperado. Desse modo, logo nas semanas seguintes, lá estava o Joaquim, agora renomeado Pastor Richard, acompanhando o seu mestre. 

    As viagens prosseguiram, alcançaram cidades mais distantes, os fiéis se multiplicaram. E, logo que principiou o segundo ano de tanta correria, lá estava aquele agora homem feito, que há pouco esquentava os solitários lençóis da Gertrudes, sentado no banco de trás, enquanto o seu motorista particular conduzia aquele luxuoso automóvel pelas estradas. Tudo fruto daquele dom vindo diretamente lá de cima!

  • Nota de esclarecimento: O conto "O dom de Joaquim" foi publicado pelo Notibras no dia 17/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/don-juan-acha-caminho-da-fortuna-pregando/

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Tereza, Armandinho e o angu

   Adolescência é uma fase complicada para praticamente todos os mortais e, na verdade, não foi muito diferente para Tereza, pouco mais rechonchuda que a maioria, óculos fundo de garrafa, além das bochechas repletas de erupções conhecidas vulgarmente como espinhas. No entanto, a despeito de tais percalços, ela não tirava os olhos do Armandinho, que, caso desejasse ser ator, poderia facilmente interpretar qualquer galãzinho de seriado infantojuvenil.

    Veja você o que aconteceu certo dia! Pois lá estava a Tereza na festinha de formatura da turma, jogada num canto, como se tivesse sido esquecida ali. Ninguém a notava, muito menos o Armandinho, que recebia todos os olhares femininos, além de despertar a inveja nos rapazes. 

    Seja como for, pela primeira vez em toda sua existência, Tereza criou coragem para, finalmente, ir ao encontro ao seu amado. E foi! Foi mesmo, mas tudo aconteceu como o previsto por quase todos, menos pela pobre garota. Gente, que fora a Tereza levou! Além de caras e bocas, o Armandinho ainda foi cruel, como praticamente todo adolescente sabe ser.

    _ Se enxerga, cara de pipoca!

   Todos caíram na gargalhada, o que contribuiu ainda mais para aumentar o posto de herói da galera. Tanto é que esse foi o assunto do dia seguinte, da semana inteira, quase perdurante pelo restinho do ano. O trauma foi tão grande, que Tereza desejou sumir do mapa. Não necessariamente do mapa, mas daquela rua. Por sorte, acabou passando no vestibular e até mudou de cidade. 

   Os anos se passaram, levando consigo aquelas marcas terríveis da adolescência. Tereza, agora com seus pouco mais de 30 anos, havia montado sua própria empresa de construção civil. Transformara-se numa mulher muito bonita, ainda mais porque o dinheiro havia dado uma forcinha para a natureza. Tereza poderia ser chamada de mulher que para qualquer trânsito. Se bem que essa frase não é a mais apropriada para se dizer em São Paulo, onde ela morava, já que o trânsito por lá, de tão caótico, vive parado.

   Os dias corriam ligeiros na capital paulista, mas nem por isso Tereza deixava de curtir as noites de sexta-feira. Aliás, ela tinha até uma frase pronta para essas ocasiões: "Preciso desopilar o fígado!" E foi justamente numa dessas saídas, na casa de uma amiga, que ela acabou reencontrando sua paixonite dos tempos de escola. Tereza logo o reconheceu, já que não havia mudado tanto assim. Na verdade, ela pensou: "Não é que o filho da mãe está ainda mais bonito!"

    Tereza fez questão de ser notada pelo seu antigo colega de sala. E foi! Tanto é que foi ele quem se aproximou, como se fosse um caçador certo de que iria se dar muito bem diante daquela caça tão formosa. Trocaram olhares sorridentes. "Não me lembrava que esse cretino tinha dentes tão lindos", pensou Tereza. 

    Passaram a noite toda praticamente conversando a sós. Ele, obviamente, parecia não a reconhecer. Ela, por sua vez, não fez a menor questão que ele soubesse. E, já na hora dos últimos batimentos cardíacos da festa, o irresistível Armandinho pegou suavemente a delicada mão de Tereza, ao mesmo tempo em que lhe lançou aquele olhar penetrante.

    _ Quer esticar a noite no meu apartamento?

    _ Garoto, se você não aproveitou quando o angu estava quente, agora é que não dá mesmo!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Tereza, Armandinho e o angu" foi publicado pelo Notibras no dia 06/06/2023. Por solicitação da redação do jornal, o texto foi adaptado para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/armandinho-querido-angu-se-come-quente/

terça-feira, 27 de setembro de 2022

José, Pedro e o mar

´

   Dizem que essa história aconteceu nos anos 1960. E, segundo me foi contada, ocorreu no Rio de Janeiro, que havia perdido o posto de capital para Brasília. Seja como for, lá estavam aqueles dois amigos conversando sobre as grandes oportunidades na nova cidade cercada por todos os lados de Goiás e mais Goiás, além de um tiquinho de Minas Gerais. 

  José queria porque queria se mudar para Brasília, enquanto Pedro cismava em manter os pés bem fincados na Cidade Maravilhosa. Essa conversa se arrastou por mais de ano, até que o amigo aventureiro fez uma proposta irrecusável. 

  _ Pedro, consegui emprego pra nós dois em Brasília. Vamos ganhar o triplo e ainda vão dar um terreno pra cada um de nós.

  _ Vou não!

  _ Mas por que não, homem de Deus?

  _ Lá não tem mar. Sou pescador, gosto de jogar tarrafa! 

  • Nota de esclarecimento: O conto "José, Pedro e o mar" foi publicado por Notibras no dia 20/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/emprego-fica-na-vontade-porque-brasilia-nao-tem-mar/

A menina, o velho e os ratos

    A menina era tão aficionada pelo avô, que chegava a largar o aparelho celular por alguns instantes, enquanto o velho contava infinitas histórias sobre os tempos antigos. E, de tão antigos, ela chegava a duvidar, por um momento, que esses idos realmente pudessem ter existido. No entanto, isso não era motivo para que ela não continuasse mantendo aqueles olhos enormes fascinados pelo dono daquele rosto incrivelmente enrugado.

    De todas modernidades daquele tempo tão distante, o velho enaltecia o rádio. Pois é, o rádio! Era justamente através dele que as notícias chegavam. Ouvidos de todas as classes sociais grudados naquela caixinha falante. A menina tentava imaginar o cenário, mas não conseguia entender como é que todos sobreviviam sem os avanços tecnológicos dos últimos anos. 

    _ Vô, mas como é que as pessoas conseguiam viver sem internet? Vocês não sentiam falta?

    _ Que nada! Era uma vida muito boa! A gente saía chutando ratos pelas ruas. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "A menina, o velho e os ratos" foi publicado por Notibras no dia 29/1/2024.
  • https://www.notibras.com/site/quem-nao-tem-cao-nem-internet-chuta-ratos/

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Minha madrinha, Elvis e eu

   Essa história que vou lhe contar aconteceu logo após um acidente automobilístico que sofri no longínquo ano de 1996 na avenida Brasil, no Rio. Para ser mais exato, o fato ocorreu no dia 16 de agosto daquele ano. Como resultado, quebrei os dois braços, a perna direita, o nariz, mandíbula e maxilar, além de ter perdido um pedacinho da parte lateral da língua. Quanto ao carro, foi direto para o ferro velho. 

    Pois bem, lá estava eu no hospital, todo remendado, com gessos espalhados pelo corpo. Meus queridos padrinhos, a Marilda e o Celso, foram me fazer uma visita. Eles pareciam aflitos, ainda mais ela, que sempre foi extremamente carinhosa comigo. Então, aqueles mimos estavam levantando meu ânimo, até que a Marilda solta essa.

    _ Meu filho, olha que coisa legal!

    Eu, que quase não conseguia pronunciar um ai, tamanha a dor que ainda sentia por conta das fraturas, apenas olhei para o sorriso da minha madrinha, que emendou essa.

    _ Você bateu de carro no mesmo dia em que o Elvis desencarnou.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Minha madrinha, Elvis e eu" foi publicada pelo Notibras no dia 16/08/2023.
  • https://www.notibras.com/site/acidente-com-velho-carro-tem-fraturas-e-corta-lingua/?

As aventuras do tio Biba

 

    Ubiratan Rocha era um desses tipos austeros, que passam facilmente a ideia de ilibação total. Todos o tinham em mais alta consideração, ainda mais porque, pelo menos nos últimos quase 30 anos, Ubiratan tenha sido visto praticamente apenas de terno de linho fino, sempre impecável, com esmero até na hora de manter os vincos. 

    Do alto do seu quase 1,90 m, lá vinha o Ubiratan, que nas festas da família sempre era visto com certa admiração até pelos mais novos. Afinal, ele, que era carinhosamente conhecido como tio Biba, sempre trazia nos bolsos do paletó guloseimas, que eram disputadas quase a tapas pelas crianças. Era uma loucura aquela situação, como se fossem piranhas querendo cada qual seu naco. 

    Pedrinho, talvez o sobrinho mais curioso daquela trupe devoradora de doces, sempre quis seguir os passos, aparentemente gloriosos, do tio Biba. Pois é, ele também desejava ser aviador. Não um simples piloto, mas um como o seu herói, que, segundo rezava as vastas histórias, já tivera seu próprio avião durante a juventude. 

    De todas as histórias que havia escutado, a que mais gostava era sobre as inúmeras viagens que o tio Biba havia feito para os Estados Unidos desde o início dos anos 1970 até meados dos 1990.  Isso até que, certo dia, quando o Pedrinho cresceu e, finalmente, teve uma conversa mais aprofundada com o pai sobre o tio Biba.

    _ Pai, me conta mais sobre as aventuras do tio Biba.

    _ O que você quer saber?

    _ Fale sobre as viagens que ele fazia para os Estados Unidos.

    _ Ah, tá! Nesse tempo, o tio Biba fazia até quatro viagens por mês para a terra do tio Sam.

    _ Tudo isso? 

    _ Sim! É que nessa época ele contrabandeava aves daqui para lá - finalmente contou o pai, que logo percebeu os olhos de total incredulidade do filho. Antes o segredo não tivesse sido revelado.

  • Nota de esclarecimento: O conto "As aventuras do tio Biba" foi publicado pelo Notibras no dia 31/05/2023.
  • https://www.notibras.com/site/aventuras-do-tio-biba-eram-contrabando-de-aves/

Honório e Hilário, os irmãos sovinas

    Honório era homem de negócios, vivia atribulado, pois não conseguia deixar de pensar no que seria o próximo dia, já que a situação do país, como de costume, não andava promissora. Seu irmão, Hilário, apesar de toda austeridade quase idêntica, parecia levar uma vida pouco mais suave. Tal suavidade, no entanto, parecia, de certa maneira, total desregramento aos olhos do Honório.

   Enquanto o Honório contava os centavos, apenas as somas pouco mais significativas pareciam interessar o Hilário. Não que este fosse pródigo, mas tentava olhar o mundo como algo onde também existissem momentos para certa luxúria, como, por exemplo, enamorar-se por um belo par de pernas de vez em quando. E, apesar dessa ínfima desavença, os dois se davam muito bem, desde que os lucros auferidos no mês vigente fossem maiores que os do anterior. 

    Certo dia, lá estava o Hilário conferindo os ganhos do dia. As cédulas eram colocadas de um lado, as moedas, que já não eram tantas, permaneciam espalhadas do outro. Tudo dentro dos conformes, como diriam alguns, até que o Honório, todo ressabiado, chegou.

    _ O que você está fazendo com o nosso dinheiro?

    _ Ué, estou contando.

    _ Hum...

    _ O que deu em você? Não confia em mim?

    _ Hilário, meu irmão, confio apenas nos meus dentes e, mesmo assim, eles me mordem a língua.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Honório e Hilário, os irmãos sovinas" foi publicada pelo Notibras no dia 12/02/2023. A pedido da redação do jornal, o texto sofreu leve alteração para que se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/honorio-e-hilario-os-irmaos-sovinas-do-recanto/

Nazinha, a minha primeira chefe no Banco do Brasil

   Trabalhei no Banco do Brasil por quase duas décadas, sendo que tomei posse em uma agência em Copacabana. Foi lá que tive o prazer de conhecer uma das pessoas mais divertidas, a Maria de Nazareth de Paula, ou simplesmente Nazinha. 

    Todos que trabalhávamos com a Nazinha sentávamos em mesas justapostas, sendo que ela se ficava na cabeceira. Um enorme cinzeiro, cuidadosamente colocado à frente da minha chefe, recebia várias pontas de cigarro durante o expediente. Isso foi bem antes da lei que proibia fumar em ambientes fechados. E, se isso parece um absurdo hoje em dia, na época era extremamente natural. 

    A Nazinha era a nossa gerente de equipe, assim como também existiam outros que também faziam função similar em outros ambientes da agência. Além desses cargos de chefia, havia o de gerente geral, que era exercido pelo Vasco. Este, de vez em quando, se dirigia até a nossa sala e conversava com a minha chefe, que geralmente era consultada para resolver algum problema. 

  Ela, apesar de possuir uma posição hierárquica inferior, parecia conhecer mais sobre todo o funcionamento da agência. Assim, a Nazinha, quase sempre, atendia o Vasco com urbanidade, mas nem sempre. É que, de vez em quando, ela estava abarrotada de serviço e, então, falava: "Vasco, não me enche o saco agora!" Ele, invariavelmente, retornava cabisbaixo para sua sala.

    Essa situação me deixava de olhos arregalados e, certa vez, ousei questionar a minha chefe.

    _ Nazinha, por que você fala assim com o Vasco? Ele é o gerente geral! 

    _ Dudu, eu brigo apenas com quem eu gosto!

    _ Ah, então, você me ama!

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Nazinha, a minha primeira chefe no Banco do Brasil" foi publicada por Notibras no dia 11/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/nazinha-a-chefe-que-brigava-com-quem-amava/

sábado, 17 de setembro de 2022

Ambrósio, o Rambo brasileiro

    Dizem que essa história aconteceu durante um curso de sobrevivência ministrado em uma certa polícia civil brasileira. Pois bem, não sei se isso realmente aconteceu da forma que irei contar, mas imagino que a minha versão seja bem mais interessante que a do suposto acontecimento. Isto é, se isso tenha mesmo acontecido, o que não duvido nem um pingo, bem como também não acredito em outro tanto. 

    Seja como for, o professor se chamava Ambrósio da Silva Pinto, mas todos o conheciam como Stallone. Isso mesmo! Stallone!!! Tudo porque, desde que havia assistido ao filme "Rambo - Programado para matar", Ambrósio se identificou tanto com o tal herói, que fez de tudo para que todos o passassem a chamar de Stallone, sobrenome do astro Sylvester. De tanto insistir, conseguiu o seu intento. 

    Mas voltemos ao curso. Lá estava o Ambrósio, ou melhor, o Stallone, reiniciando a aula depois de um intervalo. Todos os alunos, uns 30, sentados ao redor. Tudo parecia bem, até que o professor observou uma aluna, a Roberta, com um copinho de café. Ríspido, Stallone logo a repreendeu.

    _ Pessoas morreram por isso, senhora Roberta! Pessoas morreram!!!

    A mulher não conseguiu captar por todo aquela bronca. Afinal, qual era o problema de se tomar um cafezinho enquanto prestava atenção à aula? No entanto, o professor, ainda não satisfeito com a situação, continuou.

    _ Turma, vamos esperar que a senhora Roberta acabe de tomar o café!

    Entretanto, ela não se deu por vencida e continuou a bebericar cada gole com gosto de vitória sobre o truculento professor. Stallone, esbaforindo de raiva, se sentiu afrontado por aquela quase garota magrela. Todos os alunos, olhos arregalados, torciam pelo desfecho daquela contenda, até que o Santana bocejou uma bocejada maior até do que a sua barriga tão proeminente. 

    _ Boceja de boca fechada, Santana! - Stallone repreendeu o soneca da turma.

    Tudo parecia resolvido, até porque a Roberta já havia terminado o seu café. Todavia, Stallone, não querendo ficar por baixo, insistiu.

    _ Já posso retomar a aula, senhora Roberta?

    _ Professor, não sei se já te falaram, mas o Vietcongue deu uma baita duma surra no Rambo.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Ambrósio, o Rambo brasileiro" foi publicado pelo Notibras no dia 13/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/professor-machao-cai-ao-ouvir-sobre-vietcongues/

sábado, 10 de setembro de 2022

O mundo lá fora

   A filha e o pai, apesar de morarem no mesmo apartamento, já não se viam há dias. Não que eles tivessem brigado, mas simplesmente os horários não eram compatíveis com encontros rotineiros. Ela, sempre ocupada com as coisas do trabalho, tentava resolver tudo pelo aparelho celular ou, no máximo, pelo computador, que parecia sempre ligado. O pai, no entanto, apesar de acordar bem cedo, demorava mais de hora na cama, talvez pensando nas coisas que não teve coragem de fazer até então.  

    Naquele domingo, entretanto, os dois se esbarraram na cozinha. O pai, com aquela mesma xícara de café na mão, olhou para os grandes olhos da filha. Aqueles cílios negros pareciam espantados com a fisionomia desgastada à sua frente. Ela levou um tempo para perceber que era aquele mesmo homem que, há poucas décadas, a levava nos ombros para a praia, logo ali. Trocaram um quase sorriso. 

    _ Quer? - o pai ofereceu a xícara.

   Os dois sentaram à mesa. Tomaram o café num silêncio quase soturno, se não fossem os raros tilintares das xícaras com os pires. Nenhuma palavra, enquanto o pai observava a ânsia da filha em digitar cada vez mais rápido no minúsculo teclado do aparelho celular. Ele chegou a pensar como é que ela conseguia fazer aquilo com tanta habilidade. Todavia, um estrondo, vindo lá debaixo da rua, os tirou do aparente transe. 

   Já na janela, pai e filha observavam o formigueiro de gente curiosa. Um acidente de carro, aparentemente sem vítimas. Vozes, vozes, vozes! Nada que pudesse ser realmente distinguível para os dois no parapeito lá em cima do edifício. Trocaram olhares, como há muito não faziam. Não precisaram balbuciar palavras. Abriram a porta do apartamento, pegaram o elevador e desceram. Passaram pela multidão, como se ela não existisse. De mãos dadas, rumaram para a praia, aquela mesma praia, que continuava ali perto, talvez saudosa daqueles dois. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O mundo lá fora" foi publicada pelo Notibras no dia 19/01/2023. Por solicitação da redação do jornal, o texto original foi alterado para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://blogdomeninodudu.blogspot.com/2022/09/o-mundo-la-fora.html
  • "O mundo lá fora" também foi publicado na Coletânea de Cronistas Contemporâneos 2023 pela editora Persona.
  • O conto "O mundo lá fora" faz parte da Antologia "Metamorfose: poesia e evolução", do Projeto Quatro Amigas (@quatroamigas), 2023.