Não fui uma criança fácil e, talvez por isso, tenha tido uma mãe
firme. Não que dona Shirley fosse um poço sem fundo de brutalidade. Na verdade,
mamãe era quase sempre paciente com minhas intransigências infantis, como se
soubesse que a criatura que pariu, apesar de arteira, poderia dar bons
frutos.
Jamais cheguei a postos de destaque, mas galguei alguns degraus
praticamente intransponíveis para os de minha classe, o que me garantiu
conforto melhor àqueles reservados aos meus parentes e amigos. Não que eles
tenham se acostumado com a pobreza, ainda mais porque me parece algo difícil de
acreditar, apesar do falacioso conceito de meritocracia, tão em voga nos nossos
tempos.
Gosto de perceber o cinismo dos herdeiros quando contam suas
lamúrias para terem seu trabalho reconhecido. É cada declaração, que, caso você
não tome cuidado, acaba caindo na ladainha. Sem contar que quem entrevista
esses privilegiados nem ao menos tenta disfarçar a admiração por tamanho feito.
— Como foi sair da sombra do seu pai, o maior
empresário do ramo de laticínios do país?
— Ah, precisei lutar muito para ter o meu talento reconhecido.
Não é fácil enfrentar olhares desconfiados daqueles que imaginam que cheguei
onde cheguei apenas por ser filho do meu pai.
— Meus parabéns! Você fez por onde chegar onde
chegou.
Algumas lágrimas estratégicas seriam
providenciais. Porém, nada como um largo sorriso mais branco do que o que uma
famosa marca de sabão em pó promete. Gente, como deve ser dura a vida desse
povo! Hum!
— Maicon Jaquiçon, você vive reclamando da
vida!
Pois é, essa é a minha irmã, a Uitinei Ruston.
Pelos nossos nomes, você já deve imaginar o nível de pobreza da minha família.
Isso, aliás, é até impeditivo para que alcancemos, por exemplo, um cargo de
chefia. Já pensou, por exemplo, eu, Maicon Jaquiçon Souza dos Santos sendo
entrevistado por aquele mesmo repórter?
— Estamos
aqui com o senhor Maicon Jaquiçon, vencedor do prêmio de melhor gerente de
marketing do ano.
Gente,
fala sério! Até eu iria rir da situação. Quem, afinal, iria prestar atenção na
premiação? Nem se lembrariam, pois Maicon Jaquiçon ficaria martelando nas suas
mentes.
— Você viu o nome daquele cara?
— Maicon Jaquiçon?
— Sim. Como é que alguém coloca um nome desses
no filho?
— E ele era o quê?
— Nem sei. Acho que estava reclamando da falta
de água em Samambaia ou Taguatinga.
Nem me atrevo a reclamar com dona Shirley. A
última vez que isso aconteceu, foi quando entrei na casa dos 25 anos e, então,
a consciência sobre quão esdrúxulo era meu nome me pegou de jeito. E, de supetão,
ousei levantar a voz para minha mãe, que acabara de chegar de mais uma faxina.
— Maicon Jaquiçon, quer gritar? Pois, grite!
Mas grite baixinho, que quero dormir.
- Nota de esclarecimento: O conto "Maicon Jaquiçon e a tal meritocracia" foi publicado por Notibras no dia 16/5/2025.
- https://www.notibras.com/site/e-facil-falar-em-meritocracia-quando-se-nasce-em-berco-de-ouro/
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