sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Parece mentira, mas é (quase) verdade

   

         Apesar das vestes surradas, Lúcia percebeu certa dignidade por detrás da barba grisalha daquele sujeito. Se lhe colocassem um terno de corte fino, certamente o confundiriam com um tipo respeitável do lugar. Devia ter pelo menos 60 anos, se bem que mendigos geralmente aparentam idade muito acima da real. Seja como for, era plausível que o homem já tivesse ultrapassado a barreira dos 50.

          — Bom dia!

          — Bom dia, senhora!

          — Me chame apenas de Lúcia. Como se chama?

          — Pedro, mas todos me conhecem como Pedoca.

          — Prefiro Pedro.

          Ele encarou aquela mulher, mas, antes que pudesse dizer algo, ela continuou.

          — Sorria.

          — O quê?

          — Sorria! 

          — Sorrir do quê, senhora?

          — Lúcia!

          — Lúcia.

          — Quero ver os seus dentes.

          — Por acaso você é dentista?

          — Não! Mas quero te propor um trabalho.

          — Que tipo de trabalho?

          — Preciso ver seus dentes pra ver se você serve.

          Sem alternativa, Pedro sorriu, enquanto Lúcia o observou com atenção.

          — Muito melhor do que eu supunha. Você começa hoje.

          — Mas o que vou fazer, dona?

          — Lúcia!

          — Que seja! Lúcia, o que vou fazer?

          — Acompanhe aquela mulher, que precisamos dar um trato nessa sua aparência. 

          — Olha aqui, Lúcia, não vou sair daqui até que eu saiba do que se trata. 

          Lúcia franziu a testa, não estava acostumada a ser desafiada, pelo menos não por gente daquele tipo. Sorriu, retirou duas notas graúdas de dentro da bolsa e as entregou ao moribundo, que não teve escolha a não ser aceitá-las de bom grado. 

          — Pode ficar tranquilo, Pedro. Você não vai ser preso. Pelo menos, não por isso. Agora vai. Conversaremos no final da tarde.

          O antigo relógio na parede já havia passado das dezessete horas quando Pedro, levado pelas mãos de Clarice, adentrou o escritório de Lúcia. Esta observou por alguns instantes o agora mais do que apresentável ex-maltrapilho.

         — Como sempre lhe digo, Clarice, nada como um banho de loja pra transformar um sapo em príncipe. 

            Pedro não sabia se ficava feliz ou contrariado por tal comentário. Sapo? Bem, ele sabia que, desde que foi viver nas ruas, sofreu certa metamorfose em virtude da precariedade de recursos. Todavia, sapo lhe pareceu ofensivo demais até para ele, tão acostumado com impropérios vindos de todos os lugares. Mesmo assim, preferiu se calar a criar imbróglios desnecessários, ainda mais porque Lúcia lhe entregou uma carteira de couro com uma boa quantidade de dinheiro.

            — Vamos, que já estamos atrasados. 

            — Ir pra onde, Lúcia?

            — Eu te explico no caminho. Aliás, quem paga a conta hoje é você.

            Pego de surpresa, Pedro colocou a mão no bolso, mas não teve ímpeto de descobrir a quantia que acabara de receber. Não se preocupou se seria suficiente, mesmo porque estava com moral elevado, já que passara por uma verdadeira transformação. Até riu, pois percebeu que acordara sapo, mas que agora, banho tomado, cabelo cortado, barba aparada e estômago saciado, mesmo que não tivesse se transformado em um príncipe, poderia entrar em qualquer recinto, que seria prontamente aceito como um igual. Ou quase.   

          No banco de trás do automóvel de luxo, Pedro sentiu o frescor vindo do ar-condicionado. Ajeitou a gravata, quando, então, foi puxado de volta de possíveis devaneios.

          — Pedro, estamos indo ao casamento da sua filha.

          — Filha? Não tenho filha.

          — Agora tem. O nome dela é Isabela. E o seu, pelo menos por esta noite, é Jorge Araújo. Consegue memorizar?

          — Consigo. Mas por que isso tudo? Posso saber?

          — Pode, claro! Afinal, você é o pai da noiva.

          Lúcia revelou que Isabela, sua ex-funcionária, que trabalhou como acompanhante durante quase cinco, havia tirado a sorte grande. A mulher iria se casar com um dos mais cobiçados herdeiros de Brasília, o jovem Rafael Bustamante. O casamento, no entanto, seria com separação total de bens, que era cláusula inegociável da contratante.

          — Sei que não é da minha conta, mas quem é a contratante?

          — A mãe do noivo.

          — Do jeito que essa mulher é esperta, não duvido nada que logo, logo descubra esse esquema.

         Lúcia deu uma sonora gargalhada diante da observação do homem. 

            — Você não tem medo dessa mulher descobrir?

            — Meu caro, ela que planejou tudo. Eu apenas estou tentando fazer com que tudo pareça crível. 

           O veículo estacionou em frente a um prédio na Asa Norte e, não tardou, surgiu Isabela. Ela tomou o lugar de Pedro, que passou para o banco da frente. 

            — Lúcia, que pai bonitão você me arrumou!

            — Fiz o melhor que pude, Bela.

          Pedro não deixou de notar como Isabela, a Bela, era realmente linda. Poucas vezes em seus 58 anos havia se deparado com uma mulher de beleza tão estonteante. 

            — Lúcia, se eu serei o pai da Bela, quem será a mãe?

            — Morreu.

            — Ah, desculpe. Não sabia.

            Nova gargalhada de Lúcia, agora acompanhada de uma da noiva.

            — Lúcia, você não tem jeito mesmo. 

            — Hum! Quer contar? Então, conte você!

            — Minha mãe é viva. Aliás, vivíssima, e cheia de saúde. Mas ela, como posso dizer isso, não se encaixa no perfil de mãe da noiva de um homem rico. Você me entende?

          Pedro percebeu que todo aquele teatro havia sido muito bem ensaiado, apesar do seu papel, certamente pensado detalhadamente por Lúcia, seria desempenhado por um ator principiante. Assentiu com a cabeça, enquanto ouviu os últimos detalhes sobre a peça que, não tardaria, iria ser encenada. 

         O casamento foi um acontecimento na capital do país. Várias personalidades locais compareceram. Pedro ficou surpreso com a própria atuação. Mas havia algo que não entendia. Por que, afinal, a agora sogra de Bela a havia escolhido para se casar com o filho? Certamente não faltavam pretendentes com um passado menos nebuloso.

          Deitado na confortável cama de um hotel na área central de Brasília, Pedro olhava para o teto. Parecia que estava vivendo um sonho, pelo menos naquele dia, quando acordara como há tantos anos sob a marquise do comércio local. Foi quando surgiu na porta do banheiro Lúcia, que, após se amarem, resolveu lhe revelar toda a história.

            Eleonora, mãe de Rafael, queria proteger a reputação do filho, que já andava na boca do povo. E, em comum acordo com a cria, foi decidido que um casamento seria o mais apropriado para sepultar de uma vez por todas qualquer fofoca. Que continuasse a viver a própria vida da melhor maneira, mas com discrição. E que o casal tivesse um herdeiro.

            — Tá, entendi, Lúcia. Mas por que a Eleonora escolheu justamente a Bela.

            Lúcia soltou mais uma das suas gargalhadas e, então, revelou.

          — Pedro, meu querido, a Bela é amante da Eleonora há quase dois anos. E ela a queria por perto, mesmo que na condição de nora.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Parece mentira, mas é (quase) verdade" foi publicado por Notibras no dia 15/8/2025.
  • https://www.notibras.com/site/parece-mentira-mas-e-quase-verdade/

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