quinta-feira, 15 de maio de 2025

Caso extraconjugal

    

 Não percebemos as mancadas quando estamos apaixonados, não notamos a avalanche de pistas que deixamos pelo caminho. Todo mundo sabe, muitos comentam, e cá ficamos como se nosso segredo fosse algo realmente secreto, digno de algum arquivo confidencial do governo sobre alienígenas. Como podemos ser tão ingênuos!?

            José Carlos, o Zeca, para quem conhece o sujeito, certamente atesta que se trata de um espécime com certo charme. Pouco mais de um metro e oitenta, corpo atlético, mas sem exageros, bigode aparado com esmero, sorriso honesto, olhos preguiçosos e uma calva sem o menor resquício de lamúrias. Eis o perfil do então gerente do Banco do Brasil, com seus 50 anos nos idos de 1996, quando não pensei duas vezes antes de cair nos seus braços. 

            Não fui a primeira nem a última a me encantar pelo tipão. Casado que era, Zeca precisava controlar muito bem seus horários. Qualquer deslize, a esposa poderia flagrá-lo de mãos dadas com alguma moça apaixonada. E o sujeito morria de medo que isso acontecesse. Como sei? Ele mesmo me confidenciou enquanto nos recuperávamos de estripulias debaixo dos lençóis de um hotel no centro, bem perto da agência onde trabalhávamos.

            — Zeca, tu não tem medo de ser descoberto por sua mulher?

            — Júlia, minha flor, se a Eliane me pega, tô lascado.

          — Lascado que nada! Se bobear, ela vai ficar ainda mais apaixonada quando descobrir que o marido é o garanhão do banco. 

            — Lascado, sim, senhora!

            — Quer apostar?

            — Apostar o quê, garota?

            — Tô até com vontade de contar pra descobrir. 

            — Tá maluca? Num fala isso nem de brincadeira! A Eliane me mata!

            — Mata, nada!

           Óbvio que nunca toquei no assunto com a esposa do meu amado. Não que não tivesse tido oportunidade, mas fujo de imbróglios como gata escaldada que sempre fui. Já pensou, eu, Júlia Carneiro, na boca do povo? 

            Inocente que era, não percebia a quantidade enorme de bandeiras que dava na época. Até uma pulseira com as iniciais do Zeca não saía do meu pulso. JC, alguém poderia supor, que fosse por conta de Jesus Cristo. No entanto, não estava preocupada com desconhecidos, que, na verdade, nada tinham a ver com a minha vida. O problema mesmo eram os colegas de trabalho.

            — Júlia, não é melhor colocar um outdoor lá fora?

            — Outdoor? 

            — JC, minha amiga?

            — E daí, Sandra?

            — Só falta você querer me dizer agora que não é mais judia.

            Sabe quando você era criança e sua mãe perguntava quem havia comido o bolo de chocolate antes da hora? Ela olhava para seus irmãos, coçava o queixo e torcia os lábios quando, finalmente, percebia a sua boca borrada de chocolate? E você, na certeza de que nada a revelaria, ainda fazia a cara mais inocente do mundo. 

            Aquela pulseira, presente do Zeca no nosso segundo encontro furtivo no mesmo hotel vagabundo, foi o bolo de chocolate que comi escondido. Mesmo assim, não imaginava que todos os outros colegas já soubessem do nosso caso, que, na verdade, durou pouco mais de seis meses. De uma hora para outra, aquele bolo solou.

            O Zeca foi promovido a diretor do Banco do Brasil e nunca mais o vi. Não por causa de rancor, algo que nunca houve entre nós. Foram meras contingências da vida, até que, na semana passada, o reencontrei no supermercado. 

            Quase 30 anos, e o homem continua apresentável ou, então, talvez seja a opacidade dos meus olhos envelhecidos que não me deixa ver com clareza a realidade. Ele me contou que a esposa está bem, os filhos todos criados, três netos. Disse que gosta da vida de aposentado, apesar de sentir falta dos colegas. 

            Antes de nos despedirmos, trocamos telefones, como fazemos quando encontramos velhos amigos. Promessas de marcarmos algo, que geralmente ficam soterradas debaixo de tantas outras prioridades ou, então, do puro esquecimento. Quem sabe, qualquer dia desses, eu acorde com ânimo e coragem para chamá-lo para tomarmos um café? Soube que aquele hotel perto da agência do Banco do Brasil ainda está de pé. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Caso extraconjugal" foi publicado por Notibras no dia 15/5/2025.
  • https://www.notibras.com/site/caso-extraconjugal-no-bb-pode-voltar-apos-30-anos/

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