domingo, 28 de agosto de 2022

O velho, o café e o mendigo

    O velho, cheio de dores, levantou mais cedo do que de costume. Não que não preferisse continuar na cama entregue aos sonhos, já que os pesadelos que o acompanham nos últimos tempos eram demais até mesmo para alguém que já passava dos 80. No entanto, a insistente dor nas costas não o permitia se manter deitado por mais que algumas horas.

    Acordou, olhou para o quarto vazio, o mesmo quarto onde dividira com Beatriz por mais de meio século. Brigas, logicamente, tiveram, mas não que o velho se recordasse exatamente de alguma. Talvez, uma em que a falecida tenha insistido tanto para que os dois fossem ao batizado do primeiro bisneto. Justamente no mesmo dia em que o Vasco decidia uma final de campeonato. 

    Foram e, durante a missa, o velho se mostrou extremamente ansioso para que tudo aquilo acabasse rapidamente para, então, poder voltar para casa. Demorou muito mais que o previsto e, ao retornarem, percebeu vários torcedores com a camisa do Gigante da Colina festejando. Frustração por não ter visto o jogo, mas um alívio pela conquista de mais um título.

    O velho arrastou seu corpo até a cozinha, onde ainda dava para sentir o suave perfume de Beatriz. Respirou aquele aroma e, apesar da lágrima que escorreu pelo canto do olho, pegou o pote de café, ainda da mesma marca que a esposa apreciava. Ele nem sabia se aquela era a melhor, já que quase nunca havia experimentado outra. Na verdade, não se recordava ou, possivelmente, não queria trair a memória da sua mulher. 

    Frustrado, o velho constatou que o café havia praticamente desaparecido do pote. Nem mesmo uma colherzinha, o que o obrigava a caminhar até o mercado da esquina para comprar mais. Com a roupa amarrotada, os cabelos desgrenhados, tratou apenas de calçar o chinelo e pegar o dinheiro sobre a mesinha de canto. 

  Já na rua, o velho praguejava silenciosamente, enquanto inúmeros transeuntes passavam quase esbarrando naquele corpo senil. Entrou e saiu do mercado sem se dar conta nem mesmo do preço, já que isso não importava, pois sempre levava a mesma marca. Pensou até em comprar dois pacotes, mas isso o faria cativo no apartamento pelo dobro do tempo. Levou apenas um, como sempre tinha feito por tantos e tantos anos.

    A sacola de plástico balançava conforme os passos capengas das frágeis pernas. O velho observou um ônibus vindo na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Pensou em se jogar na frente e acabar com tudo aquilo, mas não teve coragem. Observou um mendigo com a mão esticada e, talvez por impulso, despejou algumas pobres moedas. E, antes que pudesse se livrar daquela situação, ouviu a voz do maltrapilho: "Peço a Deus que estique o tempo do senhor!"

  • Nota de esclarecimento: A crônica "O velho, o café e o mendigo" foi publicada pelo Notibras no dia 11/06/2023. Por uma solicitação do jornal, foi feita uma pequena alteração no texto para que a história se passasse no Distrito Federal.
  • https://www.notibras.com/site/mendigo-com-a-mao-de-deus-da-vida-longa-a-velho/


quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Ibrahim Sued e a minha juventude

    Aqueles que me conhecem sabem que eu trabalhei no Banco do Brasil durante 17 anos, sendo que tomei posse numa antiga agência chamada Figueiredo Magalhães, em Copacabana. Pois foi justamente nessa minha primeira lotação que passei a atender o Ibrahim Sued, que foi praticamente o inventor da antes badalada coluna social. 

    O cara era grandão, passadas largas, sorriso fácil. Os cabelos azulados, os olhos maiores que a própria face. Ele, como de costume, sempre ia ao banco após a agência estar fechada. Afinal,  alguns clientes possuem certas regalias. E, muitas vezes, eu o recebia, pois, nesse tempo, era um dos últimos funcionários a ir embora. 

    De tanto atender o Ibrahim, acabou havendo uma intimidade pouco além da normalmente existente entre clientes que se dirigem a um banco e os funcionários. Tanto é que, não raro, ele me contava sobre algumas perspectivas da própria existência. De todas essas conversas, uma em especial me marcou.

    _ Dudu, a velhice é uma merda!

    _ Que isso! Você está muito bem!

    _ Que nada! Tá tudo caído por aqui! 

    Eu apenas o observava, talvez sorrindo, enquanto ele prosseguia.

    _ Dudu, você sabe que eu tenho muita grana, né?

    _ É, sei sim. 

    _ Pois é, Dudu, se eu pudesse, trocaria toda essa grana pela sua juventude.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Ibrahim Sued e a minha juventude" foi publicada por Notibras no dia 30/7/2023.
  • https://www.notibras.com/site/ibrahim-teve-quase-tudo-menos-vida-de-mathuzalem/

    

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

O ex-marido, o amante e os biscoitos

 

  Cardoso, apesar de separado há mais de dois anos de Laura, havia se comprometido a pagar o seu aluguel. Não por bondade, diga-se de passagem, mas por culpa. Sim, isso mesmo! Culpa! Pura culpa! É que, enquanto casados, ela o pegou a pleno pulmões sobre Luana, a vizinha de não mais que duas dezenas de primaveras. 

    Por coincidência ou não, Laura arrumou um sala e quarto bem em frente ao armarinho de Cardoso. De tão em frente, que bastava um pequeno levantar de olhos do homem para avistar o lar da sua ex-esposa, que, de vez em quando, cismava em deixar as cortinas escancaradas. Talvez por economia, já que todos no bairro reclamavam do aviltante preço da energia elétrica. 

    Certo dia, lá estava o Cardoso recostado na parede externa da loja, coçando sua barriga saliente de um típico quarentão. De vez em quando, passava uma ou outra anca que despertava seu sorriso de cobiça, mas, talvez tomado pela mesma culpa que o obrigava a bancar o aluguel de Laura, ele tentava se recompor e, sem se preocupar com qualquer discrição, voltava o olhar para a janela do outro lado da rua. E foi justamente nesse instante, que ele deu de cara com Laura sendo sufocada por um beijo voluptuoso do Gilmar, que nada mais era do que o rapazola que trabalhava na sorveteria ao lado. 

    Um grito de horror escapuliu das profundezas da garganta de Cardoso, enquanto ele tentava empurrar o próprio corpo até o outro lado da rua. Algumas pessoas que passavam se assustaram, enquanto outras direcionaram seus olhos curiosos para a indiscrição dos pombinhos, que ainda se mostravam alheios à fúria do comerciante. 

    O dedo insistente do Cardoso não parava de apertar o botão do interfone do apartamento 101. Isso, aliás, foi o que fez com que aquelas duas línguas dessem trégua naquela batalha sem fim e, então, Laura foi ver quem era. Não fazia ideia e, toda saltitante, foi atender o chamado desesperado.

    _ Alô!?

    _ Laura, abra essa porcaria agora!

    _ Cardoso, o que você quer?

    _ Abra logo essa droga! 

    _ Olha que vou chamar a polícia!

    No entanto, antes que essa conversa pudesse dar frutos adocicados, Cardoso jogou o corpanzil sobre a porta, que não resistiu. Esbaforido, ele subiu as escadas, enquanto, lá no apartamento, o franzino Gilmar abotoava as calças, ao mesmo tempo em que avaliava se valia a pena tentar uma fuga nada honrosa pela janela. Todavia, logo foi convencido pelas insistentes batidas na porta do apartamento e, dessa forma, preferiu o voo de não mais que três metros à surra que, certamente, o aguardava. 

   Laura gritava sem saber se por causa das violentas batidas na sua porta ou, talvez, pela fuga cinematográfica do Gilmar. Aliás, uma fuga onde ele era não apenas o astro do filme, mas também o próprio dublê. Ela correu até a janela, quando viu que o amado havia sido algemado por Santana, policial da delegacia do bairro. O agente da lei, sem estar a par da situação, supôs que o amante era, na verdade, um gatuno. O policial conduziu bravamente o suposto larápio para a delegacia, onde o apresentou, quase de imediato, ao delegado.

    Sentado à ampla mesa na sala quase gélida por conta do ar condicionado localizado na parede ao lado, o delegado pegou um dos biscoitos amanteigados que havia recebido como agrado do dono da padaria da esquina. Entretanto, antes que pudesse levá-lo à boca, ouviu uma gritaria sem fim vinda do balcão da delegacia. Santana e o delegado foram ver o motivo de tanto escândalo, quando constataram que se tratava do ex-casal Laura e Cardoso, que já era bem conhecido daquele ambiente tão acostumado a registrar crimes. 

    Enquanto a autoridade policial tentava entender o porquê do escândalo, Gilmar, que havia ficado na sala do delegado, apesar de algemado, se levantou e foi até a caixa de biscoitos. Debruçou-se sobre ela e começou a degustar aquela iguaria. Comeu todos, já que precisava recompor as energias gastas nos longos e apaixonados beijos e, principalmente, pela fuga digna do Zorro. E, assim que ouviu os sapatos estalando no chão frio do corredor, recompôs-se, cinicamente, na cadeira, como se nada tivesse acontecido.

    Era o Santana, que havia sido mandado soltar o suposto gatuno, que, agora, todos sabiam, era nada mais do que o novo amor da Laura. O policial, sem dizer nem uma palavra sequer, retirou as algemas dos pulsos do quase adolescente Gilmar. Em seguida, ordenou:

    _ Pode ir embora!

    O rapaz nem se deu ao trabalho de perguntar alguma coisa. Tratou logo de sair daquele ambiente e, ao passar pela entrada da delegacia, quase foi agredido por Cardoso, que teve que ser contido por outros policiais. Em seguida, o delegado voltou para sua sala, onde flagrou o Santana, com as pontas dos dedos embebidas em saliva, tentando buscar as migalhas que ainda restavam na caixa de biscoitos amanteigados. 

    _ Santana, que droga é essa? Além de prender o cara errado, você ainda acabou com todos meus biscoitos!

  • Nota de esclarecimento: O conto "O ex-marido, o amante e os biscoitos" foi publicado pelo Notibras no dia 15/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/o-ex-marido-o-amante-e-os-biscoitos-do-delegado/

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Ninica e minha vida corrida

 

    Houve um tempo em que a minha vida era tanta correria, que a última coisa que eu conseguia desfrutar era um dia de descanso. Nessa época, eu fazia medicina veterinária na Rural (UFRRJ) durante o dia inteiro, de onde corria direto pro Banco do Brasil. Saía do trabalho quando a madrugada já não era nenhuma menina e, então, ia pra casa, onde mal conseguia tirar uma ou duas horas de sono, pois precisava correr de volta pra assistir às aulas. 

    Quando chegava sexta-feira, já sabia que seria o último dia de estudo e trabalho, mesmo que tudo fosse se repetir na semana seguinte. Isso, aliás, me trazia uma sensação de bem-estar, como se meu corpo já estivesse programado para desligar disso tudo para, assim que chegasse ao lar, doce lar, pudesse tomar um banho e me esparramar na cama, sem hora pra acordar. Que sensação maravilhosa era aquela!

    Pois bem, lá estava eu sonhando os sonhos mais lindos, quando, depois de um tempo, percebo alguém sobre meu peito, que não parava de futucar meu nariz. Ainda cismo em tentar não dar atenção para aquilo, já que os meus sonhos pareciam muito mais aconchegantes. Todavia, aqueles insistentes dedos miúdos não me davam trégua. 

    Finalmente abro os olhos e, então, a primeira coisa que vejo é o sorriso de poucos dentes da minha filha, a Ninica, que, no auge dos seus quase dois anos, diz eufórica: "Acordou! Vamos à praia?"