sábado, 26 de abril de 2025

Dora e o casal de joão-de-barro

        Sem sonhos, sem a mínima expectativa de mudanças, Dora se sentia livre quando entrava no ônibus a caminho de qualquer lugar, fosse para o trabalho, fosse para casa ou até mesmo para uma visita ao irmão, que residia do outro lado da cidade. Era seu momento de abstração da vida, quando deixava-se concentrar em coisas ou situações alheias ao seu mundo repleto de mesmices. 

        Maria das Dores Almeida dos Santos, 55 anos, em processo de separação, três filhos quase criados, um vira-lata, apanhado na rua e, desde então, tratado como se fosse da família. Ou melhor, é da família e, como a mulher costuma dizer para quem quiser ou não ouvir, é o único que realmente a escuta. 

          Entre tantas viagens de idas e vindas, Dora foi testemunha do começo de namoro entre um casal de joão-de-barro. Como assim? Bem, é que a mulher, alheia ao que acontecia dentro do coletivo, olhou através da janela e vislumbrou dois desses pássaros tão comuns pelo Distrito Federal. Um deles, talvez o macho, parecia indeciso, enquanto o outro, certamente a fêmea, com um sorriso no bico, observava o galanteador desastrado. 

          Dora percebeu que passarinhos parecem mais decididos em relação aos rumos da vida, pois, já no dia seguinte, lá estavam aqueles dois na mesma árvore construindo o ninho. Essa rotina durou quase três semanas, o que foi uma surpresa para a observadora: "E pensar que o traste do Gilberto levou mais de mês pra fixar um único azulejo no piso da cozinha."

          Fã dos atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres, Dora passou a chamar seus amigos alados de Nanda e Nando. Pois é, para você ver! Alheios àquela observadora, os passarinhos eram chamados por apelidos, como se íntimos dela fossem. 

          Certa manhã, praticamente dois meses após testemunhar o início do relacionamento entre Nanda e Nando, eis que, para surpresa de Dora, ela observou um movimento incomum no ninho. Curiosa que era, não perdeu tempo e desceu no ponto de ônibus seguinte. Andou até debaixo da árvore e, então, constatou que eram filhotes. 

          A mulher não soube confirmar se eram dois ou três. Quem sabe até quatro? Não importava, já que se sentiu madrinha daqueles bebês. E, ainda que desejando ver de perto os herdeiros da comadre e do compadre, Dora achou por bem deixá-los sossegados. Afinal, quem já teve crianças em casa bem sabe o trabalhão que dá. 

          No final daquele dia, ao passar diante da árvore residencial dos seus quase parentes, Dora se sentiu tão emocionada por poder participar, a seu modo, claro, daquele milagre, que sorriu o sorriso de quem sabe que a felicidade ainda é possível. E, mal chegou à sua modesta casa em Samambaia, foi contar a descoberta para o seu cachorro.

          — Sansão, corre aqui, que mamãe precisa te contar um segredo!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Dora e o casal de joão-de-barro" foi publicado por Notibras no dia 26/4/2025.
  • https://www.notibras.com/site/dora-o-casal-de-joao-de-barro-madrinha-por-afinidade-e-o-segredo/

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