Não que o homem sentisse ter
poderes de invencibilidade e pudesse enfrentar o mundo. Não! Nesses
momentos, Bartô se sentia livre das obrigações. Nada de contas para pagar, nada
de acordar cedo para ir para o trabalho. Tanto é que, esses momentos eram
vividos, entre a noite de sexta-feira e o domingo, no interior do quarto-e-sala
que o homem dividia com ninguém. No dia seguinte, todavia, a conta vinha alta
na forma de ressaca.
A semana se arrastou, como se
testando os nervos do Bartô. Clientes dos tipos chato e muito chato tomaram-lhe
quase toda a paciência, sem falar no chefe, cada vez mais exigente. Quanto ao
salário, apesar de não ser dos melhores, dava para os gastos.
Sexta-feira! Último cliente
atendido, derradeiro minuto no emprego. Bartô olhou o relógio e pimba! O homem
acabara de ganhar o salvo-conduto. Tratou de sair daquele martírio antes que o
patrão o intimasse para reunião de última hora.
Já na calçada, o sujeito foi
em direção ao mercado, mais por hábito do que necessidade. Pegou um pacote de
macarrão, molho pronto e duas latas de sardinha. Passou diante da prateleira de
bebidas, onde suas pupilas dilataram. Olhou os preços, percebeu que a cerveja
favorita estava na promoção. Resistiu.
Na fila do caixa, pensou em
retornar para o corredor e pegar a bebida. Travou uma batalha entre o desejo e
a promessa, até que, já decidido a buscar ao menos algumas latas de cerveja, a
moça do caixa o despertou: "Senhor, é a sua vez!"
Bartô, sentado no sofá, já
havia rodado por todos os canais da televisão. Nada o atraía naquelas
programações. Foi até a cozinha e vasculhou a geladeira em busca de uma cerveja
esquecida no fundo da gaveta. Nenhuma sequer, a não ser uma garrafa de água com
gás. Tomou um gole e sentiu as bolhas querendo fugir pelas narinas.
O homem foi se deitar, mas a
cama lhe pareceu um enorme espaço vazio. Passou a noite toda rolando de um lado
para outro, até que, sem se dar conta, adormeceu. Não teve pesadelos, mas
sonhou que estava sentado diante de uma praia, com as ondas lambendo seus pés.
O dia estava ensolarado e convidava para tomar aquela gelada.
Bartô despertou decidido a
tomar uma cerveja. Olhou ao lado, mas só encontrou a garrafa de água com gás
pela metade. Que se dane promessa de não mais beber. Iria comprar uma lata de
cerveja, apenas para saciar aquele desejo incontrolável. Que fossem duas ou
três, não importa.
Lavou o rosto, colocou uma
bermuda e uma blusa, calçou o chinelo, pegou a carteira e foi em direção ao
mercado. No caminho, foi abordado por um homem segurando um filhote de
cachorro.
— Pastor alemão legítimo!
Bartô tentou se desvencilhar,
mas o tal homem insistiu.
— Cinquenta reais.
— Não estou interessado.
— Faço por 30.
— Não quero cachorro.
Bartô, finalmente, livrou-se
daquela situação. Já na porta do mercado, virou-se para o vendedor, quando seus
olhos fitaram os do cachorro. Sentiu impulso de voltar, mas desistiu. Já em
frente à prateleira de cervejas, percebeu que a sua preferida continuava na
promoção. Pegou duas caixinhas com seis. Foi em direção à fila do caixa, mas
algo o incomodava.
— Senhor, é a sua vez!
Bartô olhou para a moça do
caixa e, naquele instante, percebeu que precisava fazer algo. Deixou as
cervejas no chão, pediu desculpas para a atendente e saiu correndo do mercado.
Algumas pessoas da fila comentaram que aquele lá devia ser mais um dos tantos
malucos neste mundo. Outras riram.
Esbaforido pela corrida,
Bartô abordou o homem do cachorro.
— Quanto é mesmo esse bicho?
— Cinquenta reais.
— Você disse que fazia por
30.
— Então, faço 30 pro senhor.
Bartô abriu a carteira e só
encontrou uma nota de 10.
— Tenho isso.
O vendedor olhou para a
cédula na mão de Bartô, olhou para os lados, balançou a cabeça, mas acabou
aceitando a oferta. Pegou os 10 reais, entregou o cachorro, que de pastor
alemão não tinha nem a sombra, dobrou a esquina e sumiu.
Com o cachorro nos braços,
Bartolomeu Pinto Cavalcante se sentiu arrependido por seu impulso, ainda mais
porque aquele ser minúsculo parecia ter vindo do esgoto. Que fedor! Sem coragem
de jogá-lo à própria sorte, levou-o para casa, onde precisou gastar um frasco
inteiro de xampu para deixar o animal com um cheiro agradável.
— Cheiroso!
E foi esse o nome dado para
aquele pequeno ser, que logo se transformou num grande cachorro, não apenas em
tamanho, mas em amizade. Bartô ainda luta contra a vontade de embebedar, mas
tem resistido. Tanto é que, assim que acorda, não esquece de trocar algumas
palavras com o Cheiroso.
— Que bom que a gente está se
vendo. É sinal de que estamos vivos.
- Nota de esclarecimento: O conto "Bartô, a bebida e o cachorro" foi publicado por Notibras no dia 29/5/2024.
- https://www.notibras.com/site/barto-resiste-ao-vicio-e-troca-bebida-por-cachorro/
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