Tem gente que desfaz qualquer negativa dos nossos lábios, e nem
precisa ser do tipo sedutora ou autoridade. No meu caso, uma dessas pessoas é a
dona Rosilda, minha vizinha, que me fez um favor há tanto tempo, que, na
verdade, nem sei direito o que foi. Mesmo assim, toda vez que ela me pede algo,
lá vou eu atendê-la, antes que a culpa se instale sobre minha
consciência.
Pois lá estava eu chegando de mais uma noitada
transportando passageiro para cá e para lá na minha Kombi. Assim que pisei na
calçada, eis que dona Rosilda, com aquele sorriso desprovido de segundas
intenções aparentes, me abordou.
— Bom dia, Maria Lúcia!
— Oi, dona Rosilda! Bom dia.
Sem imaginar que a conversa se esticaria,
caminhei na direção da porta da minha casa, quando ouvi novamente a voz da
mulher.
— Pois é, Maria Lúcia, não sei se devo lhe pedir uma coisa
dessas.
— Que coisa, dona Rosilda?
— Sabe... Bem, você conhece o Rafael e o Júlio, né?
— Sim, claro, os filhos da senhora.
— Pois é, menina, eles estão que não param de me telefonar
aqui.
— Hum...
— Sabe como é, né, Maria Lúcia?
— Só vou saber se a senhora me contar.
— Já que você tá se oferecendo, tem como você emprestar a sua
Kombi pra eles?
Não sei de onde ela ouviu que eu estava oferecendo algo, ainda
mais a minha Kombi. Mas, como dito no início desta história, ainda não consegui
aprender a dizer não para a velha.
— A minha Kombi?
— Isso.
Além de emprestar o meu ganha-pão, ainda teria que ir até os
filhos da dona Rosilda. Onde os homens estavam? Bem, os dois estavam no sítio
da família, que ficava a quase duas horas. Nem entrei em casa, pois dona
Rosilda já foi logo pedindo para que eu abrisse a porta da Kombi, pois fazia
questão de me acompanhar, ainda mais porque eu nem tinha noção de como chegar
ao tal sítio.
Durante o trajeto, tive que escutar a ladainha da dona Rosilda
sobre religião. Justamente eu, que faço questão de me manter o mais longe
possível de qualquer crença, fui obrigada a fazer cara de paisagem até que,
finalmente, paramos em frente à porteira, onde Rafael e Júlio já aguardavam
ansiosos.
— Demorou, hein, mãe!
— Ah, Rafael, a estrada não tava boa.
Pois é, o traste, além de nem me olhar no rosto, ainda quis
pagar sermão para a mãe. Ainda bem que não tenho filhos e, se um dia tiver, não
serei eu tratada que nem capacho. Ah, não mesmo!
Dona Rosilda me puxou para dentro da modesta casa, enquanto os
filhos saíram na Kombi. Devo ter feito cara de desalento ao ver a poeira
levantar, enquanto minha amiga de lata sumia na estrada de chão. Tanto é que a
velha tentou me consolar.
— Vamos tomar um café, Maria Lúcia, que logo, logo os meninos
voltam.
Meninos? Gente, aqueles tais meninos já passaram dos 30 há
tempos! Mas vamos dar um desconto para dona Rosilda, que é mãe e, como boa
parte delas, não consegue enxergar que a cria já virou adulta há mais de uma
década.
Invés de me acalmar, o café me deixou ainda
mais tensa. Afinal, para onde aqueles imprestáveis teriam levado a minha Kombi?
E por que saíram tão apressados? Teriam ido assaltar algum banco?
— Calma, Maria Lúcia! Logo, logo as crianças
estarão de volta.
Devo ter feito cara de espanto. Crianças?
Será que a velha estava caducando? Dois homens barbados daqueles, e a mulher
chamando-os de crianças. Onde já se viu um absurdo daqueles? Disparate maior só
mesmo na Terra do São Nunca.
Dona Rosilda, percebendo que o café não era o suficiente para
aplacar minha angústia, foi preparar bolinhos de chuva. Não é que a danada
conhecia meu fraco por tal quitute, que me transportava para meus tempos de
menina.
— Não sei se você gosta, Maria Lúcia, mas
recheei com rodelas de banana.
— Ah, dona Rosilda, desse jeito vou
engordar.
— Hum! E desde quando você é gorda?
— Se não sou, é porque fecho a boca, dona
Rosilda.
— Hum! Besteira! Vá comendo os bolinhos, que
vou passar mais café.
Sem ter o que fazer, procurei me concentrar
nos bolinhos de chuva recheados com banana. Uma delícia! Até então, desconhecia
as qualidades culinárias da minha vizinha. E a segunda rodada de café ficou
ainda melhor.
Quando me dei conta, o relógio na parede da
cozinha já estava acusando quase meio-dia. No entanto, antes que eu pudesse
praguejar contra os filhos da mulher, eis que ouvi o inconfundível barulho do
motor da minha Kombi. Corri para ver, sendo acompanhada pelos passos lentos da
velha.
— Ah, meninos, até que enfim chegaram!
— Ah, mãe, desculpe. E obrigado por
emprestar a Kombi, Maria Lúcia.
Rafael me entregou as chaves e, então, ouvi um
som estranho vindo do interior da Kombi.
— Que barulho é esse?
— Ah, é a Luciana.
— Luciana?
— Maria Lúcia, Luciana é a porca daqui do
sítio.
— Porca, dona Rosilda? Eles colocaram uma porca
na minha Kombi?
— Não liga, não, Maria Lúcia. A Luciana é porca, mas toma banho toda
semana.
Olhei pro céu, ao mesmo tempo em que Júlio abriu a porta lateral da Kombi, e
logo saiu uma enorme porta malhada. Ela desembestou pelo terreno, como se
libertada da prisão.
Dona Rosilda me disse que a Luciana havia ido para um sítio próximo a fim de
namorar com o Castor, afamado porco da região. E, se a lua de mel desse
resultado, dali a pouco menos de quatro meses, nasceriam os primeiros bebês da
Luciana, que era praticamente da família.
Passei o resto do dia no sítio e, já perto da luz do dia se despedir, dona
Rosilda e eu retornamos para Brasília. E, durante a viagem, constatei que a
velha tinha razão em relação à Luciana. A danada era mesmo cheirosa.
- Nota de esclarecimento: O conto "Como dizer não à dona Rosilda" foi publicado por Notibras no dia 3/4/2025.
- https://www.notibras.com/site/aventura-de-kombi-no-entorno-para-transportar-luciana-a-porca-cheirosa/
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