sábado, 19 de abril de 2025

Culpa de relaxar

   

É incrível como muitas coisas que aprendemos na infância ficam para o resto da vida, seja para o bem, seja para o mal. Minha finada mãe ficava tão brava quando me via parada, que chegava a revirar os olhos. Ela achava que descanso era sinal indelével de preguiça, e que carregaríamos isso para sempre. Não à toa, hoje me sinto mal quando estou espreguiçando na rede da varanda, como se estivesse fazendo algo errado.

          Deve ser por isso que minhas olheiras profundas se destacam no meu rosto cansado, como se gritassem por férias. Mas como tirá-las, se as vendo para comprar quinquilharias que nem preciso? É uma compulsão, certamente alimentada pelas palavras de mamãe, que ainda hoje me grita nos ouvidos.

          — Arlete, quando é que você vai jogar essa blusa fora?

          — Mas, mamãe, ela é novinha.

          — Hum! Pois parece que tem mais de dez anos.

          — Comprei há menos de dois meses, mamãe.

          Vivi sob críticas, sem tempo de respirar. Lembro que, lá pelos meus 15 anos, estava eu vendo uma revista com duas amigas na calçada em frente à nossa casa. Minha mãe chegou de repente e me deu aquela bronca.

          — Arlete, por que você não tá estudando ou arrumando a casa?

          — Mamãe, já fiz isso tudo.

          — Hum! Pois arrume o que fazer agora mesmo! Não quero você de conversinha na rua.

          Laura e Júlia, as minhas amigas, ficaram assustadas e trataram de irem embora. Elas conheciam bem a minha mãe e, então, preferiram ir para o final da rua para continuar a leitura. No dia seguinte, encontrei as duas na escola.

          — Você tá bem, Arlete?

          — Tô.

          — Tá mesmo?

          — Tô.

          Obviamente que menti para as minhas colegas. Mesmo adolescente, quando a revolta contra os pais ultrapassa qualquer limite, não me sentia bem em expor as paranoias de mamãe. É verdade que meu emocional foi pras cucuias, mas minha mãe jamais me levantou a mão. 

          Não sei como foi a infância da minha genitora. Ela jamais se abriu comigo. Filha única que nem eu, perdeu a mãe pouco tempo depois que nasci. Quanto ao pai, parece que foi embora quando mamãe ainda era criança. Quanto ao meu, cansei de perguntar sobre ele até que completei 12 anos. Nunca o conheci. 

          Deve ser por causa desse histórico familiar que nunca quis ter filhos. Até os relacionamentos que tive não duraram mais do que um outono, como se findassem com as perdas das folhas. Se não sequei, talvez tenha sido pelas raízes profundas.

          Conheci Francisco há poucos dias. Nem sei se o namoro, se é que posso chamar assim o que temos, vá vingar. Seja como for, ele conseguiu me surpreender logo na nossa primeira noite. Carinhosamente envolveu meu rosto com suas mãos macias, me beijou na testa e disse:

          — Durma sem culpa.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Culpa de relaxar" foi publicado por Notibras no dia 19/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/arlete-que-tinha-mae-como-algoz-parece-enfim-ter-encontrado-sossego/

Nenhum comentário:

Postar um comentário