quinta-feira, 24 de abril de 2025

Contos, gostos e filhas

    

    Ainda não cheguei ao ponto de viver exclusivamente de literatura. Nem sei se tal dia chegará, mas realmente não é algo que me atormente. É que o bom de ser escritor é saber que sempre temos uma folha em branco diante da nossa imaginação infinita. 

          Já tive meus recalques, talvez até continue com alguns. Creio que o que mais me incomoda é a divergência de pensamentos de alguns leitores em relação ao que escrevo. Calma, que explico! 

          Após publicar centenas e centenas e centenas de contos e crônicas, além de alguns romances, tenho cá os meus prediletos. É verdade que não consigo memorizar todos, ainda mais porque saem diariamente aqui no Notibras. Entretanto, como disse, gosto mais de uns do que de outros. Talvez, até por isso, alguém poderia dizer que não sou um bom pai, já que os meus escritos, naturalmente, seriam como filhos e, dessa forma, não poderia ter preferências em relação a eles.

          Estive recentemente em Coqueiral-Aracruz, no Espírito Santo, onde passei alguns dias com a Mariana, minha filha do meio. Estávamos conversando no confortável sofá na varanda, quando ela pegou meu aparelho celular. Ela, que nem a minha esposa e a minha filha mais velha, a Ninica, sabe a senha. Para minha surpresa, a Mariana me questionou.

          — Sou a filha que você menos ama, né?

          — O quê?

        — É que a senha do seu celular tem a ver com a Ninica, e a foto da tela é da Malulinha.

          — É, mas com quem estou neste momento?

          A Mariana e eu nos abraçamos demoradamente. Na verdade, das três, ela é a que mais se parece comigo. E não é apenas fisicamente, mas no jeito de ser. Sem contar que somos apaixonados por matemática e temos uma rivalidade antiga no tênis de praia, que é uma modalidade esportiva inventada por nós dois há muito, muito, muito tempo. Inclusive, nossas partidas valem o título de campeão mundial de tênis de praia, quase sempre vencido por ela. 

          Mas estava eu falando sobre literatura e acabei descambando para o lado dos filhos que, no meu caso, são três filhas. Todavia, o que quero dizer é que não apenas tenho, entre tantos textos de minha autoria, alguns favoritos, como possuo um que guardo até em pedestal. Trata-se de um conto, que escolhi para ser o primeiro do meu mais recente livro '57 Contos e crônicas por um autor muito velho', que saiu pela Joanin Editora, e está concorrendo ao importante prêmio Jabuti deste ano. 

          Vou aqui expor um comentário que me é tão caro, pois foi feito por um dos mais notáveis autores do nosso tempo, o Daniel Marchi: "Edu, 'A carta e a urna' é uma das coisas mais sensacionais que já foram escritas em língua portuguesa."

          Ainda me lembro de como surgiu a trama na minha mente. Sentado à mesa do nosso apartamento em Porto Alegre, escrevi 'A carta e a urna' em meros 20 minutos. Devo acrescentar que digito muito rápido. Minha esposa, a famosa Dona Irene, logo percebeu o sorriso bobo estampado no meu rosto.

           — Edu, você tá bem?

           — Leia isto.

          Assim que terminou a leitura, a minha amada me deu um beijo quase cinematográfico, como se estivéssemos correndo na praia e, após alguns rodopios entre as ondas, rolássemos na areia. Já assistiram ao filme 'A um passo da eternidade'? Bem, não sou Burt Lancaster, nem a Dona Irene é a Deborah Kerr, se bem que considero a minha mulher muito mais linda. 

          — Nossa, Edu! Este conto já nasceu um clássico!

          Hum... O que estava dizendo mesmo? Ah, sim! Falava sobre recalques, pois tenho cá alguns poucos. É que, não raro, recebo elogios a respeito de textos que, a meu ver, não são tão bons assim. No entanto, o problema não é esse. O que me causa aflição é quando alguém faz comentários não tão lisonjeiros a algum dos meus contos que me são tão caros.

        — Ah, Edu, que final foi aquele? Não gostei! Por que você deixou o crápula impune?

      Nunca fui indelicado com meus leitores, nem mesmo quando fui ofendido publicamente. Não é papel do escritor ser grosseiro com quem o lê. Isso bem sei, pois, como qualquer leitor, tenho cá minhas preferências. E a Dona Irene, sempre sábia, tem a resposta para minhas angústias.

      — Edu, não adianta tentar controlar o gosto do leitor. Esquece! Isso nunca vai acontecer.

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Contos, gostos e filhas" foi publicada por Notibras no dia 24/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/como-religiao-futebol-e-politica-gosto-do-leitor-tambem-nao-se-discute/

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