Maria Luiza, pouco antes de assoprar as 58 velinhas no enorme bolo de chocolate, cerrou os cílios negros sobre os olhos argutos. O marido e os filhos observaram a mulher, que, sorrindo, encheu os pulmões e expeliu todo aquele ar em forma de efêmera ventania, o suficiente para apagar as chamas.
O primeiro
pedaço, para surpresa da plateia, foi para a aniversariante. Fernando, o
marido, sutilmente, fez bico com os lábios, talvez não percebido pelos
presentes. A mulher, todavia, sorriu da birra do amado, enquanto lambuzava
dedos e boca com o sabor característico de chocolate.
—
Gente, como isso é bom!
Alguns
sorrisos tomaram conta do ambiente, enquanto Maria Luiza tomou novamente a faca
em suas mãos e partiu outro pedaço. Em seguida, já se saciando com a fatia,
virou-se com os dentes sujos de chocolate.
— Por
favor, sirvam-se!
Ao
esposo coube a tarefa de partir o restante do bolo e servi-lo aos convidados,
que eram quase os mesmos de anos anteriores. A ausência de tia Eulália foi
sentida, ainda mais porque conseguia animar o ambiente com seus causos curiosos
e, muitas vezes, inusitados. Pobre senhora, não resistiu ao enfisema pulmonar.
Como a velha fumava! Não à toa, era chamada de dona Chaminé pelos amigos e
alguns desafetos.
Outra
parenta ausente, Marília, prima quase irmã, finalmente havia resolvido conhecer
as pirâmides do Egito.
—
Vem comigo, Maria Luiza.
—
Hum! Bem que eu queria, mas não tem como abandonar as minhas turmas na
faculdade.
—
Ah, aprova todo mundo e venha comigo, boba!
Maria Luiza adorava o jeito amalucado
da prima, que muitas vezes contrastava com a seriedade que ela levara a própria
vida. Ela casara logo após concluir o doutorado, quando já possuía uma próspera
carreira acadêmica em química. Fernando era seu colega, mas em outra área:
literatura.
O
casal, durante anos, desejou ter um filho, ideia que foi adiada por pouco mais
de uma década. Quando a mulher engravidou, bateu aquela insegurança, que foi
transformada em desespero já na primeira consulta com a obstetra: gêmeos.
Apesar dos percalços da
maternidade, que vieram em dobro, Maria Luiza até que se saiu bem. Fernando
parece ter sido o mais afetado, pois levou um tempo para perceber que aquele
fardo também lhe pertencia. E, entre uma briga e outra, o casal conseguiu
superar as barreiras, e a cria cresceu praticamente sem traumas.
Pois é, a
aniversariante, enquanto recolhia com os dedos o resquício de cobertura no
guardanapo, observou os presentes. Não tardou, seu pensamento foi transportado
para os tempos de criança, quando corria serelepe pelas areias de uma das
praias gaúchas. Que sonhos aquela garotinha sonhava? Será que ainda havia
resquícios daquela menina em Maria Luiza?
Fernando, percebendo
o semblante diferente na esposa, se aproximou. Passou o braço pela cintura da
mulher e a beijou na face. Ela sorriu e abraçou o companheiro.
— Maria Luiza, sabia que às
aniversariantes é reservado um pedido especial?
— Hoje não quero
nada além do que recordações, meu amor.
- Nota de esclarecimento: O conto "A aniversariante e as recordações" foi publicado por Notibras no dia 2/4/2025.
- https://www.notibras.com/site/aniversariante-do-dia-guarda-data-para-recordacoes/
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