Acordou, olhou para o quarto vazio, o mesmo quarto onde dividira com Beatriz por mais de meio século. Brigas, logicamente, tiveram, mas não que o velho se recordasse exatamente de alguma. Talvez, uma em que a falecida tenha insistido tanto para que os dois fossem ao batizado do primeiro bisneto. Justamente no mesmo dia em que o Vasco decidia uma final de campeonato.
Foram e, durante a missa, o velho se mostrou extremamente ansioso para que tudo aquilo acabasse rapidamente para, então, poder voltar para casa. Demorou muito mais que o previsto e, ao retornarem, percebeu vários torcedores com a camisa do Gigante da Colina festejando. Frustração por não ter visto o jogo, mas um alívio pela conquista de mais um título.
O velho arrastou seu corpo até a cozinha, onde ainda dava para sentir o suave perfume de Beatriz. Respirou aquele aroma e, apesar da lágrima que escorreu pelo canto do olho, pegou o pote de café, ainda da mesma marca que a esposa apreciava. Ele nem sabia se aquela era a melhor, já que quase nunca havia experimentado outra. Na verdade, não se recordava ou, possivelmente, não queria trair a memória da sua mulher.
Frustrado, o velho constatou que o café havia praticamente desaparecido do pote. Nem mesmo uma colherzinha, o que o obrigava a caminhar até o mercado da esquina para comprar mais. Com a roupa amarrotada, os cabelos desgrenhados, tratou apenas de calçar o chinelo e pegar o dinheiro sobre a mesinha de canto.
Já na rua, o velho praguejava silenciosamente, enquanto inúmeros transeuntes passavam quase esbarrando naquele corpo senil. Entrou e saiu do mercado sem se dar conta nem mesmo do preço, já que isso não importava, pois sempre levava a mesma marca. Pensou até em comprar dois pacotes, mas isso o faria cativo no apartamento pelo dobro do tempo. Levou apenas um, como sempre tinha feito por tantos e tantos anos.
A sacola de plástico balançava conforme os passos capengas das frágeis pernas. O velho observou um ônibus vindo na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Pensou em se jogar na frente e acabar com tudo aquilo, mas não teve coragem. Observou um mendigo com a mão esticada e, talvez por impulso, despejou algumas pobres moedas. E, antes que pudesse se livrar daquela situação, ouviu a voz do maltrapilho: "Peço a Deus que estique o tempo do senhor!"
- Nota de esclarecimento: A crônica "O velho, o café e o mendigo" foi publicada pelo Notibras no dia 11/06/2023. Por uma solicitação do jornal, foi feita uma pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal.
- https://www.notibras.com/site/mendigo-com-a-mao-de-deus-da-vida-longa-a-velho/