sexta-feira, 29 de julho de 2022

Filho da ninhada

 

    Já mencionei que fui funcionário do Banco do Brasil por quase 17 anos, onde conheci algumas das figuras mais engraçadas. Uma dessas foi o Braga, vulgo Piu-Piu, que inclusive foi homenageado em meu primeiro romance, "Despido de ilusões". Nessa época, apesar de não trabalharmos na mesma equipe, ficávamos sentados praticamente um em frente ao outro. Por isso, não eram raros os momentos de descontração.

    Certo dia, lá estava o Braga tentando explicar algo para o Rodrigo, que era um estagiário recém chegado. Apesar de novo no setor, logo se formou uma forte interação entre os dois, que viviam fazendo piada um com o outro. Todavia, nem sempre eu prestava atenção nas tretas deles, mesmo porque o meu trabalho envolvia algumas contas, que, apesar de não muito complexas, necessitava de certa concentração. De repente, o Braga aumenta um pouco o tom da voz.

    _ Rodrigo, presta atenção, moleque doido! Já te expliquei isso três vezes!

    _ Tô prestando, Braga! Já peguei o filho da ninhada.

    _ O quê? 

    _ Filho da ninhada! Ou vai me dizer que você não sabe o que é isso, mané?

    O Braga soltou aquela sonora gargalhada, ao mesmo tempo em que olhou pra mim.

    _ Viu essa, Dudu? Filho da ninhada!!! 

    Apenas sorri, enquanto os dois se engalfinhavam, mas sem perderem a esportiva. Só me lembro que depois os dois se levantaram e foram tomar café na cantina. A última coisa que ouvi foi o Braga, quase gritando, falando:

    _ Rodrigo, é fio da meada!!!

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Filho da ninhada" foi publicada por Notibras no dia 13/2/2024.
  • https://www.notibras.com/site/pintinho-novo-no-bb-confunde-coletivo-de-papeis/

domingo, 24 de julho de 2022

Triste fim da vaca de um chifre

   Já escrevi uma história que aconteceu comigo nos meus longínquos tempos de estudante de medicina veterinária lá na Rural (UFRRJ), quando fui até Piraí/RJ na fazenda da mãe do meu amigo Almeidinha para retirar o chifre (na verdade, todos os bovídeos possuem cornos) quebrado de uma vaca, e ela acabou ficando com apenas um. Pois bem, recentemente, passeando pelo Mercado Público aqui em Porto Alegre, parece que acabei encontrando a dita cuja, ou melhor, a sua cabeça pendurada em uma fachada de uma das lojas.

   A princípio, nem notei, pois sou meio distraído. Mas a minha mulher (a maravilhosa Dona Irene) me cutucou no braço e disse: "Dudu, aquela ali pendurada não é a tal vaca que você deixou com apenas um chifre?" Quase caí pra trás com a surpresa e, confesso, profunda tristeza, pois sempre imaginei que a minha primeira paciente vaca teria tido um destino mais feliz.  

  Imediatamente liguei para o Almeidinha, que me disse que a vaca de um chifre havia falecido de causas naturais há alguns anos. Ela tinha sido enterrada em uma enorme cova na propriedade. Todavia, após alguns dias, o próprio Almeidinha, cavalgando pela área, constatou que alguém ou alguma coisa havia mexido no jazigo. Ele, segundo suas próprias palavras, quase caiu do cavalo, já que percebeu que o corpo em decomposição estava lá, mas uma parte não: justamente a cabeça. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Triste fim da vaca de um chifre" foi publicada pelo Notibras no dia 14/09/2023.
  • https://www.notibras.com/site/morreu-que-triste-fim-morreu-com-so-um-chifrim/

    

    


quinta-feira, 14 de julho de 2022

A menina singular

 

    A menina, desde bem menininha, sempre pareceu alheia a tudo e a todos ao seu redor, como se buscasse algo muito além. A mãe não suportava aquela situação, pois desde sempre aprendeu o que era certo e o que não era tanto, já que fora adestrada com rigor pela própria mãe, que também fora condicionada pela avó. 

    Sentada numa pedra lisa, a menina fixava os grandes olhos de um lindo tom castanho, cílios enormes, como se fossem cortinas tentando esconder seus pensamentos. Outras crianças corriam ao seu redor, numa gritaria sem fim, sorrisos largos e ingênuos, quase inocentes. Ela, todavia, demonstrava desinteresse, mas ninguém conseguia afirmar se era isso mesmo que acontecia. 

    A mãe, que tomava uma xícara de café com uma velha senhora, que ali chegara há pouco tempo, não tirava os olhos da menina. Inconformada com a imobilidade da filha, desabafou com a convidada, que já havia notado a singularidade da garota.

    _ Cabeça-de-vento!!!

    _ Cabeça que venta não é cabeça-de-vento.

  • Nota de esclarecimento: O conto "A menina singular" foi publicado por Notibras no dia 24/11/2023.
  • https://www.notibras.com/site/crianca-que-planta-semente-colhe-bons-frutos/

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Sarah, Astolpho e a Sophia com ph

  Sarah, mulher de seus quase 60, era do tipo que praticamente só conhecia o caminho de casa pro trabalho, do trabalho pra casa. Mal saía para comemorações e, quando o fazia, sempre era acompanhada por Astolpho, o marido pouco mais velho e extremamente ciumento. Ela até que gostava desse sentimento, pois se sentia amada como nenhuma outra. 

  Certo dia, lá estava a Sarah, que era gerente de um banco, atendendo uma cliente. Esta nem havia chegado aos 30, o que era facilmente percebido pela cútis de quase menina. Seu nome? Bem, seu nome era Sophia. Isso mesmo, Sophia com ph, como gostava de frisar. Ela havia se dirigido ao banco para resolver burocracias de cadastro, já que o divórcio a fez novamente com nome de solteira: Sophia Maria de Almeida, agora sem o França. 

    Enquanto mexia no computador para alterar o nome da cliente, Sarah percebeu a fotografia de tela do aparelho celular de Sophia, que o havia colocado sobre a mesa. Não podia acreditar no que estava diante de seus olhos, que se arregalaram até que as pupilas quase explodissem. No entanto, profissional que era, completou o atendimento e, logo em seguida, comunicou a um colega que precisaria ir embora, pois não estava se sentindo muito bem.

    Já em casa, encontrou Astolpho preguiçosamente recostado no amplo sofá da sala. Ela passou direto por ele, que ainda pediu uma cerveja. Sarah, pacientemente, foi até a cozinha, abriu a geladeira, pegou a tal latinha e a entregou ao marido. Em seguida, ela foi até o quarto, de onde, minutos após, saiu com uma enorme mala abarrotada de roupas. Voltou para a sala, onde Astolfo dava o seu último gole na bebida. 

    _ Que mala é essa? Vai viajar?

    _ Não! Eu não!!! Quem vai é você, seu cretino! - disse Sarah, ao mesmo tempo em que abriu a porta da rua e atirou a mala na calçada. 

    Astolpho, sem nada entender, perguntou o que era aquilo tudo. Sarah, quase calmamente, falou da fotografia que havia visto no  aparelho celular da Sophia, aquela que tinha ph no nome. Pois é, o Astolpho aparecia dando um apaixonado beijo nos lábios carnudos da cliente da Sarah. Ele ainda tentou explicar, mas nada convencia Sarah, que começou a xingar o traidor. 

    _ Sarah, meu amor, você está pegando muito pesado comigo!

    _ Astolpho, pesado é hipopótamo!!!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Sarah, Astolpho e Sophia com ph" foi publicado por Notibras no dia 4/12/2023.
  • https://www.notibras.com/site/sarah-traida-por-astolpho-e-a-namorada-sophia/

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Asfilófio, o filósofo de banheiro

    Asfilófio acordou com o estridente anúncio do despertador. Hora de levantar! Abriu os olhos remelentos, esfregou a cara amarrotada, bocejou e sentiu o desagradável odor do seu próprio bafo. Precisava escovar os dentes e a língua, esbranquiçada de tanto ficar muda durante a madrugada. 

   Já em frente ao espelho do banheiro, tentava se encarar, mas a imagem refletida não era das melhores. Melhor seria voltar para cama e se esquecer de tudo. Não seria prudente! Precisava tomar coragem para outra segunda-feira! Que dia deprimente! 

    Depois da terceira xícara de café, Asfilófio pareceu mais disposto e, finalmente, saiu de casa. Os passos não eram tão rápidos, talvez pela repulsa da imagem do trabalho. Sentiu o delicioso aroma da maresia, que o convidava para um mergulho no mar, mas esse pensamento foi interrompido por um esbarrão de um transeunte. Dividido entre sua cama e a praia de Copacabana, acabou mesmo por ir até a repartição onde trabalhava. Que droga!

   Mal entrou, percebeu dois colegas ouvindo um terceiro, que discursava euforicamente. Asfilófio quase não notava os significados das palavras, apenas ouvia o ruído estridente daquela voz, que o irritava desde sempre. Até que o tal palestrante levantou o tom e pronunciou, quase teatralmente: "Tudo é uma questão de hermenêutica!" 

    Asfilófio, assim como os outros dois ouvintes, ficou boquiaberto. Ele nunca havia ouvido essa palavra esquisita. Mas, antes que pudesse tentar descobrir, uma pontada bem lá no fundo da sua barriga anunciava que ele necessitava urgentemente de um banheiro.

    Sentado no vaso sanitário, Asfilófio não fazia a menor ideia do que era aquilo que seu colega havia dito. No entanto, enquanto esvaziava o conteúdo dos seus intestinos, não teve a menor dúvida: "Tudo é uma questão de movimentos peristálticos!"

  • Nota de esclarecimento: O conto "Asfilófio, o filósofo de banheiro" foi publicado pelo Notibras no dia 18/10/2023.
  • https://www.notibras.com/site/escrituras-fazem-servidor-ter-crise-peristaltica/

domingo, 3 de julho de 2022

Dona Irene, a cola e Deus

   A minha esposa, a Dona Irene, possui tantas histórias, que eu poderia apenas escrever sobre essas situações, muitas delas hilárias. Aliás, a que vou contar hoje é do tempo em que a minha mulher nem sonhava em se casar, pois ainda era uma menininha de trancinhas que, quase obrigada pela mãe, frequentava a igreja. Nessa época, ela precisava fazer algumas provas sobre o cristianismo e, como quase sempre foi muito estudiosa, além de ter uma memória privilegiada, devorava a bíblia até com certa facilidade.

    Chegavam as provas, lá ia a menina Dona Irene com a segurança de quem iria acertar tudo. E ela estava mesmo certa, pois sempre recebia uma estrelinha dourada na parte superior do teste. No entanto, o Robertinho, seu amigo de turma, tinha porque tinha que tirar uma nota bem alta para que não fosse reprovado. 

    Por isso, durante a última prova do semestre, lá estava o Robertinho logo atrás da carteira da minha futura esposa. Já o pastor, crente de que todos na sala seriam extremamente honestos, deixou o ambiente e foi tomar um café. Não deu outra, a Dona Irene, em sua versão miniatura, passou aquela cola caprichada pro Robertinho, que tirou dez e foi aprovado até com certo louvor.

    Pois é, mais de uma década após esse ocorrido, lá estava a Dona Irene, agora na versão grandinha, me contando essa passagem de sua infância. Até que lhe fiz uma pergunta.

    _ Ué, mas você não me disse que Deus sempre está de olho em tudo?

    _ Ah, fiz tão bem feito, que Ele nem reparou. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Dona Irene, a cola e Deus" foi publicada pelo Notibras no dia 14/5/2023.
  • https://www.notibras.com/site/dona-irene-a-cola-durante-a-prova-e-o-olho-de-deus/

Deuzivaldo, o barrigudo deprimido

 

    Deuzivaldo, perto de completar 60 anos, há muito acostumara com o seu esdrúxulo nome. Na verdade, a palavra mais adequada é que ele, depois de tanto tempo sendo chamado por Deuzivaldo, Deuzi ou até mesmo Valdo, parecia acostumado com aquilo. No entanto, uma coisa que o irritava era aquela barriguinha proeminente, ainda mais depois de ter sido abandonado pela mulher, que o trocou por uma versão mais jovem chamada Paulo Douglas.

   De tão deprimido, Deuzi resolveu procurar ajuda psicológica. Marcou a primeira consulta para a semana seguinte. Muito ansioso, começou a comer desenfreadamente, como se aquilo lhe trouxesse algum alívio. No entanto, já na véspera do tão esperado dia em frente ao Dr. Gilmar, eis que ele se olha, completamente despido, no espelho logo depois de tomar banho. Impossível não soltar um "Que droga de barriga!"

    Já no consultório, o psicólogo, muito atencioso, convida o Deuzi a se deitar no divã. Este se estica todo, coloca os pés para o alto e, em seguida, começa a tagarelar sobre a sua situação calamitosa. Vez por outra, ele menciona a tão incômoda protuberância abdominal, até que não lhe restam palavras de lamúrias, mas apenas um triste olhar direcionado ao Dr. Gilmar, na ânsia de um alento. 

    _ Deuzivaldo, a vaidade, muitas vezes, é a única força que nos faz levantar.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Deuzivaldo, o barrigudo deprimido" foi publicada pelo Notibras no dia 02/03/2023.
  • https://www.notibras.com/site/deuzivaldo-um-barrigudo-sem-forcas-para-pensar/

sábado, 2 de julho de 2022

Santana, o terrorista

    O Santana chegou à delegacia com os bofes pra fora como de costume. No entanto, parecia ainda pior, já que de sua enorme pança emanavam sons que indicavam uma verdadeira batalha entre as enzimas digestivas e a quantidade descomunal de churrasco consumida na noite anterior. Foi uma comilança, com direito até a maionese não muito confiável, ainda mais depois de tantas horas fora da geladeira. As inúmeras latinhas de cerveja, às vezes quente, completaram o caótico prognóstico.

    Assim que passou pelo delegado, foi informado sobre a reunião, que já iria começar. O Santana recebeu essa notícia com cara de poucos amigos, se é que ele possuía algum. Seja como for, tratou logo de se dirigir à sala, onde outros policiais já haviam tomado conta de todas as cadeiras disponíveis. Irritado, ele encostou o corpanzil numa das paredes. 

    Não demorou muito, o delegado entrou no recinto, onde colocou uma pasta de documentos sobre a mesa. Cumprimentou brevemente os presentes e, quando ia começar a falar sobre o assunto daquele encontro, eis que o Santana deixa cair no chão um enorme chaveiro. 

    Todos voltam os olhares para o policial desastrado, que se curvou para pegar as chaves. De repente, um gigantesco estrondo sai do traseiro do Santana, empesteando rapidamente todo o ambiente. Imediatamente, o delegado, quase sufocado, salvou a todos daquela catástrofe.

    _ Reunião encerrada!

  • A crônica "Santana, o terrorista" foi publicada pelo Notibras no dia 12/07/2023.
  • https://www.notibras.com/site/delegado-acaba-reuniao-apos-pum-estrondoso/

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Fifa World e o futebol na rua

    Mal chegou do trabalho, o pai avistou o filho em frente ao computador. De tão entretido com o jogo de futebol na tela, o garoto nem percebeu quando o pai se aproximou. O homem, que ainda carregava a maleta, estacou justamente ao lado do pivete, que não parava de mexer insistentemente no controle remoto.

    _ Oi, filho!

    O menino, sem tirar os olhos da partida, respondeu quase mudo, que o pai imaginou ter ouvido.

    _ Isso aí dá pra jogar de dois?

    O garoto pareceu não ter escutado o homem, que ainda insistia em chamar-lhe a atenção, como se enciumado por ter sido deixado em segundo plano.

    _ Ei, filho, isso aí dá pra jogar de dois?

    _ Peraí, pai! Agora não dá pra falar agora!

   O homem, finalmente, desistiu e pousou a maleta sobre o móvel da sala. Ele se dirigiu ao quarto, onde pegou uma toalha e foi tomar banho.

  Já na mesa, com o prato bem à sua frente, conversava com a esposa. Trivialidades de mais um dia em que ambos tiveram dias exaustivos nos respectivos empregos, até que foram interrompidos pelo desabafo do filho.

    _ Droga!!!

    O garoto, até que enfim, se levantou e foi se juntar aos pais.

    _ Pai, você já ganhou no Fifa World?

    _ O que é isso?

    _ Ué, o jogo que eu estava brincando agora.

    _ Ah, não! No meu tempo de criança, a gente brincava de bola na rua. Todo mundo descalço.

    _ Sério? E qual era a graça disso?

    _ Ah, era divertido! Ainda mais porque todo mundo lá na rua tinha o dedão do pé sem tampo. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Fifa World e o futebol na rua" foi publicada pelo Notibras no dia 12/8/2023.
  • https://www.notibras.com/site/fifa-world-e-vida-de-pe-descalco-no-futebol-de-rua/

O conselho da Dona Irene

    Apesar de conviver há tanto tempo com a Dona Irene, não canso de me surpreender com as tiradas dela. A última aconteceu na semana passada, quando estávamos brincando com a Belchior e a Clarinha, as nossas filhas de focinho achatado, num parquinho aqui em Porto Alegre. Nisso, chega uma outra dona de cachorro, que senta bem pertinho de onde estávamos. Era uma garota, não mais que seus vinte anos. Não demorou muito, a minha mulher puxa conversa, pois adora trocar experiências com aqueles que possuem cães

    _ Qual é o nome do seu?

   _ Lambreta. E das suas?

   _ Belchior e Clarinha. 

    _ Elas já brigaram?

    _ Não, elas são bem de boa. E o Lambreta?

    _ Ah, de vez em quando ele estranha um ou outro cachorro. Mas estou pensando em fazer um curso de adestramento para aprender algumas coisas sobre comportamento. 

     _ Ah, legal! Você trabalha com o quê?

    _ Então, fui demitida na semana passada. 

    _ Nossa, que chato, hein!

    _ Pois é, a minha mãe fala que eu preciso nortear a minha vida.

    _ Creio que é melhor você nordestear, que dá muito mais certo.