Laerte Borges, goiano de Anápolis, bom com as palavras, foi tentar a sorte como jornalista em Brasília nos anos 1970. Não ficou desempregado por muito tempo, mas o salário era bem aquém do talento que carregava. Mesmo assim, disposto a seguir carreira, fincou os pés na redação, passando de foca até repórter de campo, sem contar o período que precisou preencher a vaga do Souza, linotipista, que, parece, esqueceu a carteira de trabalho e acabou preso por vadiagem.
Resolvida a pendenga, Souza retornou à labuta, enquanto Laerte ganhou asas. De tão bom que era, conseguiu desvendar mistérios que todos sabiam, mas ninguém tinha coragem de revelar, como o famoso caso de uma garotinha de cabelos dourados e sete anos que ganhou as páginas dos jornais do país. Seja como for, a censura imposta acabou livrando a cara do Laerte de cair nos porões e nunca mais voltar.
— Pega leve, Laerte!
— Se é pra fazer coluna social, tô fora, Tavares!
— Que fora o quê! Sei que a grana é curta, mas você precisa
dela pra pagar seus cigarros.
Tavares era o editor-chefe, bom sujeito, que
fazia o possível para proteger os seus. Entretanto, quando a corda se
aproximava demais do próprio pescoço, era cada um por si. Mas não pense que
fosse por deslealdade, era medo de acabar num pau de arara, que corria solto
naquele período.
Anos de chumbo, telefones grampeados, o melhor era ir a campo
para conseguir algum furo de reportagem. Laerte possuía alguns informantes,
inclusive infiltrados contra o sistema. Todavia, gostava de frequentar o boteco
do Bugre, bem ali na Asa Norte. Nem sempre conseguia algo para estampar as
páginas do jornal, mas não ligava. Se acaso não desse manchete, bastava
espremer para sair uma crônica, como aprendera com um colega de profissão, um
tal José Seabra, que acabaria perseguido pelo governo.
— Se conheço quem, major?
— José Seabra!
— José tem muito, posso me confundir.
— Seabra!
— Num tô alembrado, major.
Por sorte do Laerte, o major, envolvido com coisas
espúrias que vieram à tona, foi transferido para o Rio de Janeiro. Com isso,
acabou evitando ser mais uma das inúmeras vítimas do regime, além de salvar o
pescoço do Seabra, que foi ajudado por colegas de jornais diversos, mas
precisou assinar com codinomes.
Houve a anistia, depois a abertura, mas a perseguição seguiu firme, como se os acostumados com a repressão não quisessem afrouxar o nó. Tavares não resistiu a um enfarte e sucumbiu em 1993. Seabra, anistiado, alçou voos mais altos na companhia de outros jornalistas (Armando Cardoso, Wenceslau Araújo e Mathuzalém Júnior) com a criação do site de notícias Notibras em 1999. E outros nomes que, à medida em que se aposentavam, passavam a incorporar os quadros, como Misael Igreja, Bartô Granja, Marta Nobre, Sonja Tavares, Antônio Albuquerque e, mais recentemente, o caçulinha dos velhos, Cassiano Condé. É óbvio que não se pode esquecer dos mais jovens e talentosíssimos Daniel Marchi e a Cecília Baumann.
Quanto ao Laerte, continua frequentando o mesmo boteco. Quer
dizer, o Bugre faleceu há mais de 30 anos, mas o ponto continua lá, com novo
nome, novo dono, nova clientela. Como o velho jornalista gosta de dizer, na
falta d'água, sempre tem uma branquinha no boteco da esquina. O brinde,
invariavelmente, é o mesmo:
— Sem anistia!
- Nota de esclarecimento: A crônica "Sem anistia!" foi publicado por Notibras no dia 16/3/2025.
- https://www.notibras.com/site/velha-guarda-do-jornalismo-repudia-anistia-a-golpistas-com-brinde-em-boteco/
Magistral
ResponderExcluirMuito obrigado, Luzia!
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