Não
cheguei a ser caixeiro-viajante, mas rodei muito por boa parte deste país. E
foi justamente por uma dessas andanças que cheguei a um vilarejo mais colado ao
Distrito Federal do que carrapato em orelha de cachorro. Isso em 1959, quando
aqui ainda era Goiás, mas faltava um tiquinho assim para se tornar a capital do
Brasil.
Para
não causar imbróglios desnecessários, devo dizer que era solteiro do tipo que
nem imaginava que um dia fosse encontrar a minha Aurora. Todavia, isso é outra
história e não tenho certeza de que seria capaz de abrir o coração para
estranhos que nem você que está me lendo. Não me interprete mal, mas vá que
você veja maldade onde não existe e, pior, não seja daqueles afeitos a guardar
segredo.
Pois lá estava eu com meus 21 anos, quase 22, pois sou dos
nascidos no mês sete. Fica a seu critério decifrar se sou canceriano ou
leonino. Se bem que, percebo pelo olhar, talvez seja mais afeito a búzios ou,
não duvido, tarô. E não pense que esteja eu divagando para não lhe contar de
vez, já que isso que lhe digo tem a ver com o ocorrido.
Mal
cheguei ao tal vilarejo, fui acometido por uma constipação, que cheguei a me
compadecer de mulher na hora do parto. Que sofrimento doido foi aquele, até
hoje me pergunto. Por sorte ou predestinação, uma senhora de olhos amarelados,
que tinha em mãos um baralho de cartas visionárias, percebeu o meu entra e sai
do banheiro da única pensão do local.
— Na primeira vez imaginei que fosse caganeira; na segunda, a pulga
se instalou atrás da orelha. Mas a quinta me deu a certeza de que é mesmo
bosta-empedrada. Ademais, as cartas não mentem.
Encarei a velha e supliquei para que ela tivesse uma solução para
o meu problema. E, para meu alívio, possuía. Não vou entrar em detalhes aqui,
mas afirmo, com a certeza de quem voltou a ver a luz no fundo do túnel, que o
trem, até naquele instante desencarrilhado, voltou aos trilhos e seguiu seu
caminho natural. E olha que nem quero fazer trocadilho com assunto tão
alarmante.
Problema resolvido, ainda fui orientado a tomar um chá de ervas,
que até hoje carrego uma porção no bolso. Nunca mais tive problemas dessa
natureza. Entretanto, não se apresse, pois o causo que quero lhe falar não é
esse.
Dona Lúcia, a alma caridosa que me arrancou tamanho sofrimento,
era proprietária da pensão. Mulher de visão, possuía algo mais rentável, que
lhe garantia fazer viagem até de avião para o Rio de Janeiro, onde se hospedava
no afamado bairro de Copacabana. Como soube disso? Bem, desde cedo, minha mãe
me ensinou a tratar todos com respeito e, principalmente, aqueles que apaziguam
nossas aflições. E lá estávamos dona Lúcia e eu proseando enquanto dividíamos
uma garrafa de cerveja.
— Geraldo, você é um rapaz vigoroso. E do jeito que é parrudo,
estou certa de que a testosterona está lá nas alturas.
Enquanto dona Lúcia falava, comecei a imaginar que ela queria que
eu lhe pagasse pela ajuda de modo pouco incomum. Mas eis quão tolo estava eu,
já que a mulher queria me propor emprego. Mas não na pensão, e, sim, no outro
estabelecimento, que ficava na extremidade oposta do vilarejo.
Sem poder dizer não, aceitei e, já na noite seguinte, fui levado
pelas mãos de dona Lúcia para conhecer o local. Nenhuma placa, mas havia um
sinal claro logo na entrada que não deixava dúvida qual era o ramo da casa: uma
luz vermelha. E, mesmo aparentando certo desconforto, entrei no recinto, onde,
atrás do balcão de bebidas, era possível ver um grande quadro com os dizeres:
"Aqui você não precisa morrer para ver o paraíso."
Talvez você esteja se perguntando se aceitei ou não o emprego de
leão de chácara. Digo-lhe, sem qualquer sentimento de orgulho ou
arrependimento, que trabalhei para dona Lúcia até abril de 1964, quando decidi
mudar de ramo, justamente quando o país começou a viver anos de chumbo, e a
poesia, por muito tempo, foi deixada de lado.
- Nota de esclarecimento: O conto "O diário de Geraldo" foi publicado por Notibras no dia 23/8/2025.
- https://www.notibras.com/site/o-diario-de-geraldo/
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