quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Zé Dadá, o invencível

        O homem, da sacada da casa de dois andares, ali no Menino Deus, observava o neto, não mais de 10 anos, entretido com joguinhos no aparelho celular. Do nada, quase sem querer, começou a resmungar com seus botões, até que o moleque desviou os olhos da telinha e os manteve firmes aos do avô. Apesar de menino, sabia que daquela boca saíam histórias interessantes. Na verdade, quase sempre. Por isso, tratou logo de aprumar as orelhas para não perder uma palavra que fosse. 

    Zé Dadá era afamado em briga. Não perdia uma. Era murro daqui, chute dali, cabeçada acolá, sobrava rabo de arraia pra todo lado. Pobre adversário, se fosse esperto, caía logo para não apanhar mais. Um olho roxo, um dente quebrado, uma costela partida, tudo era troféu de guerra, mesmo que perdida. Afinal, com Zé Dadá, ninguém podia.

    De boca em boca, os feitos do brigão logo chegaram aos ouvidos de toda a Caxias, terra de Gonçalves Dias. Não demorou, até a polícia evitava cruzar o caminho do Zé Dadá. Isso porque o povo não respeita policial que toma tapa na cara.

      A despeito de tamanho temor, havia um rapazola franzino chamado Raimundo, que dizia não tremer que nem vara verde como tantos ali. Ele levantou o braço e, com a voz mais apagada do que a própria covardia, disse: "Se ninguém tem coragem de enfrentar o Zé Dadá, eu enfrento!" Pra quê? Isso foi cair justamente nos ouvidos do Zé Dadá, que logo quis saber quem era o tal atrevido.  

    A notícia correu toda a cidade, especialmente entre os alunos do Colégio Caxiense, onde o Raimundo penava para passar em matemática. Diante de tantas contas complicadas, chegou a desejar que a luta contra o brigão se desse o mais rápido possível. Antes a cabeça rachada que quebrar a cuca com tantos números. 

    A luta foi marcada. Dali a três dias, lá no Largo de Santa Luzia, que ficava atrás do Caxiense. Em vez de futebol, o lugar seria palco da batalha mais esperada desde que Lampião passou pelo município, fato este que jamais aconteceu. Entre lendas e verdades, o tempo voou, especialmente para o pequeno Raimundo, que já pensava em se escafeder pelo mato, tamanho seu arrependimento por sua irracional impulsividade. Por que diacho ele havia erguido o braço, quando ninguém mais esperava por nada além de um ato de contida covardia?

    O local estava abarrotado, saindo gente pelo ladrão. Até o padre, dizem, teria feito sua fezinha. Obviamente que apostara toda a oferenda do mês no Zé Dadá. Afinal, não dá para brincar com o dinheiro divino sem ter certeza do resultado. 

    De um lado, surgiu o grande Zé Dadá. Perto de 1,80 m, quase 80 kg de puro músculo. Já sem camisa, desfilou no círculo de entusiasmada plateia. Ficou ali por quase cinco minutos à espera do desafiante, que ainda pensava em fugir. No entanto, acabou sendo empurrado para o meio da arena. 

    Raimundo suava frio, apesar dos quase 40 graus. As mãos tremiam, enquanto os dedos tentavam desabotoar a camisa branquinha. Ele não queria sujá-la. Se chegasse em casa com a roupa encardida, teria que enfrentar a fúria de sua mãe. Tomou coragem, apanharia do Zé Dadá, mas manteria o couro livre do açoite certeiro da genitora.

    Apesar de franco favorito, Zé Dadá não estava acostumado a enfrentar um adversário tão atrevido. Como é que aquele magricela teve coragem de desafiá-lo? Seria ele um lutador experiente? Saberia dar golpes ainda desconhecidos pelo campeão dos campeões de Caxias? Ou seria apenas mais um pobre coitado morto de fome? Olha essas costelas finas que nem gravetos secos. Seja como for, tais dúvidas pairavam pela mente ligeira de Zé Dadá.

    O público gritava. Todos queriam ver o sangue jorrar longe. Os oponentes se estudavam, a cautela tomava cada atitude daqueles dois, até que, num gesto ligeiro como bote de louva-deus, Zé Dadá acertou em cheio a fuça do pobre Raimundo. Caiu de bunda! Pensou em revidar, mas a prudência falou mais alto. Zé Dadá partiu para cima com o intuito de dar cabo do adversário, mas logo surgiu a turma do deixa-disso, que apartou a contenda. Foi a deixa para que Raimundo abrisse uma brecha no meio da multidão e se evadisse do local. 

    O derrotado ficou três dias com o nariz inchado. Temendo que sua mãe descobrisse a surra que havia levado, o rapaz passou todo esse tempo evitando encará-la. Não queria apanhar outra vez. Conseguiu, não se sabe como. Talvez a mãe já soubesse de tudo e, piedosa como ela só, não quis causar mais sofrimento ao filho. Nenhuma palavra sobre o acontecido. 

    Após quase uma semana da surra em praça pública, Raimundo desejou ser amigo do seu algoz. Encontrou o grandalhão, que repousava debaixo de uma mangueira. Trocaram poucas palavras, o suficiente para que as coisas se acertassem. Satisfeito com a audácia do adversário, o campeão aceitou quase que de pronto tal proposta. Tornaram-se amigos ou, ao menos, mantiveram uma diplomática relação de respeito mútuo pelos anos seguintes. 

    O avô, assim que terminou a história, percebeu que o neto, totalmente encantado, o encarava. Os dois sorriram, enquanto o aparelho celular parecia ter sido esquecido no canto. 

    _ Vô, que coincidência!

    _ O quê?

    _ O Raimundo tem o mesmo nome do senhor.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Zé Dadá, o invencível" foi publicado pelo Notibras no dia 30/8/2023.
  • https://www.notibras.com/site/raimundo-atrevido-deixa-briga-com-nariz-quebrado/
  • O conto "Zé Dadá, o invencível" faz parte da 43ª edição da Revista LiteraLivre.
  • https://drive.google.com/file/d/1Pjsw0lKy356144o1kqxLX8jVFItxuQNo/view
  • https://www.calameo.com/read/005409554061acc809479
  • O conto "Zé Dadá, o invencível" faz parte do livro "EDUARDO MARTÍNEZ E OUTROS AUTORES Projeto Literatura na escola PROJETO LITARATURA NA ESCOLA 1".
  • https://www.calameo.com/books/006803069f3f5db711eee

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Quatro meninos numa fazenda

    

    O Chevette vermelho, quase saído de fábrica, despejou aquelas quatro crianças, nenhuma acima dos 10 anos, nas vastas terras da fazenda Recanto das Amendoeiras, no município de Aparecida do Taboado, Mato Grosso do Sul. Elas mal ouviram a promessa do tio sobre ir buscá-las antes do final do dia. Correram desembestadas, tamanha a ânsia de colocarem os planos maquinados na noite anterior. 

    Nenhum adulto à vista, Pedro, os gêmeos Rafael e Rogério e o miúdo Serginho, neto do falecido proprietário daquela vastidão, correram para o riacho mais próximo. Só de cueca, a meninada mergulhava e voltava à superfície na velocidade da própria imaginação. Nenhum contou o tempo, mesmo porque ninguém se lembrava das cobranças da escola. Estavam de férias.

    Sol a pino, Pedro foi o primeiro a sentir os clamores do estômago. Saiu da água e foi em direção à mochila, que havia deixado sob a copa de uma aroeira. Achou a mochila, mas não o pacote de biscoito que pensava que estava lá. Não gastou tutano para tentar adivinhar o que teria acontecido. Talvez um macaco mais atrevido tenha surrupiado tudo, sem deixar migalhas pro faminto. 

    O garoto tratou logo de voltar para o riacho, onde encontrou os primos na maior algazarra. Energia é o que parecia não faltar àquela trupe. Embrenhou-se naquela brincadeira até que, todos exaustos, tombaram às margens, ao mesmo tempo em que a tarde já começava a se despedir, dando boas vindas à Lua. 

    Esfomeados que estavam, foram procurar algo para rechear os buchos. Rumaram para o galinheiro, onde, por sorte, encontraram alguns ovos. Cada um catou o que cabia em suas pequenas mãos. Em seguida, foram em direção à antiga casa. No entanto, por azar, portas e janelas estavam fechadas. 

    Os guris, sem ideias melhores nas cacholas, quebraram os ovos e os devoraram crus. Não que gostassem daquilo, mas a fome era tamanha, que não tiveram escolha. Aquilo acabou por se tornar algo divertido, apesar das caretas. Encararam a gosma como uma verdadeira iguaria, a única que dispunham. 

    Logo veio a noite, nada do tio voltar. Será que ele havia se esquecido dos sobrinhos? Pedro, talvez o mais preocupado, começou a pensar em algo para se protegerem de possíveis animais, especialmente de onças, tão comuns naquela região. Foi aí que percebeu uma luz há quase um quilômetro. Vinha da casa do velho João, caseiro da fazenda. 

    Decidido a buscar abrigo, Pedro convenceu os primos a rumarem para a residência do homem. Os quatro juntaram-se como se fossem uma amálgama humana e começaram a caminhar. De vez em quando, um chirriá de uma coruja os fazia ainda mais grudados, enquanto apressevam os passos.

    Os meninos, finalmente, chegaram à casa do velho João. Pedro, sempre à frente, bateu palmas. Nada. Chamou pelo velho. Nada. Esmurrou a porta. Nada. O menino foi acompanhado pelos companheiros e, assim, insistiram em palmas, ao mesmo tempo em que começaram a gritar. 

  Depois de quase desistirem, eis que a porta de madeira começou a ranger. A garotada, olhos arregalados, temeram pelo pior. Entretando, para alívio dos garotos, surgiu a figura do João, mais barbado do que de costume. Mas era ele, um rosto conhecido. Mesmo assim, Pedro questionou o velho sobre a demora. 

    _ É que ele vive batendo à minha porta.

    _ Ele quem? - quis saber Pedro.

    _ O seu Sérgio.

    _ Ué, mas meu avô já morreu há quase dois anos - disse o pequeno Serginho.

    _ Pois é, sei disso. Mas ele ainda perambula por aqui. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Quatro meninos numa fazenda" foi publicado pelo Notibras no dia 23/08/2023. Por solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto para incluir o Distrito Federal na história.
  • https://www.notibras.com/site/esquecidos-por-tio-meninos-ouvem-coisas-do-alem/


O Rebento

    Hoje pela manhã, já na saída de mais uma das inúmeras consultas da minha amada, a Dona Irene, ela se vira para mim e diz que queria tomar café. Descemos o elevador com aquele sorriso nos lábios, enquanto o silêncio toma conta do local. É que a minha mulher, após conversar com a sua obstreta, decidiu que o parto não passaria do dia dois de setembro.

    Já na calçada, fomos andando até a esquina e entramos na cafeteria de costume aqui em Porto Alegre. Pedi o café com leite da minha esposa, enquanto fiquei, como sempre, no café preto sem açúcar, A atendente ainda me pergunta se vou querer adoçante, oportunidade que lhe respondo com a mesma frase que guardo na ponta da língua: "De doce já basta a vida!" Ela sorri.

    Enquanto o pedido não vem, a Dona Irene aperta minha mão, como querendo dizer que, agora, temos uma data para a chegada da nossa Maria Luiza, que não para de chutar de dentro da barriga. Talvez teremos uma nova Marta. Quem sabe? 

    Impossível não me lembrar das minhas outras duas, hoje já crescidas. A mais velha já é advogada, enquanto a mais nova, que logo será a do meio, faz Biotecnologia na USP. A despeito de não ser pai de primeira viagem, a sensação é única. A Dona Irene diz que sou mais babão que o Chengulo, o meu buldogue. 

    O pedido chega. A futura mamãe degusta a iguaria que ela tanto adora. Levo um tempo para tocar no meu café, talvez ainda inebriado por saber a data que a nossa menina vai nascer. Aliás, será a primeira gaúcha da família em mais de um século, pois o último foi meu avô materno, que era da cidade de Rio Grande, mas que, logo aos seis anos, foi morar no Rio de Janeiro. 

    Assim que voltamos para a calçada, o meu telefone toca. Era o editor do Notibras, o José Seabra, me lembrando que ainda não havia lhe enviado a crônica de amanhã. Isso foi a deixa para me atentar para uma coisa, que até então passara despercebida. É que licença-paternidade dá direito a tudo, ou melhor, a quase tudo, bem como não me livra da obrigação de cronista, que é escrever diariamente. Obrigado, caçulinha! Você me ajudou nessa. Espero que o meu chefe goste.
  • Nota de esclarecimento: A crônica "O Rebento" foi publicada pelo Notibras no dia 24/08/2023. Por uma solicitação da redação do jornal, foi feita pequena alteração no texto.
  • https://www.notibras.com/site/chegada-da-herdeira-vira-tema-para-cronica-diaria/

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Amor de verão

    Lavínia e Otacílio haviam se visto pela primeira vez há pouco mais de um mês. O rapaz, apesar de ter se encantado pela moça logo de cara, não parecia ter sido correspondido. Nem por isso, ele deixara de tentar a sorte, pois não era do tipo que desistia facilmente, ainda mais diante de uma paixão, mesmo que de verão.  

    A garota estava enamorada por outro, que lhe parecia muito mais atraente. Para ser sincero, creio que até o próprio Otacílio concordaria, já que o Dimas era o que se poderia ser chamado de pedaço de mau caminho. Seja como for, lá estavam a Lavínia e o bonitão aos beijos cada vez mais atrevidos no último banco do ônibus a caminho de Cabo Frio, onde passariam o feriado prolongado de carnaval. 

    Assim que o coletivo chegou à rodoviária da famosa cidade da Região dos Lagos, o casal, eufórico, quis porque quis descer logo para continuar o namoro, que prometia, em local mais apropriado, longe de olhares curiosos. E foi o que os dois fizeram. Pegaram um táxi ali mesmo e rumaram para a casa alugada na praia do Peró. Amaram-se como dois jovens apaixonados!

   A noite foi tomando conta do ambiente. Lavínia vestiu-se pela primeira vez desde que chegara àquele local. Otacílio, com seus músculos salientes, a tomou no colo e a beijou pela enésima vez. Teve ímpeto de despi-la novamente, mas o som do animado bloco de carnaval vindo lá de fora o fez desistir. Colocou sua fantasia de pirata e puxou a amada para rua, onde pretendiam pular durante as próximas horas.

    Voltaram para a alcova quando o astro rei anunciava os primeiros raios. Ainda tiveram ânimo para se amarem uma vez antes de adormecerem abraçadinhos sobre o lençol, cada vez mais testemunha daquele amor. A despeito dos milhares de pessoas que desfrutavam a linda praia bem em frente, naquele quarto só era possível escutar a respiração exausta de Lavínia e Dimas. 

    Despertaram com tanta fome, que devoraram aquele macarrão com salsicha como se fosse a melhor das iguarias. Os dois se beijaram com a boca borrada de molho de tomate e, se dependesse dele, fariam amor ali mesmo na cozinha. Lavínia, entretanto, puxou o namorado para o conforto do sofá, onde os dois se entregaram àquela paixão sem limites. Ou quase.

    O dia foi virando noite, a noite se transformou em novo amanhecer, até que chegaram os derradeiros momentos da festa mais popular do Brasil. O casal, não querendo deixar aqueles momentos se esvaírem, continuava firme no baile bem diante da praia do Peró. Inúmeros jovens compartilhavam daquele desejo. 

    A festa insistia em prosseguir, quando a Lavínia, apertada para fazer xixi por conta das inúmeras cervejas, foi até o banheiro. Aliviou-se como uma deusa sentada no trono. Toda sorridente, quis voltar para os fortes braços do amado. No entanto, para a sua surpresa e desgosto, eis que lá estava o Dimas aos beijos e abraços com outra. 

    Sem fazer cena, a garota foi chorar suas lágrimas diante do mar. Ela não conseguia acreditar que o seu namorado, o amor da sua vida até então, fosse capaz de traí-la. Chorou por quase uma hora sentada naquela areia fria, até que, mexendo no seu aparelho celular, encontrou o número do Otacílio. Lavínia mal se lembrava do rosto do rapaz. Nem por isso conseguiu evitar o impulso de telefonar para ele, que atendeu quase ao primeiro toque. 

    _ Lavínia?

    _ Sim.

    _ Tudo bem? 

    _ Não.

    _ O que houve? Onde você está?

    _ Estou em Cabo Frio, olhando a praia. Mas é quase como se o mar não fosse o mesmo sem você.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Amor de verão" foi publicada pelo Notibras no dia 21/8/2023.
  • https://www.notibras.com/site/lavinia-traida-busca-um-novo-amor-no-mar/


 

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

O mistério dos ovos desaparecidos

    Um mistério ronda a delegacia onde o Santana é lotado. No entanto, aparentemente, não se trata de um crime cometido por um bandido qualquer, como bem disse o investigador do caso, inspetor Rogério Lima: "Estamos no encalço do mais ardiloso criminoso da história desta circunscricional". 

    Vamos aos fatos sobre esse terrível delito. Trata-se de um furto de uma dúzia de ovos do tipo extra grande, que havia sido depositado inocentemente no aconchego do interior de uma geladeira. No entanto, tal geladeira não é uma qualquer, como poderia supor, erroneamente, o (a) nobre leitor (a). É que ela se encontra na seção de investigações de crimes gravíssimos: homicídios e latrocínios. Isso tudo leva a crer que o salafrário gosta de provocar a onça com vara curta. 
    
    Pois bem, mas esse ardiloso bandido possui um modus operandi peculiar, pois, ao que tudo indica, também deseja instigar os ânimos dos policiais, já que fez questão de deixar a caixa de ovos vazia pendurada na mesma sala. Esse ardil, no entanto, talvez seja o prenúncio do seu fim, como bem afirmou o inspetor Lima: "O nosso alvo possui um ego maior que melancia. Vamos trabalhar para ver até onde ele consegue escapar. Vamos dar corda pro pilantra. Mais cedo ou mais tarde, ele vai acabar se enforcando".

    Entre ovos, melancias e cordas, alguns suspeitos já foram intimados. Na verdade, os alvos são policiais da própria delegacia, entre os quais se encontra o Santana, notório apreciador do alimento produzido pelo esforço descomunal das galinhas. Entretanto, como o capacitado Lima lembrou, todos são inocentes até que se prove o contrário. Ou não! Seja como for, o criminoso já ganhou a sugestiva alcunha de Teiú, uma espécie de lagarto famosa por ser apreciadora de ovos.

    Apesar de não fazer parte do quadro de policiais da delegacia, a senhora Sissi, que trabalha no local como auxiliar de limpeza, também foi intimada. Não na condição de suspeita, haja vista seu longo e ilibado histórico. Ela é testemunha crucial.

  Parece que o depoimento de Sissi trouxe grande aporte de revelações. É que, segundo a competentíssima profissional, houve movimentação além do normal de um dos suspeitos, justamente o Santana. Segundo consta nos autos, ele teria tentado apagar suas digitais da geladeira. No entanto, tal feito se tornou sem efeito, haja vista a perícia criminal já ter passado pelo local e colhido cada uma das marcas deixadas pelo Teiú. 

     O inspetor Lima, sempre atento aos menores detalhes, lembrou que cacoetes não podem ser usados como indícios de autoria. Entretanto, ele está de olho na situação, mesmo porque Santana configura entre os mais prováveis suspeitos, ainda mais por conta de inquietantes atitudes. E, para surpresa do próprio Lima, após alguns dias, eis que Sissi pediu para conversar novamente com ele.

    A despeito de estar ocupado com outros casos, o investigador prontamente atendeu a senhora Sissi. As revelações, nesse dia, foram quase confissão de autoria. Não por parte da nobre profissional, mas pela de um conhecido policial, que a teria coagido. Lima, já querendo limar o suposto autor, teve pensamentos gritantes: "Coagir testemunha no curso das investigações é crime gravíssimo!"

      De tão assustada com a situação, foi necessário um copo d'água para acalmar o coração de Sissi, que palpitava em ritmo de Fórmula 1. Todavia, sentindo-se acolhida pelo investigador, ela se tranquilizou e revelou que o Santana a havia procurado logo após o primeiro depoimento. De pistola em punho, o suspeito, com a desculpa de tentar retirar um caroço de feijão entre os dentes, teria dito: "Dona Sissi, não sei se a senhora sabe, mas em boca fechada não entra mosquito". 

       Passadas algumas semanas, parece que o caso esfriou. Ninguém mais fala sobre o assunto, mesmo porque todos cansaram de aguardar pelo laudo pericial. Todavia, parece que ele nunca chegará. Isso porque, dizem, o Santana teria, furtivamente, entrado na sala do perito e surrupiado o laudo, que, fatalmente, o incriminaria. 

        O clima na delegacia continua o mesmo, apesar da geladeira, agora, ostentar um cadeado. Sissi, mesmo se sentindo coagida pelos olhares lançados pelo Santana, ainda prepara um delicioso café, bem como distribui sorrisos por onde anda. Ela sabe que nem todos os crimes são desvendados, mas ainda acredita na competência da polícia.

        Por sua vez, o inspetor Lima, verdadeiro perdigueiro, não desistiu de desvendar esse mistério, que empesteou com fedor de ovo podre todo o ambiente. Ele providenciou uma armadilha para pegar o lagartão astuto: colocou uma caixa de ovos pendurada numa parede bem próxima ao suspeito mor, que parece andar desconfiado com tamanha oferta. Ademais, foram colocadas câmeras estrategicamente posicionadas na direção da armadilha para que, a qualquer movimento do comedor de ovos, o investigador possa, finalmente, dar o bote. 
  • Nota de esclarecimento: O conto "O mistério dos ovos desaparecidos" foi publicada pelo Notibras no dia 10/8/2023.
  • https://www.notibras.com/site/sumico-de-ovos-em-dp-deixa-policiais-intrigados/

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Minha vizinha da frente

 

                Hoje acordei com vontade de escrever, mas me faltam memórias para tal. Saudade de um tempo em que corria por este bairro de onde saí tão jovem. Tinha lá meus 18 quando, por sorte, passei no concurso do Banco do Brasil. Há tanto tempo, que todos os meus amigos me invejaram, tamanho que era o salário naquela época. O pessoal na rua comentava: "Você viu? Pois é, o Quinzinho, filho da dona Eulália, passou pro Banco do Brasil."

                    Como consequência desse sortilégio, fui tomar posse em uma cidadezinha lá do interior de Minas Gerais, tão distante desta em que agora me encontro. Fui, mas com a promessa de retornar em poucos anos. Tal jura, no entanto, só fui cumprida há pouco mais de dois meses, quando aqui estou com meus quase 70.

                  Durante o longo período de bancário, trabalhei com afinco e, aos poucos, fui galgando cargos até que, quase 20 anos após, cheguei ao invejado posto de gerente geral da agência. Todos me conheciam como senhor Oliveira. Todos! Desde o mais graúdo investidor até os que sobreviviam com meros vinténs. 

                    De tão afamado me tornei, o próprio presidente do Banco do Brasil veio me pedir para não me aposentar quando completei meu tempo de serviço. Comovido com tamanha honraria, fiquei por mais alguns anos. Na verdade, agora que estou em tal situação, não preciso mais viver sob a fumaça da hipocrisia. Fiquei por conta da sensação de poder, além, é óbvio, pelas inúmeras regalias, sem contar o salário muito maior do que eu poderia gastar. 

                    Os anos seguintes foram talvez os mais incríveis da minha vida. E, se não foram, são os que ainda pululam minha mente. Jantares regados a iguarias, noites em quartos de hotéis cinco estrelas, sempre muito bem acompanhado por mulheres lindas, mesmo que recompensadas por notas graúdas, que não me fizeram falta. 

                    Aos 66, conheci Sandra, que tinha lá seus 38. Linda, linda, linda! Não sei o que ela viu em mim, já que era de uma família mais abastada do que todo o dinheiro que eu poderia ganhar trabalhando no mais alto posto do Banco do Brasil por mais de um século. Seja como for, nos envolvemos e, de tão apaixonados, resolvemos comemorar nosso primeiro ano juntos. 

                    Viajamos para Paris, onde ficamos hospedados no Ritz. Passeamos pela famosa cidade, fomos a museus e todos os passeios possíveis durante oito dias, até que Sandra pôs na cabeça que queria realizar um antigo sonho: sobrevoar Paris num balão. Apesar do flagrante pavor, pois não nasci com asas, decidi acompanhar a minha amada.  

                   Foi numa quarta-feira quando tudo aconteceu. Contratamos um baloeiro, que nos orientou sobre o voo. Tudo parecia maravilhoso, até para mim. Comecei a me soltar quando, de repente, aquela enorme bola cheia de gás começou a rodopiar pelo céu da capital francesa e, desesperados com as labaredas cada vez mais próximas, pulamos quando estávamos há pouco mais de 20, 30 metros do chão. 

                    O baloeiro, que até hoje não sei o nome, e minha Sandra tiveram morte instantânea. Eu, por sorte ou azar, sobrevivi, apesar de múltiplas fraturas, incluindo três vértebras cervicais, que me deixaram paralisado do pescoço para baixo. 

                    Depois de quase dois anos de fisioterapia, retornei para esta antiga casa, herança da minha falecida mãe, dona Eulália. Passo o dia inteiro deitado numa cama cheia de controles, que consigo acionar com um canudo preso à minha boca. Meu maior divertimento, o único na verdade, é observar a minha linda vizinha, que costuma sair de casa e se sentar numa dessas cadeiras de praia na calçada.

                    Minha vizinha, de vez em quando, cumprimenta alguém que passa, com um sorriso, que me chega aos olhos como o mais lindo que conheci. Mas ela parece preferir se entreter com seu aparelho celular. Não sei se ela já me viu ou se sabe da minha existência. Todavia, ainda me resta uma última esperança, provavelmente a única que me faz querer viver: descobrir o seu nome.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Minha vizinha da frente" foi publicada pelo Notibras no dia 03/08/2023.
  • https://www.notibras.com/site/minha-vizinha-da-frente-qual-o-seu-nome/
  • O conto "Minha Vizinha da frente" integrou a 11ª edição da Revista Contos de Samsara.
  • file:///C:/Users/Adm/Downloads/Revista%2520Contos%2520de%2520Samsara%2520ed11.docx%20(2).pdf