Aos 73, acabou se mudando
para Brasília. Tudo por causa do filho caçula, que virou sócio de um importante
escritório de advocacia por lá. Um amor de rapaz, mas que nem por isso
justificava aquela preferência por parte de Gervásia. Coisas de mãe, alguém poderia
dizer, provocava rancor no resto da prole.
Devidamente instalada em um amplo apartamento
na Asa Sul, Gervásia sentia falta das amigas de carteado. Um bando de velhos,
por assim dizer, que passava tardes acaloradas à custa de chá servido com
torradas. Geleia ou manteiga, de acordo com o gosto de cada um.
Gervásia se
sentia tão isolada em Brasília, que estava disposta a aceitar qualquer convite
para eventos. E, na primeira oportunidade que surgiu, lá foi a velha cumprir o
papel de moradora na reunião de condomínio. Entre tantos assuntos
desinteressantes, acabou se aproximando da Eulália, idosa quase tão anosa como
ela.
Surgiu uma conexão
tão forte entre as duas, que resolveram prolongar o papo após a reunião acabar.
Prometeram um chá para o dia seguinte, e foi o que aconteceu, justamente no
apartamento da Gervásia. Conversa vai, conversa vem, descobriram tantos gostos em
comum. Amavam o Cauby Peixoto, eram apaixonadas pelo Marcello Mastroianni e
adoravam jogar buraco.
Eulália, que possuía
uma patota que já havia dobrado o cabo da boa esperança há tempos, propôs outro
chá para a quinta-feira. Quis porque quis que o evento fosse no seu
apartamento, mas foi convencida por Gervásia que fosse no dela. Dito e feito,
lá estava aquela gente bebericando chazinho e degustando torradinhas no lar,
doce lar da Gervásia.
Mesa armada, as
duplas foram formadas e o jogo de cartas virou tradição naquele prédio. Ninguém
queria perder aqueles eventos tão disputados. De vez em quando, apareciam
dois ou três outros velhos. Para falar a verdade, eram mais velhas do que velhos,
principalmente as quase inseparáveis Vânia e Deise Mentirinha. Esta era
conhecida por tal alcunha não porque tivesse o hábito da inverdade, mas pelo
simples fato de ser uma mulher bem baixinha, quase anã. E, como mentira tem
perna curta, o apelido pegou logo na infância e, mesmo após tantos anos, a
perseguia. No início a irritava, chegou até quase virar caso de polícia. E
virou!
E foi assim que ela conheceu
seu falecido marido, Paulão Suspiro, o então delegado linha dura da 1ª
Delegacia de Polícia de Salvador. Aliás, o policial não era afeito à guloseima
que lhe serviu de alcunha. Isso era devido aos suspiros que as mocinhas da época
davam quando se defrontavam com aquele homem charmoso, ainda mais quando afiava
as pontas do bigode bem cuidado. Seja como for, Paulão, que media para lá de um
metro e noventa, logo de cara se viu apaixonado pela Deise. E tudo porque ela,
então com menos de 20 anos, havia ido à delegacia depor contra um grupo de
arruaceiros que vivia zombando de suas perninhas tão curtas: “Olha, menina,
mentira tem perna curta!”, provocavam.
O depoimento
caiu no esquecimento. A moça chegou até mesmo a agradecer a Deus pelo apelido,
já que foi graças a ele que conheceu o homem da sua vida. E, dessa forma,
passou a não ligar. Ou melhor, até ligava, mas quando as pessoas passavam muito
tempo sem lembrá-la do apelido. Tanto é que vieram os filhos, os netos e, mesmo
assim, ela sempre fez questão de falar para todos, sem exceção, como foi o dia
do primeiro encontro com o seu Paulão Suspiro.
Os dois viveram 45 anos
relativamente felizes, até que Paulão não suportou os efeitos de um enfisema
pulmonar e, depois de agonizar por quase duas semanas, deu seu último suspiro.
Mentirinha, meio a contragosto, atendendo aos apelos do filho que acabara de se
separar, mudou-se para Brasília. Infeliz no começo, acabou se enturmando com a
Eulália, com quem passou a dividir as agruras da viuvez. Mas deixemos de lado
tais histórias, pois hoje o jogo de buraco está tão disputado, que periga sair
faísca.
- Nota de esclarecimento: O conto "Chá com torradinhas e buraco" foi publicado por Notibras no dia 14/5/2024.
- https://www.notibras.com/site/gervasia-paulista-faz-jogo-de-buraco-soltar-faisca/
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