sábado, 4 de maio de 2024

Adalberto, João Saldanha e as histórias sobre um tal Garrincha

Lá pelos idos dos anos 1990, tive a oportunidade de entrevistar o Adalberto, ex-goleiro do Botafogo e do Santos. O cara, para quem não sabe, estava naquela final épica do campeonato carioca de 1957, quando o Fluminense, que tinha o Telê Santana como um dos seus principais jogadores, tomou de 6 a 2. A torcida alvinegra aproveitou a ocasião para rimar o placar: Seis a dois no Pó de Arroz!

          E lá estava eu diante daquele cara enorme, que havia jogado ao lado de tantas lendas, de Garrincha a Pelé, passando pelos imortais Nilton Santos e Didi. Adalberto, sempre polido, trabalhava no Maracanã nessa época, onde me levou para um passeio pelo lendário estádio. Eu, que já havia assistido a vários jogos ali, nunca ficara tão perto do gramado, a ponto de, sorrateiramente, esticar meu pé esquerdo e tocá-lo, a despeito do meu anfitrião ter me advertido diversas vezes para que eu não fizesse isso. Não sei se ele percebeu minha travessura, mas não me repreendeu. 

          Falamos sobre futebol, é verdade, mas o que mais gostei de escutar do antigo craque foram os causos do João Saldanha. O folclórico jornalista, durante uma época, ficou muito próximo ao Adalberto, quando este já havia pendurado as chuteiras. E, por isso, sempre o levava para as suas palestras mundo afora.

          O João, que adorava contar histórias sobre o Garrincha, sempre buscava no Adalberto a confirmação dos ocorridos. O ex-goleiro, tímido que era, apenas acenava positivamente com a cabeça, para delírio da plateia, que aplaudia de pé o contator de causos. No entanto, quando os dois estavam sozinhos, o Adalberto, de maneira educada, obviamente, questionava o amigo.

          — Mas, João, nessa época eu nem estava mais no Botafogo!

          — Adalberto, Adalberto, vou te contar uma coisa que aprendi há muito tempo.

          — O quê?

          — Sabe o que é mais importante do que os fatos?

          — Não.

          — A história, meu amigo! A história!

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Adalberto, João Saldanha e as histórias sobre um tal Garrincha" foi publicada por Notibras no dia 4/5/2024.
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sexta-feira, 3 de maio de 2024

Buraco e outras histórias

        

            Um dos eventos na vida de Elizabeth era o jogo de buraco na casa de Maria Amélia, amiga de longa data. As duas se conheceram através do falecido marido de Elizabeth, Adolpho, que fora chefe de seção onde Maria Amélia trabalhou. E desde cedo surgiu uma certa simpatia e admiração da agora namorada do Silva pela secretária do morto.

Mais velha, Maria Amélia dava conselhos à amiga há tempos, principalmente quanto à vida amorosa que deveria levar com o marido. Seja como for, talvez foram exatamente esses conselhos da antiga secretária e amante de Adolpho que tenham contribuído de forma incisiva no modo como ele passou a encarar a esposa. O homem, justamente por causa dos conselhos dados pela amante à esposa, apaixonou-se por Elizabeth, que havia se casado por imposição ou conveniência da família.

O triângulo amoroso continuou até Maria Amélia perceber que não havia mais espaço para si na vida de Adolpho. Então, decidiu abandonar o barco antes que fosse jogada ao mar. Mas saiu feliz, principalmente porque também tinha uma admiração pela jovem esposa do ex-amante. Sempre mantiveram contato, apesar do distanciamento de Maria Amélia, que jamais buscou momentos que pudessem, de alguma forma, perturbar o fluxo normal do casamento de Adolpho e Elizabeth.

Somente após a morte do marido de Elizabeth, é que as duas ficaram mais próximas. Não se sabe se alguma vez tenha chegado aos ouvidos da viúva a história dos adúlteros, mas é provável que não. Ou, então, sua gratidão era tamanha pelos conselhos recebidos de Maria Amélia, sem contar a amizade que parecia ser verdadeira e de sentimentos nobres, que jamais pensou, sequer, em comentar tal assunto.

 — Canastra real! E... Bati! – Elizabeth, como uma criança que acabou de ganhar um doce, bate palmas freneticamente.

           — Assim não dá, vocês sempre ganham! – Silva, que está fazendo dupla com Geralda, mulher tão ou mais velha que Maria Amélia, vizinha do quarto andar e casada com um coronel reformado do Exército, finge ficar contrariado. Na verdade, ele gosta mesmo de ficar na presença da amada, além, é claro, de ouvir as histórias das outras duas mulheres, que sempre têm alguma coisa interessante para contar, como da vez que Geralda viu um casal de jovens namorando na escada. “Era um pega aqui, beija ali... Vocês precisavam ver a cara da garota quando me viu! Parecia que iria ter um treco qualquer!”, a velha se divertia e divertia todos os presentes.

        E entre uma canastra e outra, os velhos tratavam logo de pegar o morto. Ninguém queria perder no buraco, mas se perdiam, tudo bem. Ainda havia as fofocas da Geralda. A velha, além do dom da palavra, dependendo do ânimo da plateia, sabia como ninguém mudar o final da história

  • Nota de esclarecimento: O conto "Buraco e outras histórias" foi publicado por Notibras no dia 3/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/caso-de-triangulo-amoroso-viuvez-novos-pares-e-cartas-escondidas/

A nada fácil vida de escritor

        

        Os que me conhecem sabem muito bem que não sou de festejos. Não que seja totalmente antissocial, mas é que não gosto de locais apinhados. Confraternização com amigos, até encaro. Se bem que sou da turma do cafezinho, ainda mais se tiver a companhia de proseador dos bons. Mas nem sempre consigo fugir de certos compromissos, ainda mais quando sou pego de surpresa e não tenho tempo de inventar uma desculpa que cole. 

          Pois lá fomos nós, minha esposa (a Dona Irene) e eu, para um churrasco na casa da minha grande amiga Grace, que é casada com o Leoton. Assim que chegamos, fomos recebidos por muitos sorrisos, beijos e abraços, mesmo porque já fazia um bom tempo que não encontrava aquele casal tão gente boa e a filha, a pequena Grabriele, que já não está tão pequena assim. Por ali também estavam a Dona Lourdes e o Max, pais da Grace, assim como a Fafá, irmã do Leoton.  

         Conversa vai, conversa vem, fomos apresentados a um monte de gente. Não sei como é que você se sente quando isso acontece, mas fico meio confuso diante de tantos nomes e rostos novos. É como se eu tivesse saído de uma caverna bem escura e, de repente, alguém jogasse um facho de luz tão forte, que cega. Seja como for, após quase meia hora, minha vista começou a se acostumar com toda aquela claridade. Tanto é que, já devidamente acomodado em uma mesa ao lado da minha esposa e outras pessoas, aceitei de bom grado a conversa iniciada por uma mulher.

          — Você trabalha com o quê, Edu?

          — Sou escritor.

          — Escritor?

          — É, escritor.

          — Como assim?

          — Como assim o quê?

          — O que você faz pra viver?

          — Ué, escrevo.

          — Mas você não tem uma profissão?

          — Sou escritor.

          O clima pareceu pesado, até que a Dona Irene apaziguou as coisas. É que ela disse para a minha amiga de última hora que eu também era médico veterinário. Pra quê? A mulher, que era tutora de dois cães, quatro gatos e um coelho, começou a me fazer perguntas que não acabavam mais. Mas mantive a linha e respondi educadamente cada questionamento, até que, finalmente, nos despedimos e fomos embora.

          Durante o trajeto de volta, a minha esposa e eu comentamos sobre o maravilhoso tempero do churrasco. Certamente era receita da Dona Lourdes. Mas eis que a minha amada começa a rir do nada.

          — O que foi?

          — Nada, Edu!

          — Ué, por que está rindo?

          — Você tinha que ver a sua cara.

          — Como assim?

          — Você fazia umas caretas quando estava respondendo às perguntas daquela mulher.

          — Taí uma coisa que não entendi.

          — O quê, Edu?

          — Por que você falou pra ela que sou veterinário?

          — Ah, pra ela não pensar que você era um vagabundo.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "A nada fácil vida de escritor" foi publicada por Notibras no dia 3/4/2024.
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quinta-feira, 2 de maio de 2024

Bem além dos muros

    

           Mamãe contava tantas histórias, que deixava todos boquiabertos. Nesse tempo, eu não sabia nem pensar, mas depois as ideias começaram a brotar que nem minhoca em terra úmida. Coisas de criança, cuja imaginação não se intimida com os muros ao redor. A visão acaba que não tem fim. 

            Lembro bem desse tempo quando percebi que coisas distintas, quando juntas, podem dar outras completamente diferentes. E com M dá EM, 1 com 3 dá 13, mas pode dar 31 dependendo do jeito de olhar. Gostava do 13, que para mim só dava sorte, ainda mais porque sonhava em completar essa idade para ser igual à Aurelina, minha irmã mais velha. 

            Demorou um bocado, mas meus 13 anos chegaram. Todavia, Aurelina, talvez com pressa de não sei o quê, já estava com seus 20. Esperta como ela só, tomou a frente no armazém da família. Papai, que a princípio não queria filha mulher se metendo nos negócios, deu o braço a torcer após perceber que o dinheiro começou a entrar sem cerimônia. 

            O Solano, nosso irmão do meio, bobo que sempre foi, quis entrar pro Exército. Coitado, desgostoso da vida por não ter guerra para lutar, terminou os dias lavando latrina no quartel. Um dia tomou um escorregão e tacou a testa na quina do buraco de se agachar. Não morreu por conta da pancada, mas por afogamento naquele monte de dejetos. Não foi por falta de conselho, pois mamãe sempre disse para ele deixar aquela bobice de farda e buscar emprego de verdade. 

            Quando terminei os estudos, pensei em me casar. Não havia pretendentes do meu agrado, mas pensei que fosse a minha sina me tornar esposa de algum homem bom. Não precisava ser tão bom assim, mesmo porque, até onde sabia naquele tempo, todos nasceram com certa maldade no coração. 

            Contei meus planos para Aurelina, que me passou aquele carão. Que coisa mais besta arrumar marido! Vai fazer faculdade, isso sim! Faculdade? Nem sabia o que queria ser, mas minha irmã me ajudou até nisso. Ela me mostrou aquele mundaréu de cursos que eu poderia fazer. Gostei de Serviço Social. Fiz o vestibular naquele início de 2006. 

            Não fiquei entre os primeiros colocados. Na verdade, fui a penúltima na lista de 30. Confesso que me senti envergonhada, mas logo a Aurelina me deu um cutucão. Deixa de bobice, Lígia! O importante é que você passou. A sua vaga vale tanto como qualquer outra. Como sempre, minha irmã estava com razão. 

            Ainda me lembro do primeiro dia de aula. O frio na barriga não me deixava esquecer de que eu era a primeira pessoa da minha família a fazer um curso superior. Dessa forma, por mais estranho que fosse aquele mundo novo, procurei me esforçar ao máximo. Creio que fui bem-sucedida, pois consegui me destacar entre os alunos e, assim que me formei, tomei posse em um órgão público. 

            O concurso ocorrera há quase um ano, mas Aurelina, sempre ela, me disse para fazer a inscrição. Fiz a tal prova e, quando saiu o resultado, fiquei desapontada porque minha classificação ficou fora das vagas. Mas, por sorte, chamaram mais gente, inclusive meu nome, no mesmo dia que peguei o certificado de conclusão do curso universitário. 

            O tempo voou mais rápido do que eu esperava. Hoje estou com 36 anos, casada há três com o Júlio, um cara muito divertido e companheiro. Nossa filha, que nascerá daqui a dois meses, vai ter o mesmo nome da madrinha, que continua tomando conta dos negócios da família lá na nossa pequena cidade do agreste nordestino. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Bem além dos muros" foi publicado pro Notibras no dia 2/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/vence-na-vida-quem-tenta-mesmo-que-na-rabeira-da-lista/

Velhice e vaidade

           Parece, mas não é sempre que ocorre, que o tempo carrega o viço, apesar da vaidade permanecer incrustada na alma. Se isso é totalmente verdade, não se pode afirmar, mas bem que, como mostra esta história, que se iniciou logo ali naquela praça, parece que é. 

          — Como está o Asdrúbal?

          — Anda mal, muito mal.

          — Sério? O que houve?

          — Morrer novo não é bom, mas ficar velho é um desafio e tanto. 

          — Muito complicado.

          — E o pior é que a gente não pode fazer nada, a não ser acompanhá-lo ao médico, ministrar os remédios.

          — Mas ele nem está tão velho assim. 

          — Isso é verdade. No último dia de outubro completará 76.

          — Então!

          — Mas adoeceu muito cedo. O cigarro.

          — Terrível!

          — Pois é.

          José falou em fazer uma visita ao amigo de longa data, proposta logo aceita por mais dois que estavam por ali. E foram em sete, pois angariaram mais alguns desocupados pelo caminho. Mal chegaram, constataram a carranca do velho, que fazia bico até para tomar sorvete de chocolate, seu favorito. 

          Contaram anedotas, mas nada conseguia arrancar Asdrúbal daquela masmorra, até que o Juvêncio, sempre ele, que arrancava ideias de não sei onde, resolveu bater um retrato de todos. Retrato. Nada dessas modernidades de fotografia. 

          O retratista, que carregava sua máquina pendurada no pescoço, mandou que todos se juntassem ao redor do ranzinza. Marcou 10 segundos para o clique e correu para junto daqueles corpos carcomidos. 

          Depois de quase duas horas, Asdrúbal finalmente se viu só. Um alívio, segundo seu próprio pensamento. Foi dormir sonhando com a morte, que desejava ser breve. Que nada, acordou no dia seguinte e no próximo também, quando, então, ouviu a campainha soar irritantemente. Desejou jogá-la fora, mas, antes que o fizesse, foi ver quem era. Juvêncio, que, além do sorriso, trazia o retrato.

          — Não gostei!

          — Por quê, Asdrúbal?

          — O Armando ficou mais bonito que eu.

          — Dificilmente, ainda mais com esse seu grisalho respeitável e hierático.

          — Que nada! Já estou no farelo do biscoito.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Velhice e vaidade" foi publicado por Notibras no dia 2/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/morrer-e-complicado-e-quando-jovem-pior-ainda/

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Um carioca em Brasília

   

            Edmar, carioca da Zona Sul, aos 36 anos, mudou-se para Brasília. Não se pode dizer que fora obrigado, pois, até onde se sabe, ninguém lhe apontou uma arma para a cabeça. E aquele desconforto nos primeiros meses acabou se transformando em algo maior por aquela cidade, aquela terra vermelha, aquele clima seco.

          Como disse um sábio, o ódio é irmão gêmeo do amor. Pois é, um novo sentimento começou a entrar no coração do Edmar. E era assim que o homem conseguia suportar passar tanto tempo na capital, pois aprendeu a dosar aquelas duas emoções no seu peito: o ódio e a ganância. Aliás, por conta desta, o carioca fez fortuna em pouco mais de cinco anos.

          Rico e com Brasília a seus pés, Edmar poderia morar nas partes nobres da cidade. Rejeitou até mesmo o Lago Sul, para você ver. É verdade que a muvuca de Taguatinga o atraía, mas acabou comprando um amplo apartamento na decadente Asa Norte. A localidade, apesar de alquebrada, mantinha Edmar ligado à realidade, que, além de despida, quase nunca lhe chegava bem-passada.

          O homem sentia falta não apenas das praias, como também das esquinas tão cariocas. Gostava de tomar uma geladinha, saboreada de pé encostado no balcão. Que as mesas e cadeiras continuassem por ali para quem quisesse se sentar. Mas cadê aquele toque de descompromisso? Cadê aquela troca de ofensas em tom de brincadeira com o atendente? Cadê aquela bandeja de ovos coloridos? Sem falar daquela coxinha que, de tantas moscas, poderia facilmente ser confundida com um quibe? 

          E foi por esses dias que aconteceu um interlúdio entre o ricaço e um legítimo nativo do Distrito Federal. Nascido, cuspido e escarrado por aqui. E não me venham tentar corrigir com aquela conversinha de esculpido em carrara, já que a conversa foi, além de franca, extremamente esclarecedora.  

          — Brasília é muito formal! 

          — Como assim, Edmar?

          — As pessoas daqui se preocupam mais com aparências do que com a própria vida.

          — Como assim?

          — Meu amigo, Brasília carece de um Zeca Pagodinho.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Um carioca em Brasília" foi publicado por Notibras no dia 1/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/brasilia-cidade-formal-precisa-de-um-zeca-pagodinho/

Margô, a rabugenta

    

  Imagine alguém mal-humorado. Agora pegue essa pessoa num dia ruim, e que esse dia seja o mais longo do ano. Pois é, talvez, assim, você possa ter ideia do que é a Margô, mulher dos seus quase 50 anos, apesar de há tempos se manter firme nos 38.

          Casada com o Onofre há 30 anos, filhos mais que criados, Margô tem andado sem muita paciência com o marido. Não que ele tenha aprontado, já que, até onde a fofoca alcança, quase sempre andou na linha. Talvez seja a menopausa dando às caras.

          Dona da mercearia mais popular de Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, Margô oferece produtos a preços mais em conta. Por isso, a comerciante consegue manter uma freguesia fiel, além de angariar novos compradores a todo instante. Mas nem por isso deixa de conquistar desafetos, haja vista tanta rabugice.

          Pois a última vítima da Margô foi a mais nova moradora da região, a Larissa, moça formosa dos seus 19 anos. Solteira, estudante de arquitetura, a garota foi comprar algumas frutas na loja da rabugenta. Mal pisou no recinto, Larissa chamou a atenção de todos, inclusive do Onofre, que havia ido no local para pegar as chaves do automóvel com a esposa.  

          — Tá olhando o quê, Onofre? Perdeu alguma coisa?

          — Não, amor. Só estou vendo se os clientes estão sendo bem atendidos.

          — Pega logo as chaves do carro e vá logo embora. Ou você quer que eu me aborreça?

          Onofre não queria encrenca e tratou de dar o pé antes que a coisa esquentasse de vez. Passou direto pela Larissa e, não demorou, já havia dobrado a esquina na direção do velho Opala da família.

          A nova moradora do bairro, depois de quase 20 minutos na mercearia, se aproximou da Margô. A comerciante lhe lançou um sorriso cínico, mas que, talvez por ingenuidade, não foi captado pela Larissa.

          — Senhora, posso lhe fazer uma pergunta? 

          — Ih, gastou uma pergunta! 

          Mas antes que a Larissa pudesse se sentir ofendida, eis que a Joana, antiga moradora dali, a acalmou.

          — Minha filha, esta é a Margô. Uma relíquia do bairro. Seja muito bem-vinda!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Margô, a rabugenta" foi publicado por Notibras no dia 1/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/larissa-19-anos-formosa-em-tudo-irrita-comerciante/

terça-feira, 30 de abril de 2024

Sarita, a gambá do quintal da casa da minha avó

           — Sarita?

           — Sarita.

           — Mas por quê?

           — Por que o quê?

           — Esse nome.

           — Ué, já reparou que ela tem cara de Sarita?

        E lá estava eu observando aquele bicho com cara de gambá, quando fui obrigado a concordar com a minha avó, que acabara de descascar um ovo cozido e colocá-lo em um suporte na goiabeira. Sarita, talvez desconfiada pela minha presença, relutou um pouco em ir até a iguaria. No entanto, bastou uma troca de olhares com minha avó para a danada mostrar toda a sua agilidade por aqueles galhos escorregadios. 

           — Ela adora ovo cozido. 

           — Deu pra perceber, vovó.

           — Pois é.

           — Ela está aqui há muito tempo?

           — Desde fevereiro, logo após o carnaval.

           — Sabe de onde ela veio?

           — Não, mas ainda bem que veio.

           — Por quê, vovó?

           — É que por aqui tava dando muita lacraia e até escorpião.

           — E o que tem isso a ver?

           — Mucuras comem esses bichos. Comem até cobras venenosas.

           — Sério?

           — Sério.

           — Mas e se forem picadas por esses bichos?

           — Não tem problema. Elas são imunes ao veneno.

          Vovó foi até a cozinha para começar a preparar a comida. Era domingo, dia de almoço em família. Fiquei por um momento ali no quintal observando a Sarita terminar de comer aquele ovo cozido. Desde então, passei a olhar os gambás com outros olhos. Ah, também soube que, além de mucura, também são conhecidos como saruê.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Sarita, a gambá do quintal da casa da minha avó" foi publicado por Notibras no dia 30/4/2024.
  • https://www.notibras.com/site/sarita-a-gamba-do-quintal-da-casa-da-minha-avo/

Paula, Maurício e o verdadeiro fruto do pecado

    

            Ai, ai, ai, ai, ai! Nem te conto o que rolou por aqui na última semana. Pois é, sabe a Paula? Essa mesma, a filha da dona Fátima. Não é que ela pegou o marido com outra na cama? Pegou sim! E como pegou! Só não virou caso de polícia porque, entre mortos e feridos, todos se salvaram. Ou melhor, safaram-se, inclusive o safado do Maurício, o traidor.

          Para entender o caso, é bom retornar até o último carnaval. Lá estavam a Paula e o Maurício, que jurou amor eterno para a esposa ali mesmo. Como sei? Sou testemunha quase ocular, pois estava no dia com uma amiga, que, parece, viu tudo acontecer numa das 51 mesas do Pietro's Bar, famoso quiosque aqui em Barra de São Miguel. E, se a minha amiga não conseguiu me contar todos os detalhes, é óbvio que imaginei alguns e, não nego, talvez tenha aumentado outros tantos. Mas quem garante que não aconteceu exatamente assim? Coloco a sua mão no fogo que sim.

          Paula, mulher dos seus 45, apesar de negar que tenha chegado aos 32, é casada há pelo menos 20 com o Maurício. É ou era? Não importa, pois fofoca boa não se intimida por causa de miudezas. 

          Combinaram passar aquela última noite de folia desfrutando uma gelada e degustando as famosas iguarias do referido estabelecimento comercial na linda Praia das Conchas. Coquetel daqui, coquetel dali, eis que a Betinha, que outrora poderia ser facilmente confundida como a cocotinha do pedaço, resolveu desfilar toda aquela alegoria justamente na mesa ao lado. Pra quê? O olho comprido do Maurício, mais arregalado que jabuticaba madura no pé, cismou em fazer par com o tal pensamento do Diabo. 

          Não pense você que a coisa desandou de modo a causar embaraço para os presentes. É que a Paula, que de boba não tem nada, deu aquele beliscão de acordar até defunto de três dias no esposo. O homem, que vagava que nem astronauta pelo espaço, pousou rapidamente o seu foguete. Nada de se embrenhar pelos anéis de Saturno ou buscar o aconchego em outra Vênus. 

          O carnaval passou, mas eis que chegou a Semana Santa. E, sejamos sinceros, o Maurício parecia redimido daquele pequeno deslize. Tanto é que até fez questão de preparar o almoço da sexta-feira. Peixe, conforme reza a tradição. Tanto é que a Paula quis presentear o maridão com novidades debaixo dos lençóis, que se tornaram ainda mais aquecidos naquele dia assim que a Lua despontou no lindo céu sobre aquele lar, doce lar. 

          Mas não é apenas de peixe que vive o homem. E não é que o Maurício, justamente no domingo de Páscoa, caiu de boca no chocolate da Betinha? Isso mesmo! Pra você ver como é que as coisas acontecem por causa dessa ânsia descontrolada por tal iguaria. Diante da inocente maçã, o chocolate é o verdadeiro fruto proibido.

          Foi um pega pra capar, mas, até onde consta, Maurício se safou com sua masculinidade intacta. Tomou alguns bons tapas na cara para deixar de ser adepto da infidelidade. Se o homem tomou tenência, não se sabe ao certo, mas parece que tem andado na linha. É que a Paula caminha todas as manhãs pela orla, mão firme no braço do gajo, que nem se atreve a tirar os olhos da areia, pois o beliscão já está preparado, só esperando a oportunidade.   

  • Nota de esclarecimento: O conto "Paula, Maurício e o verdadeiro fruto do pecado" foi publicado por Notibras no dia 30/4/2024.
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segunda-feira, 29 de abril de 2024

Lúcio, o fumante inveterado

    

        Não devia ter dez anos quando deu a primeira tragada. Escondido da avó, que havia esquecido o cigarro no cinzeiro. Tragou com tanta força, que teve uma crise de tosse. A velha, lá da cozinha, pensou que o menino estava doente por causa da friagem. 

          — Coloque as meias, Lúcio!

          Já um pouco maior, o garoto criou coragem e pediu para o pai deixá-lo acender o cigarro. O homem achou graça e não viu motivo para negar tal desejo. Esse passou a ser um hábito, tanto é que Lúcio acendia não apenas o cigarro do pai, mas da mãe, dos tios e até da avó, de quem pegava escondido dois ou três para fumar escondido. 

          Aos 15, Lúcio, cigarro entre os dedos, tragava sem cerimônia na frente de todos. Fumava na rua, na escola, no clube, até no ônibus, quando ainda não era proibido. Fumaça pela boca, fumaça pelas narinas, fumaça em lindas argolas que bailavam pelo ar. 

          Lúcio começou a trabalhar em uma repartição pública. Que felicidade! A fumaça se confundia com as pessoas. Cinzeiros espalhados por todo o ambiente, abarrotados de guimbas. 

          Foi no emprego que o rapaz conheceu Maria. Encantadora aos 28 anos e, ainda por cima, fumava com estilo. Piteira! Isso mesmo! Piteira! A mulher era a única que usava esse apetrecho para dar longas tragadas antes de soltar fumaças em aros tão perfeitos, que não teve jeito. Lúcio ficou completamente enlaçado pela colega. 

          — Não, Lúcio. Você é muito novo pra mim.

          O rapaz, apesar de apaixonado, não insistiu. Melhor ficar próximo sofrendo a ser excluído do círculo de amizade da mulher. E foi o que fez. Tornaram-se até confidentes e, durante a comemoração de fim de ano, o grupo foi se despedindo, até sobrarem cinco ou seis. Maria e Lúcio, mais ao canto, sorriam futilidades, até que ela mexeu na carteira para pegar mais um cigarro.

          — Posso acender pra você?

          — Hum. Sabia que ninguém nunca acendeu um cigarro pra mim?

    Não se sabe se foi por conta daquele gesto ou se a bebida contribuiu, Maria começou a olhar o colega com outros olhos. Tanto é que, naquele mesmo dia, os dois foram para um hotel ali perto, onde passaram a noite. Entre uma tragada e outra, aquelas vozes carregadas de alcatrão se amaram.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Lúcio, o fumante inveterado" foi publicado por Notibras no dia 29/4/2024.
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domingo, 28 de abril de 2024

Meioca, a cachorra que me acompanhou por anos

        

            Minha avó chegou carregando uma caixa de sapato. Pela aparência gasta, imaginei que receberia mais um novo velho par de algum primo, já que eu havia nascido com a sina dos mais novos: herdar roupas e calçados que já não serviam nos maiores.  

           Ela me estendeu a caixa, que peguei provavelmente com um sorriso forçado nos lábios. No entanto, logo percebi que algo se mexia ali dentro. Curioso que era, tratei logo de tirar a tampa e me deparei com uma linda cadelinha quase toda marrom, caso não fosse por aquelas manchas nas patas, que pareciam luvas e meias.

            Não me contive e a peguei no colo e encostamos nariz com nariz. O dela era de um geladinho, que, a princípio, me reportou aos cubos de gelo que mamãe adorava mastigar. Entretanto, quase ao mesmo tempo, senti aquele cheiro, verdadeiro fetiche que os filhotes de cachorro despertam até mesmo no mais insensível coração de nós, meros humanos. 

            Minha tia Doroteia se aproximou e me perguntou que nome eu daria para a minha cachorrinha. Pipocaram sugestões de todas as bocas presentes: Princesa, Luna, Diana, Safira... Até que minha avó, do alto da sua perspicácia, tocou os pés da minha, a partir daquele momento, maior companheira. Não tive dúvida e balbuciei, quase ao mesmo tempo em que os lábios da minha avó se mexiam: Meioca.

                _ Meioca? Que nome esquisito! - disse tia Doroteia.

           _ Meioca, sim! Se o Gustavinho escolheu, tá escolhido! - minha vó falou e, logo, todos entenderam que estava falado. 

            Dos meus 8 aos 21, Meioca e eu passamos a maior parte do tempo juntos. É verdade que, assim que passei no vestibular, nossas brincadeiras se tornaram menos frequentes, mesmo porque fui morar na cidade vizinha. Mas, sempre que voltava para casa, íamos ao lago nos refrescar. E, nos seus últimos meses de vida, eu a carregava no colo e sentávamos debaixo de uma mangueira, cujas raízes tocavam as margens, como se dedos fossem. 

            Meioca já não possuía aquele vigor, mas seus olhos, apesar de cada vez mais tomados pela catarata, continuavam a me acompanhar, como se me protegendo de algo enquanto eu dava um mergulho. Era nítido seu alívio quando eu retornava para seu lado, tamanha sua euforia. Dividíamos um sanduíche de carne, até que a tarde se esvaía e eu tomava minha amiga nos braços e retornávamos para casa, onde nos esparramávamos no sofá e devorávamos uma bacia cheia de pipoca, enquanto assistíamos a mais um programa sobre a vida selvagem. 

                Não sei se a Meioca entendia o que era aquele monte de animais na televisão, mas sempre se mostrou muito interessada, especialmente quando surgia algum lobo. Talvez ela soubesse que aquele animal, muito maior do que a minha amiga, possuía uma ligação forte com a sua existência.

                Outros bichos que faziam os olhos de Meioca brilharem eram tigres, leões, onças e leopardos. Ela chegava a se erguer, orelhas voltadas para a tela. Mamãe, quando notava esses momentos, falava sempre a mesma frase: "Meioca, essas feras podem devorá-la!" Minha cadela encarava minha mãe, como se dissesse: "Que nada! São apenas gatos!"

            Foi no outono de 1982, quando Meioca fechou os olhos pela última vez. Minha mãe chorou por nós dois, já que eu só fiquei sabendo no final de semana, quando cheguei à nossa casa. Estava na faculdade e, antes de eu abrir o portão, percebi que algo estava diferente. Meioca não me esperava na varanda, como sempre. Também notei um pequeno monte de terra debaixo da goiabeira próxima ao muro. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto, e inúmeras outras fizeram o mesmo caminho. 

       Naquele dia, prometi que jamais teria outro cachorro, tamanha a dor que senti e que me acompanha desde então. Quase duas décadas após, resisti aos apelos dos meus filhos, que tanto me imploraram por um cãozinho. Mantive-me firme até a semana passada, quando minha primeira neta veio até mim: "Vovô, o papai não quer me dar um cachorro. O senhor me dá?"

        Pois é, eis que aqui estou, perto de completar 60 primaveras, com essa caixa na mão, onde uma criatura peluda não para de abanar o rabo. Minha neta vai ter uma surpresa daquelas e, tenho certeza, terá um companheiro inseparável por um bom tempo. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Meioca, a cachorra que me acompanhou por anos" foi publicado por Notibras no dia 28/4/2024.
  • https://www.notibras.com/site/meioca-a-cachorra-que-me-acompanhou-por-anos/