É incrível como
muitas coisas que aprendemos na infância ficam para o resto da vida, seja para
o bem, seja para o mal. Minha finada mãe ficava tão brava quando me via parada,
que chegava a revirar os olhos. Ela achava que descanso era sinal indelével de
preguiça, e que carregaríamos isso para sempre. Não à toa, hoje me sinto mal
quando estou espreguiçando na rede da varanda, como se estivesse fazendo algo
errado.
Deve ser por isso que minhas olheiras profundas se destacam no
meu rosto cansado, como se gritassem por férias. Mas como tirá-las, se as vendo
para comprar quinquilharias que nem preciso? É uma compulsão, certamente
alimentada pelas palavras de mamãe, que ainda hoje me grita nos ouvidos.
— Arlete, quando é que você vai jogar essa blusa fora?
— Mas, mamãe, ela é novinha.
— Hum! Pois parece que tem mais de dez anos.
— Comprei há menos de dois meses, mamãe.
Vivi sob críticas, sem tempo de respirar. Lembro que, lá pelos
meus 15 anos, estava eu vendo uma revista com duas amigas na calçada em frente
à nossa casa. Minha mãe chegou de repente e me deu aquela bronca.
— Arlete, por que você não tá estudando ou arrumando a casa?
— Mamãe, já fiz isso tudo.
— Hum! Pois arrume o que fazer agora mesmo! Não quero você de
conversinha na rua.
Laura e Júlia, as minhas amigas, ficaram assustadas e trataram
de irem embora. Elas conheciam bem a minha mãe e, então, preferiram ir para o
final da rua para continuar a leitura. No dia seguinte, encontrei as duas na
escola.
— Você tá bem, Arlete?
— Tô.
— Tá mesmo?
— Tô.
Obviamente que menti para as minhas colegas. Mesmo adolescente,
quando a revolta contra os pais ultrapassa qualquer limite, não me sentia bem em
expor as paranoias de mamãe. É verdade que meu emocional foi pras cucuias, mas
minha mãe jamais me levantou a mão.
Não sei como foi a infância da minha
genitora. Ela jamais se abriu comigo. Filha única que nem eu, perdeu a mãe
pouco tempo depois que nasci. Quanto ao pai, parece que foi embora quando mamãe
ainda era criança. Quanto ao meu, cansei de perguntar sobre ele até que
completei 12 anos. Nunca o conheci.
Deve ser por causa desse histórico familiar
que nunca quis ter filhos. Até os relacionamentos que tive não duraram mais do
que um outono, como se findassem com as perdas das folhas. Se não sequei,
talvez tenha sido pelas raízes profundas.
Conheci Francisco há poucos dias. Nem sei se o namoro, se é que
posso chamar assim o que temos, vá vingar. Seja como for, ele conseguiu me
surpreender logo na nossa primeira noite. Carinhosamente envolveu meu rosto com
suas mãos macias, me beijou na testa e disse:
— Durma sem culpa.
- Nota de esclarecimento: O conto "Culpa de relaxar" foi publicado por Notibras no dia 19/4/2025.
- https://www.notibras.com/site/arlete-que-tinha-mae-como-algoz-parece-enfim-ter-encontrado-sossego/
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