domingo, 19 de maio de 2024

A futilidade mora ao lado

    

            Não se pode dizer que a amizade seja algo que se inicia apenas por virtudes, sentimentos nobres, honrarias e todas aquelas bobagens que, creio, estamos cansados de ver em películas hollywoodianas. Tanto é que, não raro, ela pode acontecer por conexões nada dignificantes, ou seja, bem mais próximas à realidade da natureza humana. 

           Apolo, rapaz boa pinta, desses que atraem olhares dos mais diversos tipos, ora desejos, ora da mais pura inveja. Por conta de tamanha beleza, era mais do que óbvio que ele se achasse o último biscoito do pacote, como precisam ser esses raros espécimes nascidos gêmeos de Adônis. Poderíamos afirmar, sem sombra de proferir qualquer blasfêmia, que o gajo não andava, mas flutuava sobre a esburacada calçada daquele bairro tão afamado por tanta miséria. 

           Por uma dessas coincidências raríssimas, mas que acontecem a todo instante, eis que, naquele mesmo bairro, morava um outro rapaz, cuja beleza também se destacava das demais. Era um deus nos acuda para suportar tanta perfeição num só ser. Seu nome? Pois é, nada mais apropriado do que Adônis, nome escolhido pela mãe, certa de que o filho seria, de fato, a maior criação da natureza desde que inventaram a empadinha de camarão. 

           Não se sabe ao certo como isso aconteceu, mas aconteceu, como são testemunhas os milhares de moradores daquela região. É que Apolo e Adônis jamais haviam se esbarrado até aquele fatídico dia, quando ocorreu uma aglomeração por causa de gravíssimo acidente envolvendo dois ciclistas não muito atentos. Quem eram? Justamente aqueles dois espécimes superiores da raça humana. 

           Como consequência daquela colisão, os dois rapazes tiveram lesões gravíssimas: cada um precisou tomar dois pontos no dedo mindinho da mão esquerda, justamente a mais próxima ao coração. Seja como for, após serem socorridos ao hospital da região, Apolo e Adônis, talvez pelo infortúnio comum, tornaram-se amigos quase inseparáveis. 

          Se um estava no bar da esquina, certamente o outro lhe fazia companhia. Se a praça tivesse a sorte de contar com a presença do Apolo, lá estava o Adônis elevando ainda mais a beleza do local. Tanto é que o ocorrido que foi presenciado pela avó de uma amiga se deu bem ali naquele banco ao redor do parque onde as crianças sobem a escada e se esbaldam com a descida no escorregador, balançam de lá para cá nos balanços, correm cheias de energia não se sabe de onde. 

        Lá estava a vovó da minha querida Grace, uma quase irmã, na companhia de velhas amigas, todas já passadas dos 70 anos, quando avistaram Apolo e Adônis desfilando pela mais famosa praça do bairro. Laura, a mais ingênua do grupo, enalteceu a amizade de tão belos rapazes. Nisso, a Gertrudes, que dizem ter fama de mal-humorada, não perdeu a oportunidade de rebatê-la.

    — Pois é, um gambá conhece o cheiro do outro.

  • Nota de esclarecimento: O conto "A futilidade mora ao lado" foi publicada por Notibras no dia 19/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/apolo-e-adonis-belos-exalam-odor-de-um-gamba/

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