E o Santana, cuja aposentadoria parece que vai sair no próximo
ano, arranjou um bico justamente na igreja que fica bem perto da delegacia. O
agente de polícia, que conheceu o pastor nos tempos de menino, foi convidado
para ajudar no bingo, que acontece invariavelmente nas noites de sexta-feira. O
problema é que, não raro, o policial precisa dar as famosas escapadas do
plantão para cumprir seu turno na paróquia.
Imagine você a cena quando o Santana,
diante do colega Ricky Ricardo, chefe do plantão, tentava inventar mais uma
desculpa, que, obviamente, não colava, ainda mais porque este já estava mais do
que ressabiado com as artimanhas do gorducho. Outro que não engolia aquela
lorota era o Pedrito, que, apesar de não tão antigo na corporação, há meses não
caía nas lorotas do mais notório procrastinador da delegacia de Sobradinho.
Se o Ricky não era tolo, também queria se ver
livre daquela ladainha sem tamanho e, por isso, fingia que acreditava. Nem se
dava ao trabalho de escutar o Santana. Virava-se de costas e, com a mão
esquerda sacudindo acima da cabeça, dizia:
— Tá, bom, Santana! Vá lá resolver as suas
broncas, que o Pedrito e eu ficaremos aqui para combater o crime.
Não que houvesse algum delito em andamento,
pelo menos ninguém havia noticiado um. Seja como for, a inutilidade do Santana
era tão conhecida, que o ambiente até ficava descarregado quando ele se evadia.
Assim que estava saindo da delegacia, Santana foi questionado
pelo delegado Rupereta, que queria saber aonde iria o preguiçoso.
— Ah, doutor, vou dar um pulo em casa, pois esqueci de colocar ração pro
cachorro.
— Cachorro? Não sabia que você tinha um cachorro.
— Agora tenho.
— E qual é a raça?
— Raça? Ah, é desses comuns.
Sem querer prolongar a conversa, o delegado
foi jogar paciência no computador, enquanto o escrivão Gilmarildo se emocionava
com as poesias do livro 'A verdade nos seres', do Daniel Marchi. Ele, em
momento de devaneio, se imaginava poeta e, caso o talento não fosse suficiente,
venderia coco na praia.
Mal chegou à igreja, Santana percebeu que o local estava apinhado de fiéis. O
policial, apesar de ser péssimo em matemática, calculou que devia ter no mínimo
umas 200 pessoas, quase todas com cartelas sobre as mesas dispostas pelo pátio.
O pastor, assim que avistou o agente, o chamou.
— Demorou, hein!
— Tive que prender dois ladrões de carro, além de dar apoio em uma
investigação de homicídio.
— Sério?
— E eu lá sou homem de mentira, Olegário?
Obviamente,
o religioso sabia que Santana não era amigo da verdade, mas preferiu aceitar as
desculpas, mesmo porque o público estava ansioso para que o bingo começasse. O
prêmio principal da noite era um frango assado e um garrafão de vinho barato.
Os demais não passavam de bijuterias e frascos com água benta, que, na verdade,
vinha da torneira do banheiro. Que fosse, já que o que importa mesmo é a
fé.
Olegário, microfone na mão, anunciou que o bingo, finalmente, teria
início. Foi aquela algazarra, até que, aos poucos, o público foi se acalmando.
No entanto, a cada número anunciado, a plateia se dividia entre gritos de
euforia, reclamações e, não raro, alguns palavrões ditos em pensamento. Que
Deus os perdoasse, pois aquelas falhas eram por uma boa causa.
Nas próximas três horas, os ganhadores sorriam, os que não tiveram a
mesma sorte apostavam que na próxima sairiam vitoriosos e, então, quase todos
conviviam em aparente harmonia. Todavia, eis que a discórdia se instaurou
justamente no instante em que a última pedra foi cantada.
— Trinta e três!
— Ganhei! Ganhei! Ganhei!
— Não pode ser, Aurora. Eu que ganhei.
— Hum! Pois eu duvido, Laura!
Cartelas
devidamente conferidas, constatou-se que as duas mulheres eram as vencedoras. O
problema é que nenhuma das duas queria dividir o prêmio. E não adiantaram as
ponderações do pastor Olegário, já que as fiéis pareciam determinadas a ficar
com o frango e o vinho. Não tardou, uma desferiu uma bofetada na outra, que
respondeu em seguida. E lá foram as duas rolarem no chão, enquanto a multidão
tentava apaziguar os ânimos.
Não se sabe quem foi, mas alguém telefonou para a delegacia e, poucos
minutos depois, lá estavam os agentes Ricky Ricardo e Pedrito na igreja. Ânimos
ainda exaltados, as duas brigonas foram conduzidas à delegacia quando, então,
alguém percebeu que o prêmio da discórdia havia desaparecido. Procura daqui,
procura dali, nem sinal.
Quase duas horas depois, o delegado Rupereta conseguiu apaziguar a
contenda entre Aurora e Laura. As duas mulheres se despediram da autoridade
policial e, ainda envergonhadas pelo papelão, saíram da delegacia de mãos
dadas como velhas amigas. Mais alguns minutos se passaram quando, então,
apareceu o Santana caindo pelas tabelas de tão bêbado e arrotando aquele fedor
azedo de frango assado parcialmente digerido.
— Você está bem, Santana?
— Ô, doutor, não sei por que fui arrumar um gato. Eita, bicho pra
dar trabalho.
— Gato? Ué, mas não era cachorro?
- Momento Cultural: O conto "Santana e o bico no bingo" foi publicado por Notibras no dia 20/8/2025.
- https://www.notibras.com/site/santana-e-o-bico-no-bingo/
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