Foi mais ou menos
nessa época que vi minha avó pela última vez. Melhor, com vida, já que, dois ou
três meses após, a encontrei no próprio velório repousando dentro de um caixão,
com o semblante não aparentando resquícios de culpas. Não que fosse livre de
pecados, mas vivera sob a própria pena, como se poetisa fosse, apaixonada por
suas lutas, a despeito de opiniões de outrem, contrárias e, não raro,
agressivas.
Adelaide Fuoco, a dona Lalá, nunca se deixou
intimidar por bravatas, que tentavam impor regras e tradições ao seu modo de
pensar. Pelo contrário, eram os valentões que se acovardavam diante daquela mulher
de pouco mais de metro e meio. Por conta disso, cresci ouvindo familiares e
amigos dizerem que vovó enfrentou o que viesse pela frente com um pé nas
costas.
Vovó tinha um ditado que ainda guardo como
lema de vida. E era dito com certa frequência, talvez para que os mais novos
não se deixassem cair nas tolices ditas por indivíduos sem muito tutano:
"Por mais que você seja diligente, não vai conseguir impedir que todos os
imbecis se aproximem."
Talvez por ironia do destino, tia Márcia tenha
se casado justamente com Marcos, cuja inteligência parecia destoar da beleza. É
verdade que o casório não durou mais do que meia década, mas o suficiente para
me fazer entender que, não raro, coisas aparentemente coerentes são meras
bobagens ditas e repetidas como dogmas.
Vovó, tia Márcia, o marido e
eu estávamos a caminho do circo, quando, antes de entrarmos no automóvel, um
mendigo pediu alguns trocados. Tio Marcos tentou afastar o homem, mas minha avó
tratou de retirar uma nota de cinco reais e a entregou para o pedinte, para
desgosto do esposo da filha. E, assim que estávamos acomodados no veículo, ele
não conseguiu ficar calado.
— Dona Lalá, a senhora sabe que fez besteira, né?
— Besteira? Como assim, Marcos?
— Ué, a senhora deu dinheiro pra aquele vagabundo.
— E você conhece aquele homem?
— Não!
— Hum! Não conhece e sabe que ele é vagabundo?
— E é o quê, então?
— Não sei, mas você parece que sabe de tudo.
— Dona Lalá, vou te falar uma coisa. Aquele tipo vai pegar
o dinheiro que senhora deu e vai comprar drogas e se embebedar.
— E daí?
— E daí? A senhora ainda me fala e daí?
— Marcos, aquele homem é adulto e vai fazer o que tem
vontade com o dinheiro que dei pra ele. Se ele vai comprar pão, cerveja ou
rasgar o dinheiro que dei, isso não é problema meu. As pessoas fazem o que
quiser com os recursos que conseguem. E é assim que a vida é.
- Nota de esclarecimento: O conto "Dona Lalá e os imbecis que nos rodeiam" foi publicado por Notibras no dia 19/8/2025.
- https://www.notibras.com/site/dona-lala-e-os-imbecis-que-nos-rodeiam/
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