Para mitigar tanta angústia, travo
infindáveis discussões comigo mesma nos mais improváveis locais. Chega a ser
engraçado, por exemplo, quando estou em reuniões no trabalho, com o gerente
falando sobre as novas diretrizes da empresa, todos os colegas atentos àquela
voz monótona, enquanto minha mente vagueia por caminhos obscuros na vã
tentativa de encontrar a solução do sentido da vida. Será que me faltam
parafusos ou, então, todos estão deveras apertados? Seria o caso de
afrouxá-los?
Maria Rita Oliveira de Araújo, 48 anos,
divorciada, sem herdeiros para sofrer com a desgraçada carga genética que,
certamente, eu lhes transmitiria. Pelo visto, você deve ter percebido que já li
ou, ao menos, conheço a famosa passagem de 'Memórias póstumas de Brás Cubas',
do inigualável Machado de Assis: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma
criatura o legado de nossa miséria."
Por que me divorciei? Simplesmente porque
jamais deveria ter aceitado a proposta de casamento de Álvaro. Não que ele não
fosse um sujeito interessante. Bom emprego, atencioso, amante razoável, nunca
reclamou das minhas constantes enxaquecas. Ademais, até onde me consta, fiel
que nem um perdigueiro.
Pego de surpresa, meu
então marido, a princípio, tentou me dissuadir. No entanto, não tardou, aceitou
de bom grado a separação. A única coisa que me pediu foi ficar com Cauby e
Ângela Maria, o casal de canários que ganhamos do meu sogro no nosso primeiro
ano de casamento.
Álvaro se mudou no
dia seguinte para um apartamento no prédio em frente. Ainda hoje nos falamos,
como se fôssemos velhos conhecidos. Quem não sabe que fomos marido e mulher talvez
imagine que formaríamos um belo casal, ainda mais porque, de vez em quando,
somos vistos sentados no banco debaixo do belo flamboyant às gargalhadas.
A vida é complexa, e procuro me
equilibrar nessa gangorra, que ora pende para um lado, ora para o outro e, não
raro, cisma em girar que nem pião e, não duvide, pode até ser carregada por
redemoinhos, que chegam sem avisar. É uma loucura. Tanto é que nem tento
controlar essas incertezas.
Se estou preocupada
com os rumos da empresa? Hum! Finjo concordar com o discurso do gerente. E, já
no final, ainda digo que estou pronta para colaborar da melhor forma possível,
mesmo não tendo prestado a menor atenção no que foi dito. E, antes de todos
sairmos, ainda elogio o café e os biscoitos servidos. Neste caso, fui sincera.
- Nota de esclarecimento: O conto "Angústias e contradições" foi publicado por Notibras no dia 6/5/2025.
- https://www.notibras.com/site/no-frigir-dos-ovos-salvam-se-os-biscoitos-e-o-cafe/
Nenhum comentário:
Postar um comentário