Não sou rica. Aliás, dinheiro parece ter uma birra comigo há tanto
tempo, que não sei de quem foi a culpa. Seja como for, parece que herdei essa
briga da minha mãe, que herdou da minha avó, que herdou... Herança de família,
às vezes, é algo difícil de se livrar.
Ontem foi um dia lindo demais. Mimei minha filha o máximo que
pude, fiz suas comidas preferidas. À noite, fomos comer hambúrguer. Pois é,
hambúrguer! Isso era algo inimaginável na minha infância. Coisa de gente
endinheirada. Para você ter ideia, a primeira vez que senti o gosto de
hambúrguer foi quando o Carlinhos, rapazola com histórico burguês, me tascou um
beijo numa festinha de São João na rua. Que delícia! Ah, se todos as outras
bocas que passaram por mim tivessem aquele tempero...
Beijei muito prato feito desde então, como se hambúrguer fosse
algo inatingível. Mas, não! No dia do aniversário da minha menina, precisava
mostrar para ela que, mesmo que raramente, pobre tem direito de sentir o
gostinho dessa iguaria.
Queria levar minha garota ao cinema, mas já estava tarde. Na
verdade, o bolso agradeceu e até deu para comprar um bolo de aniversário,
desses com cobertura e recheio. Voltei à minha infância, mas não me senti a
mesma criança que fui. Só fui conhecer o gosto de bolo de rico aos 15 anos,
durante a festa de debutante de Laressa. Ah, Laressa mesmo, não é Larissa, como
é mais comum.
Não estava lá como convidada, mas ajudando minha mãe, que
trabalhava como cozinheira. Em determinado momento, percebeu-se que tinham
contratado poucos garçons e, então, o chefe dos empregados olhou para mim como
se avaliando um produto e disse:
— Menina, você sabe segurar uma bandeja?
E lá fui eu servir aos convidados. A princípio, minhas pernas
tremiam, enquanto meus braços tentavam equilibrar a bandeja carregada de copos
com refrigerante e cerveja. Queria eu servir aquele bolo cheio de andares, que
tinha uma linda boneca no platô. Loira que nem a Laressa, em posição de
bailarina. Gente, e quantas camadas sobrepostas, todo aquele colorido, inúmeros
granulados. Hum, aquilo era um exagero de felicidade!
Pois é, não fui eu que servi o tal bolo logo após todos
cantarem parabéns para a celebridade do dia. A moçoila, além dos inúmeros
presentes recebidos, foi delicadamente convidada para a valsa por seu pai, Dr.
Augusto. De tanto ouvir o nome do afamado advogado, nunca duvidei que Doutor
Augusto fosse nome composto.
Foi apenas no dia seguinte, quando mamãe e eu retornamos para o
casarão a fim de arrumar toda aquela bagunça que, finalmente, pude provar o
bolo. Entre tantos pedaços mordiscados, encontrei um intacto. Provavelmente de
alguma madame de regime. Não tive dúvida e, diante do olhar cúmplice de mamãe,
o levei aos lábios. Lembro-me de que fechei os olhos como se estivesse sendo
beijada pelo John Travolta, que era o crush das garotas
naqueles idos de 1978.
Não sei qual foi o gosto que a minha filha imaginou ao comer
hambúrguer e bolo de aniversário. Talvez um dia ela me conte e, assim, entenda
o porquê da minha paixão pelo astro do filme "Os embalos de sábado à
noite".
- Nota de esclarecimento: O conto "Sabores dos beijos" foi publicado por Notibras no dia 14/4/2025.
- https://www.notibras.com/site/bolo-recheado-provoca-uma-doce-viagem-para-embalos-de-sabado-a-noite/
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