Ser mulher não é pra qualquer um! Ouço isso desde quando
engatinhava, como se fosse um mantra de sobrevivência. Minha avó, certamente
prevendo os perrengues que eu iria enfrentar, não me poupava das verdades, por
mais duras que fossem, tão comuns neste mundo dominado pelos homens, tão
frágeis em relação à própria masculinidade.
Sabe esse tipo comum que encolhe a barriga e estufa o peito
toda vez que uma mulher se aproxima? Pois é, Julião, meu marido, não perde essa
mania, como se fosse o garanhão sempre pronto para satisfazer os desejos
reprimidos das donzelas aflitas por beijos calorosos, que, na verdade, só
existem na mente deturpada dos homens. Ou seria modus operandi para mostrar algo que nunca foi? Seja o que for, não
estou aqui para falar mal do sujeito que, afinal, é o pai dos meus filhos e...
Não acredito! Pois cá estou eu tentando defender o indefensável.
— Lídia, por mais que você seja diligente, vez ou outra, vai
cair na tentação de passar pano nas bobices do homem por quem se apaixonar.
Meus olhos deveriam parecer de coruja
quando minha avó me falava algo desse tipo. Imatura que era, torcia o lado de
modo desdenhoso.
— Vovó, pode deixar, que não vou deixar homem
nenhum bicar o fubá tão facilmente.
Na verdade, nem sabia de onde eu tirei aquilo.
Bicar o fubá? Mesmo assim, minha avó pareceu gostar da perspicácia da sua única
neta.
— Isso mesmo, Lídia! Mas mantenha os olhos bem
abertos, pois a vida é traiçoeira.
Pois lá estava eu durante uma aula no curso de direito, quando
o professor Paulo levantou uma questão que, até hoje, é mote de discussões
acaloradas não somente no meio acadêmico, como em qualuqer botequim. Sim, estou
falando da dúvida que permeia a sociedade brasileira desde que um certo Joaquim
Maria apresentou ao mundo a sua, talvez, obra mais famosa: "Dom
Casmurro".
— Meus caros, afinal, Capitu traiu ou não traiu?
Diante da arguição do mestre, meus colegas, como verdadeiros
advogados que um dia pretendiam ser, levantaram argumentos diversos.
— É óbvio que traiu, como mostra a enorme quantidade de provas
nas centenas de páginas esplendidamente escritas pelo autor.
— Se traiu ou não, paira a dúvida.
—
Exatamente! E se há dúvida, por menor que seja, como condenar a senhora
Capitolina?
— Mas e a honra? Onde fica a honra?
— Honra de quem?
— A honra do senhor Bento Santiago, ora bolas!
— Hum! Que tolice!
— Tolice por quê, Lídia?
— A honra matou e continua matando muitas
mulheres, meu caro Juvenal.
— Ah, Lídia, daqui a pouco você vai querer me
dizer que a Capitu não traiu o Bentinho com o Escobar.
— Não entendi aonde você quer chegar com tal
afirmação, Juvenal, mas...
— Mas o quê?
— Mas só saberemos a verdade quando alguém
encontrar a versão da senhora Capitolina sobre os fatos. Isto é...
— Isto é o quê, Lídia?
— Isto é se o Joaquim Maria teve coragem de
escrevê-la.
E lá estava eu diante daquela plateia
defendendo e acusando uma personagem de fama duvidosa, mas que continuará sendo
mote de discussões pelos próximos séculos. Defender a senhora Capitolina não é
uma questão pessoal. Na verdade, se ela traiu ou não, isso não importa. Que
tenha traído, então! E daí? Que o Escobar tinha lá seu charme, nem mesmo o
próprio narrador duvidava, tamanha a carga de inveja... Ou seria
admiração?
Sim,
Bentinho provavelmente era apaixonado por Escobar e, por isso, carregava no
peito esses dois sentimentos, que digladiavam constantemente. Admiração, aliás,
pode ser interpretada como paixão, que o senhor Bento Santiago possuía pelo
suposto amante de sua esposa. Não é de se estranhar, portanto, que o narrador
morria de inveja da senhora Capitolina. Afinal, como dizia vovó, ser mulher não
é pra qualquer um!
- Nota de esclarecimento: O conto "Ser mulher não é pra qualquer um!" foi publicado por Notibras no dia 6/4/2025.
- https://www.notibras.com/site/ser-mulher-nao-e-pra-qualquer-um-ja-dizia-vovo-quando-eu-engatinhava/
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