Com uma carga de 70 anos acima da dos
pequenos ao meu redor, convidei-os a entrar na imaginária máquina do tempo que
criamos em forma de rede presa aos ganchos na parede e numa das vigas que
sustenta o teto. A cada balançada, regredíamos um ano até chegar a 1954. Nessa
época, corria descalço pelas ruas de paralelepípedos cercadas de casas
coloridas. Uma topada aqui, outra acolá, joelhos esfolados, a pele precisava
engrossar rapidamente.
Aos 8 anos, meus pés eram como cascos. Os
espinhos precisavam ser firmes para feri-los. Hoje, depois de tantos e tantos
anos de meias e sapatos, eles se rasgam que nem papel fino. Se estou descalço,
até o felpudo tapete da sala me causa cócegas.
Não gostava de pipa, mas cansei de correr
atrás das que, linha cortada, voavam ao bel-prazer do vento. Se caísse sobre
uma árvore ou o telhado de alguma casa, era ligeiro que nem macaco-prego. Mas
se a danada se enganchasse em fiação de posto de energia, nem chegava perto.
Minha, de tanto me contar de gente eletrocutada, me fez ficar bem longe. Até
hoje, quando ando pelo bairro, basta olhar para cima e ouço a voz da mamãe:
"Reinaldo, se eu te pegar metido com fio, você vai ter aquela conversa com
seu pai!"
O pavor de tomar taca de papai era maior do
que levar choque e cair durinho. Cresci temendo meu pai, até que, lá pelos 45
anos, tive coragem de perguntar para meu velho quantas vezes ele havia tido as
tais conversas comigo. Mamãe, que estava ao lado com minha esposa, começou a
rir. Fiquei sem entender aquela reação, mesmo porque, talvez traumatizado pelas
surras tomadas, não conseguia me recordar de nenhuma.
— Conversa? Que conversa, Reinaldo?
— Lúcio, ele está perguntando das vezes que
você bateu nele.
— Bater? Como assim? Nunca levantei um
dedo pros meus filhos. Sempre fui totalmente contrário à violência, você sabe
muito bem disso, Áurea.
Incrédulo com tal revelação, levei algumas
semanas para digerir aquilo tudo. Seja como for, percebi que mamãe quis me
proteger de um perigo, que, afinal, era real. Mães, de vez em quando, agem
assim. Creio que, a partir de então, ficamos mais próximos. E, qualquer coisa
que eu aprontasse, ela se virava para mim e falava: "Reinaldo, seu pai já
está chegando para ter aquela conversa com você!"
- Nota de esclarecimento: O conto "Mamãe e a conversa com papai" foi publicado por Notibras no dia 18/5/2024.
- https://www.notibras.com/site/mamae-e-a-conversa-que-nunca-teve-com-papai/
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