sexta-feira, 31 de maio de 2024

Quando a coragem deixa a desejar

             Ailton, após quase seis meses de conversinhas infrutíferas, tomou coragem. Decidido, aproximou-se da mesa de Edivânia, colega de trabalho. Em pé em frente à mulher, mas sem valentia de encará-la, o homem se tremia todo.

          — Você está bem, Ailton?

          — Tô.

          — Vê se não vai me cair duro aqui. A Marli já limpou o chão hoje.

          O destemor, que o gajo imaginava estar ao seu lado, ao menor sinal de perigo, o abandonou. Sem maiores expectativas, Ailton tratou de dar meia-volta. Edivânia, atolada em serviço, apenas balançou a cabeça e voltou a atenção para a montanha de papéis à sua frente. 

          Hora do cafezinho, segunda tentativa. Lá estava o Ailton, garrafa térmica na mão, quando Edivânia apareceu. Ela pegou uma xícara e a estendeu para o rapaz. Ele se tremeu que nem vara verde.

          — Ailton, você hoje está muito estranho. Aconteceu alguma coisa?

          — Não.

          — Do jeito que você está tremendo, melhor eu me servir. Dê aqui essa garrafa.

          Não demorou, Edivânia, xícara na mão, caminhou firme até a sua mesa. Poderosa que era, sabia muito bem que o colega estava acompanhando seu andar. E andou divinamente para deleite do Ailton, que jurou para si próprio que, da próxima vez, falaria o que estava lhe causando palpitações no coração. 

          As horas correram mais do que o esperado naquele dia. Pobre Ailton, não teve ímpeto de se aproximar da colega, até que, finalmente, o momento de ir para casa chegou. Já no corredor, por um desses acasos que acontecem quando mais tememos, eis que o homem se viu diante da Edivânia. 

          — Ailton, você está bem?

          — Tô.

          — Olha, sei que às vezes é difícil se abrir, mas sou sua amiga. Se quiser, podemos conversar qualquer dia desses. Que tal me convidar para jantar?

          Ailton não acreditava no que estava ouvindo. Sem medo de ser feliz, aceitou prontamente a sugestão de convidá-la para um jantar. Marcaram para a sexta-feira seguinte em um afamado restaurante da cidade. 

          E lá estavam os dois pombinhos sentados, frente a frente num dos melhores pontos do restaurante, de onde poderiam desfrutar a vista do jardim logo abaixo. A temperatura agradável permitiu que a mulher retirasse o casaco. Ailton precisou se esforçar para não tirar os olhos dos olhos de Edivânia. 

          Antes de fazerem os pedidos, resolveram tomar um aperitivo. Ailton, animado com a bebida, começou a balbuciar algo, mas sua voz estava quase inaudível, o que dificultava a comunicação. Edivânia pediu para ele falar um pouco mais alto, momento em que o homem mexeu levemente na cadeira para se aproximar. Mas eis que um dos pés da cadeira tombou para o lado e lá se foi o Ailton rolando que nem jaca madura ribanceira abaixo até atolar a fuça na terra bem ao lado de uma rosa.

          Edivânia, desesperada, começou a rir de nervoso, enquanto apontava para o colega. Garçons vieram acudir Ailton, que se levantou e foi puxado pelos braços firmes dos funcionários do restaurante. Os outros clientes, curiosos, olharam para aquela cena digna de pastelão. 

          Lá estava o Ailton, rosto todo coberto por terra, mas com uma rosa na mão. Ele ergueu o braço e a ofereceu para Edivânia. Apesar do gesto arrojado, o homem não conseguia proferir nem uma palavra sequer. A mulher, que de boba nada tinha, sorriu.

          — Ailton, você quer ser meu namorado?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Quando a coragem deixa a desejar" foi publicado por Notibras no dia 31/5/2024.
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quinta-feira, 30 de maio de 2024

Desgruda, Carrapicho!

                 Carrapicho não sabia o porquê daquele apelido. Não que ficasse incomodado, pois, até onde se tem notícia, não fazia a menor ideia do significado dessa palavra. Tanto é que, quando precisava informar o nome de registro, gaguejava até que saía Juvenildo Araripe dos Santos. Mas deixemos de lado tanta complicação e voltemos para a praticidade do codinome. Carrapicho! 

          Assim que deu os primeiros passos, o moleque não desgrudava da saia da mãe, Laurinda. Não importava se a mulher estivesse varrendo o chão, lavando aquele monte de roupas no tanque ou mesmo indo até a esquina na venda do Onofre. Lá ia o menino agarrado que nem carrapato. 

          Dos seis aos 17, Carrapicho foi levado para a escola pelas mãos firmes da mãe. Ele, choroso, tentava de todas as maneiras se manter grudado, mas Laurinda, mais firme, desvencilhava as mãos do rebento das suas e o deixava entregue para não virar burro. Que estudasse, pois a vida, não raro, pode ser cruel.

          Carrapicho, então aos 18, entrou na faculdade. Que orgulho para Laurinda, que ainda sofria com a dependência constante do filho, que não a queria largar. 

          — Arrume uma namorada!

          — A minha namorada é a senhora, mamãe.

          Apesar do complexo de Édipo, o rapaz acabou traído pelo próprio coração, que se apaixonou por Laura, uma moça do mesmo curso. O casal, após quatro longos anos de namoro, se viu formado e, menos de seis meses após, assumiu compromisso de amor eterno diante do padre. 

          Carrapicho e Laura viviam uma vida confortável. Bem empregados, salários juntados muito acima da média, poderiam passar férias anuais em qualquer lugar. Mas o marido, afeito a manter os mesmos hábitos, conseguia convencer a mulher a irem para a mesma cidade, onde se hospedavam no mesmo hotel e, graças às reservas antecipadas, no mesmo quarto. 

          Laura achava graça das manias do esposo, até que, certa manhã fria de junho, arrumou as malas e foi morar com Pedro, antigo colega de faculdade, que há pouco havia se separado. Quanto ao Carrapicho, desolado, caiu no mundo. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Desgruda, carrapicho!" foi publicado por Notibras no dia 30/5/2024.
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Minha avó e suas histórias

        Vovó, nascida em Olinda, mas soteropolitana de coração, era uma figura! Sempre cheia de sorrisos e ótimas histórias na ponta da língua. E, se não se lembrava de uma, inventava e ficava ainda melhor. Meus irmãos, primos e eu arregalávamos os olhos e apontávamos as orelhas em sua direção e, logo após o fim, minha mente infantil divagava sobre cada trecho.

              — Vovó, os bolsos do paletó do seu pai eram mesmo cheios de caramelos?

             — É verdade, Pedrinho. Papai sempre voltava do trabalho com os bolsos bem cheios de caramelos. Mamãe brigava com ele, mas depois até ela entrava na brincadeira e pegava alguns para comer depois da janta. E todos ríamos.

          Na escola, eu contava pros meus amigos que meu bisavô possuía um terno mágico, de onde saíam balas, bombons e, em dia de muito calor, até picolé para que todos pudessem se refrescar. Até hoje não sei se vovó havia mesmo nos contado dessa forma ou, então, sonhei com ela me dizendo isso. Meus colegas ficavam maravilhados com aquelas histórias recontadas e, nesses momentos, eu me sentia importante que nem vovó. 

          Mas não pense você que minha avó era apenas uma contadora de casos. Não, senhor! Era a melhor cozinheira do mundo. Isso, aliás, foi motivo de discórdia quando ela recebeu a visita do seu único irmão ainda vivo, que, apesar de ser meu tio-bisavô, costumava chamá-lo de tio Chico. 

          E lá estava quase toda a família reunida. Meu avô sentado em uma das cabeceiras da mesa, tio Chico na outra. Vovó estava próxima ao marido, enquanto eu me sentava justamente na primeira cadeira à esquerda do seu irmão. Tio Chico falava dos tempos de menino, quando começou a falar como é que minha bisavó era tão boa com os filhos, além de excelente cozinheira, que sabia fazer o melhor espaguete do mundo.

          — Mas o da vovó é muito melhor, né, tio Chico?

         — Pedrinho, sua avó sabe lá cozinhar? Você precisava provar a comida da minha mãe!

          A minha vontade era de dar um belo chute na canela do tio Chico. Não fiz isso, mas durante muitos anos acabei ficando com birra dele. Como é que ele foi capaz de falar aquilo da própria irmã? A mágoa, apesar de sanada após eu entrar na faculdade, não me deixou desfrutar da companhia do tio Chico por longo tempo.

          Hoje, perto de completar 50 anos, sinto saudade daqueles tempos. Até meus amigos mais próximos, que de vez em quando passavam os finais de semana na casa da minha avó, falam que ela era como amálgama. É verdade, vovó conseguia unir todos os parentes como ninguém. E, desde que ela se foi no ano passado, a família se divorciou. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Minha avó e suas histórias" foi publicado por Notibras no dia 30/5/2024.
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quarta-feira, 29 de maio de 2024

Bartô, a bebida e o cachorro

 

              Bartolomeu, Pinto por parte da mãe, Cavalcante vindo do pai, acordou numa segunda-feira decidido a nunca mais beber. Na verdade, sejamos sinceros, o homem jamais apreciou o gosto do álcool. O que o atraía para tal hábito era mesmo o efeito que ele provocava. 

                  Não que o homem sentisse ter poderes de invencibilidade e pudesse enfrentar o mundo. Não! Nesses momentos, Bartô se sentia livre das obrigações. Nada de contas para pagar, nada de acordar cedo para ir para o trabalho. Tanto é que, esses momentos eram vividos, entre a noite de sexta-feira e o domingo, no interior do quarto-e-sala que o homem dividia com ninguém. No dia seguinte, todavia, a conta vinha alta na forma de ressaca. 

              A semana se arrastou, como se testando os nervos do Bartô. Clientes dos tipos chato e muito chato tomaram-lhe quase toda a paciência, sem falar no chefe, cada vez mais exigente. Quanto ao salário, apesar de não ser dos melhores, dava para os gastos. 

              Sexta-feira! Último cliente atendido, derradeiro minuto no emprego. Bartô olhou o relógio e pimba! O homem acabara de ganhar o salvo-conduto. Tratou de sair daquele martírio antes que o patrão o intimasse para reunião de última hora. 

         Já na calçada, o sujeito foi em direção ao mercado, mais por hábito do que necessidade. Pegou um pacote de macarrão, molho pronto e duas latas de sardinha. Passou diante da prateleira de bebidas, onde suas pupilas dilataram. Olhou os preços, percebeu que a cerveja favorita estava na promoção. Resistiu.

          Na fila do caixa, pensou em retornar para o corredor e pegar a bebida. Travou uma batalha entre o desejo e a promessa, até que, já decidido a buscar ao menos algumas latas de cerveja, a moça do caixa o despertou: "Senhor, é a sua vez!"

          Bartô, sentado no sofá, já havia rodado por todos os canais da televisão. Nada o atraía naquelas programações. Foi até a cozinha e vasculhou a geladeira em busca de uma cerveja esquecida no fundo da gaveta. Nenhuma sequer, a não ser uma garrafa de água com gás. Tomou um gole e sentiu as bolhas querendo fugir pelas narinas. 

          O homem foi se deitar, mas a cama lhe pareceu um enorme espaço vazio. Passou a noite toda rolando de um lado para outro, até que, sem se dar conta, adormeceu. Não teve pesadelos, mas sonhou que estava sentado diante de uma praia, com as ondas lambendo seus pés. O dia estava ensolarado e convidava para tomar aquela gelada.

          Bartô despertou decidido a tomar uma cerveja. Olhou ao lado, mas só encontrou a garrafa de água com gás pela metade. Que se dane promessa de não mais beber. Iria comprar uma lata de cerveja, apenas para saciar aquele desejo incontrolável. Que fossem duas ou três, não importa.

          Lavou o rosto, colocou uma bermuda e uma blusa, calçou o chinelo, pegou a carteira e foi em direção ao mercado. No caminho, foi abordado por um homem segurando um filhote de cachorro. 

          — Pastor alemão legítimo!

          Bartô tentou se desvencilhar, mas o tal homem insistiu.

          — Cinquenta reais.

          — Não estou interessado.

          — Faço por 30.

          — Não quero cachorro.

          Bartô, finalmente, livrou-se daquela situação. Já na porta do mercado, virou-se para o vendedor, quando seus olhos fitaram os do cachorro. Sentiu impulso de voltar, mas desistiu. Já em frente à prateleira de cervejas, percebeu que a sua preferida continuava na promoção. Pegou duas caixinhas com seis. Foi em direção à fila do caixa, mas algo o incomodava.

          — Senhor, é a sua vez!

          Bartô olhou para a moça do caixa e, naquele instante, percebeu que precisava fazer algo. Deixou as cervejas no chão, pediu desculpas para a atendente e saiu correndo do mercado. Algumas pessoas da fila comentaram que aquele lá devia ser mais um dos tantos malucos neste mundo. Outras riram.

          Esbaforido pela corrida, Bartô abordou o homem do cachorro. 

          — Quanto é mesmo esse bicho?

          — Cinquenta reais.

          — Você disse que fazia por 30.

          — Então, faço 30 pro senhor.

          Bartô abriu a carteira e só encontrou uma nota de 10.

          — Tenho isso.

          O vendedor olhou para a cédula na mão de Bartô, olhou para os lados, balançou a cabeça, mas acabou aceitando a oferta. Pegou os 10 reais, entregou o cachorro, que de pastor alemão não tinha nem a sombra, dobrou a esquina e sumiu. 

          Com o cachorro nos braços, Bartolomeu Pinto Cavalcante se sentiu arrependido por seu impulso, ainda mais porque aquele ser minúsculo parecia ter vindo do esgoto. Que fedor! Sem coragem de jogá-lo à própria sorte, levou-o para casa, onde precisou gastar um frasco inteiro de xampu para deixar o animal com um cheiro agradável.

          — Cheiroso! 

          E foi esse o nome dado para aquele pequeno ser, que logo se transformou num grande cachorro, não apenas em tamanho, mas em amizade. Bartô ainda luta contra a vontade de embebedar, mas tem resistido. Tanto é que, assim que acorda, não esquece de trocar algumas palavras com o Cheiroso.

          — Que bom que a gente está se vendo. É sinal de que estamos vivos. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "Bartô, a bebida e o cachorro" foi publicado por Notibras no dia 29/5/2024.
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terça-feira, 28 de maio de 2024

Mãe racional, pai babão

 

            O convívio com Manuela, minha filha de oito anos, tem me feito refletir sobre a vida. Não que eu seja dessas mães que consideram os filhos como os seres mais lindos e espetaculares do mundo. Para falar a verdade, minha cria poderia passar despercebida em um grupo de crianças brincando na praia aqui em Maceió, caso não fosse pelo ruivo dos seus cabelos. 

          Jorge, meu marido, babão que é com a Manu, enaltece qualquer feito da menina. Ele faz questão de guardar cada desenho da nossa filha em álbuns que abarrotam as gavetas do armário da sala. Se recebemos visitas, lá vai o homem mostrar os talentos da garota, como se ela fosse Pablo Picasso. Confesso que dois ou três são até bonitinhos, mas nada que pudesse ser exposto em alguma galeria.

          A xícara com várias digitais da Manu, feita há dois anos, é a única que o Jorge toma café. De tão ciumento, ele não deixa que ninguém a toque, pois tem medo que quebrem. Meu esposo, assim que acaba de usá-la, vai até a cozinha e, cheio de dedos, a lava com o maior cuidado. Depois de seca, volta com a dita cuja e a guarda em uma caixa de papelão forrada com algodão. Se quebra, é possível que eu fique viúva. 

          Eis que aqui estou no escritório com um cliente. Sentado do outro lado da mesa, o sujeito me questiona sobre as chances de ganharmos uma causa trabalhista. Apesar do chamativo bigode que se mexe vigorosamente a cada palavra dita pelo dono, meus ouvidos estão suficientemente atentos para não perder o fio da história. Faço algumas perguntas, pois já não aguento ouvir aquela voz, até que, finalmente, exponho meu parecer. Cliente satisfeito, ele se levanta e me estende a mão.

          Sozinha, tomo um gole de água, quando percebo uma mensagem no celular. É o Jorge, que disse que a diretora da escola da nossa filha ligou. Manu ralou o joelho, mas está bem. Não sei o que me deu, pois não sou dessas mães desesperadas. No entanto, quis ver a minha garotinha naquele instante. Além do mais, o colégio fica aqui perto do meu trabalho.

          Dez minutos depois, estava com Manu no colo. Ela me deu um abraço e um beijo tão carinhoso, como se fosse eu que estivesse sofrendo. Olhei o joelho ralado da minha filha.

          — Dói ou arde?

          — Arde que dói, mamãe!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Mãe racional, pai babão" foi publicado por Notibras no dia 28/5/2024.
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Jamir, o boêmio caseiro

    

    Jamir, farrista desde rapazola, só foi arrancado da mesa dos bares após ser fisgado pela atraente Aurora, cujas curvas poderiam ser de vedete das mais afamadas, caso não estivessem quase sempre cobertas pelos panos do casto vestido. Amor ao primeiro olhar, o homem, perto de completar 40 anos, precisou se esforçar para conquistar a donzela.

    Aurora aceitou o namoro e até noivou, mas com a promessa do homem largar aquela vida repleta de bebidas e sambas noite afora. De olho na belezura, jurou que, a partir daquele instante, seria um novo Jamir. Nada mais de farras. E, por mais incrédulos que fossem, os amigos não tardaram para perceber que aquilo era conversa séria.

    Do emprego para casa, da casa pro emprego, não raro, sentia vontade de voltar à vida de outrora. No entanto, após cada noite debaixo dos lençóis, o gajo era novamente convencido de que o melhor era mesmo ficar em casa. E foi ficando, até que, ao completar 70 anos, ganhou um presente inusitado da mulher: uma mesa de bar e quatro cadeiras.

      O homem quase desfaleceu de alegria. Recomposto, colocou o presente na sacada. E assim passava boas horas acompanhado de um copo de cerveja e um cigarro apagado no cinzeiro. Nada de fumo ou, então, o enfarto chegaria mais cedo do que o esperado. Para completar o cenário, na parede ao lado, um quadro com o escrete do Vasco campeão de 1949, sem contar a vitrola que cismava em soltar a voz inconfundível do Jamelão. 

      Se Jamir havia saído da boemia por décadas, ela continuava firme no íntimo do homem. Mas nada de gozá-la nos botecos e botequins espalhados pela cidade. Não mesmo! Jamir, marido domesticado, se transformou em um boêmio caseiro.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Jamir, o boêmio caseiro" foi publicado por Notibras no dia 28/5/2024.
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segunda-feira, 27 de maio de 2024

Santana e o furto em residência

    O plantão da delegacia estava abarrotado, mas o agente Ricky Ricardo precisou designar dois policiais para um local de furto em residência. Chamou o Pedro, um dos mais competentes da delegacia. No entanto, para acompanhar o colega, estava sem melhores opções e, por isso, mandou o Santana. Que lástima! Fazer o quê?

    Os dois agentes, já na viatura a caminho do local de crime, tiveram que enfrentar um engarrafamento.  Pedro, ao volante, procurava encontrar uma brecha entre os carros para chegar logo, enquanto o Santana, com aquela vontade louca de acender mais um cigarro, abriu a janela da viatura. As baforadas começaram a sair da chaminé instalada entre o nariz e o queixo do antigo policial. 

        Quase meia hora após, eis que os canas estacionaram em frente a uma casa na parte mais nobre da cidade. Pedro, mas ágil e proativo, desceu do veículo para desenrolar aquela situação. Quanto ao Santana, com os costumeiros movimentos de bicho-preguiça, ainda quis acender outro cigarro antes de descer da viatura. 

        Pedro, serelepe que nem esquilo, sacou um pequeno caderno e uma caneta do bolso a fim de começar a anotar os detalhes para começar as investigações. Também precisava averiguar possíveis pontos de vestígios deixados pelo ladrão para que a seção de perícia fosse acionada. Quando o policial estava conversando com a dona da residência, eis que o Santana surge. Pedro, que já conhecia o modus operandi do colega, se afastou para procurar alguma pista, enquanto Santana e a vítima conversavam.

        — Por onde o ladrão entrou?

        — Por aquela janela.

        — Hum... O ladrão entrou por aquela janela?

        — Sim.

        — Entrou por aquela janela?

        — Isso.

        — O ladrão entrou por aquela janela, né?

        — Foi o que eu disse.

        — Hum... Então, a senhora está me dizendo que o ladrão entrou por aquela janela ali?

        Após quase 10 minutos naquela lenga-lenga, a mulher começou a se irritar com o Santana. Pedro, percebendo a situação, tratou logo de puxar o colega pelo braço e ir embora, mesmo porque sabia que precisava retornar o mais rápido possível para a delegacia, pois Ricky e Evelina estavam sozinhos para atender aquele mundaréu de gente. Mal entraram na viatura, o Santana, com a cara mais cínica do mundo, ainda quis se fazer de desentendido.

        — Você viu aquela mulher, Pedro? Que estresse foi aquele? Esse mundo está mesmo perdido!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Santana e o furto em residência" foi publicado por Notibras no dia 27/5/2024.
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domingo, 26 de maio de 2024

Texto escrito pela Cecília Baumann para Notibras

     

Cecília Baumann

    Acaba de ser lançado 57 CONTOS E CRÔNICAS POR UM AUTOR MUITO VELHO, do escritor Eduardo Martínez, pela Joanin Editora. Como o título indica, o livro é uma criteriosa seleção de 57 contos e crônicas, que, apesar da variedade de assuntos e situações, mantém uma coesão literária. Tem-se a impressão de que os textos fazem parte do mesmo livro, da mesma proposta, ao contrário do que normalmente acontece.

      Eduardo domina a linguagem e, melhor, mostra que tem completo discernimento sobre o que pretende passar para o leitor. Sua escrita é rica e, surpreendentemente, fácil e gostosa de ser lida. E, após a última palavra, dependendo da história, o sentimento surge, podendo ser em forma de gargalhada, revolta, tristeza, pois, que nem Nelson Rodrigues, a vida como ela é.

          Mas não pense você que Eduardo seja uma nova versão de Nelson, bem como este não é a versão antiga daquele. São distintos, o que demonstra que a literatura brasileira consegue ser inovadora nesses tempos tão corridos para se tomar um Chicabon na esquina.

       Li e reli 57 CONTOS E CRÔNICAS POR UM AUTOR MUITO VELHO, mas não consegui escolher a minha história favorita. No entanto, não há como passar em branco pela capacidade criativa de Eduardo em O PAI DO ROCK FOI UM PÉSSIMO CAÇADOR, revoltar-se com o cinismo do protagonista em A CARTA E A URNA, conter uma lágrima em MENINO DA ROÇA e gargalhar com o final de GENUÍNO, O SINCERO. E, parafraseando o título de um dos contos do livro, O MUNDO LÁ FORA o aguarda, Eduardo Martínez.

           A capa do livro é muito interessante. Mostra o autor de costas com sua filha na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre. A orelha foi escrita pelo professor José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da Universidade de Brasília. O jornalista José Seabra assina o prefácio. E os comentários de última capa são escritos pela jurista Soraia Mendes, pelo escritor e poeta Daniel Marchi e pelo professor Leandro Mendes. 

            www.joanineditora.com.br

             Whatsapp: (51) 98594-0921

http://www.joanineditora.com.br/57-contos-e-cronicas-por-um-autor-muito-velho

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Bianca e o medo da pobreza

    

    Bianca, a despeito da pobreza beirando a miséria na infância, conseguiu sobreviver e, pode-se até afirmar, venceu na vida. Não que tenha ficado milionária como praticamente nunca acontece para quem vem de baixo. E não me venham com falácias, pois a estatística está bem aí para dar aquela bicuda nessas historinhas para boi dormir. 

    Acordava cedo, mas não por causa do trabalho, já que começava na repartição às 13h. Gostava de manter o corpo em forma e, por isso, era a primeira a entrar na academia logo ali no final da rua. E, após mais de uma hora de malhação, corria de volta para o lar, doce lar. Mas não pense que a mulher pegava o elevador. Não mesmo! Enfrentava aquela imensidão de degraus até o sexto andar. 

      Lá por volta do meio-dia, banho tomado, a mulher almoçava e, em seguida, dava os últimos retoques na maquiagem. Nada de muito chamativo. É verdade que guardava um trunfo na bolsa, mas que era sacado apenas em momentos especiais: um batom cor rosa fúcsia.

        A mulher, assim que pisava na calçada, atraía olhares de todos os lados. Fingia não perceber e, firme, caminhava por quase um quilômetro até vencer as portas do prédio onde trabalhava. Cumprimentava os que precisava cumprimentar e, um ou dois minutos após, entrava na sua sala. Pendurava a bolsa no encosto da cadeira, colocava um pouco de café na xícara, sentava-se. 

        Olhos fechados, levava a xícara até os lábios. Que delícia de café! Isso a levou a relembrar tempos difíceis vividos ainda menina, quando precisou crescer rápido para que a fome não a consumisse. Quem a visse agora jamais imaginaria que Bianca, um dia, passou tanto aperto. 

        Mas se a mulher havia saído da pobreza, parece que a pobreza não saiu dela. Tanto é que, enquanto ainda sorvia o tal café, um primo distante telefonou pedindo dinheiro. Não muito, para dizer a verdade, mas que fez Bianca reviver seu passado sombrio.

        — Duzentos reais?

        — É que preciso arrumar a geladeira, Bianca.

        — Ah, assim não dá! Desse jeito fico na mão de calango.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Bianca e o medo da pobreza" foi publicado por Notibras no dia 26/5/2024.
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O aniversário do tio Pedro

    

        Tio Pedro, perto de completar 100 anos, nem deve saber o que a parentada está preparando para o próximo domingo. Mamãe me telefonou e disse, no costumeiro tom de intimação, que é para eu não chegar muito tarde à festa. Nem procurei argumentar que estou atolada de serviço no trabalho, as crianças estão em fase de provas finais e, para piorar, ando desconfiada que o Roberto, meu marido, está de caso com uma rapariga daqui do prédio. Sem falar que moramos em São Luís, que fica a mais de 350 quilômetros de Caxias, aqui no meu amado Maranhão. 

          O aniversariante, na verdade, é meu tio-avô, irmão do meu avô materno, falecido ano passado perto de chegar aos 104. Não completou, mas quem é que, em sã consciência, vive tanto tempo? Pois é, vovô, o mais velho dos irmãos, era teimoso pela vida. 

          Sem perspectivas de inventar desculpas, já que sei que nenhuma funcionaria diante da enxurrada de argumentos de mamãe, tratei de convencer as crianças de que pegaríamos a estrada no sábado. Nem me preocupei com uma improvável recusa do Roberto, que, certamente por estar cheio de culpa, foi o primeiro a me apoiar. Meu esposo, do alto do cinismo, disse que estava com saudade da minha mãe, com quem nunca se deu bem, mas também não vou ser hipócrita e falar que eram como genros e sogras das corriqueiras piadas. 

      Para minha surpresa, a viagem foi muito gostosa e, melhor ainda, reveladora. O mau humor de todos parece ter ficado em São Luís. Até a Lúcia, minha filha, que sofre com as mudanças próprias da adolescência, aceitou de bom grado as brincadeiras tão infantis do irmão. A certa altura da estrada, observei-a pelo retrovisor. Seus olhos sorriam e, então, carinhosamente ela beijou o rosto do Marcos. 

          Eu não queria estragar aquele momento tão doce com a minha família, mas, em uma das paradas, enquanto as crianças escolhiam algo para comer, aproximei-me do Roberto com a intenção de questioná-lo sobre a tal sirigaita. Ele me abraçou, me beijou nos lábios e, sorrindo que nem menino, me confidenciou algo.

          — Meu amor, quero te contar uma coisa.

          — O quê?

          — Ontem fechei um contrato com uma companhia exportadora de tecnologia.

          — Você não me falou nada sobre isso.

          — É que estava com receio de não dar certo. Mas olha que coincidência!

          — O quê?

          — Uma das sócias dessa companhia mora no nosso prédio. O marido dela soube que eu sou advogado e que sou especialista nesse ramo. Quem falou para ele foi o seu Zé, o porteiro.

          Abracei meu amado e fiel marido como há muito não o fazia. Que homem maravilhoso! Sou uma mulher de muita sorte! Sem falar que ele continua um gato após quase 15 anos de casamento. 

          Chegamos a Caxias a tempo de almoçarmos com meus parentes. Sentei-me ao lado do tio Pedro. Creio que puxei algo dele: a paciência. A algumas horas de completar 100 anos, o irmão do meu avô teve 15 filhos, 57 netos, 83 bisnetos e 7 tataranetos. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O aniversário do tio Pedro" foi publicado por Notibras no dia 26/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/viagem-a-caxias-desfaz-suspeita-sobre-uma-tal-sirigaita/

sábado, 25 de maio de 2024

A arte de crochetar

     

    Se aqueles dois se casaram por amor, nem eles se lembravam. Talvez tivessem atração física um pelo outro ou, então, o medo de terminarem sozinhos neste mundo os uniu. Seja uma coisa ou qualquer outra, seja até mesmo a falta de algum motivo, o fato é que Madalena e Jaime pareciam ter tomado caminhos distintos, mas não necessariamente opostos. 

        Casados há 34 anos, Madalena amava flores, enquanto Jaime passava hora diante da televisão vendo aquela infinidade de programas esportivos e filmes de guerra. Quanto mais sangue, melhor! Com a masculinidade em frangalhos, precisava encontrar testosterona em algum lugar. 

          O marido cansou de reclamar que a mulher passava horas fazendo crochê e não dava atenção a ele. Como é que alguém pode achar normal a mulher passar tardes inteiras entretida com agulhas e rolos de fios intermináveis? Jaime, cheio de razão, cansou de reclamar.

          Madalena, por sua vez, a cada dia, demonstrava maior habilidade para criar tanta coisa a partir do entrelaçamento daquelas linhas. Toalhinhas aqui, enfeites acolá, até um enorme tapete florido era questão de tempo para surgir. Um espanto de velocidade! Como é que ela conseguia, o marido não conseguia entender. A mulher, no entanto, se divertia com seu hobby. Tanto é que até se esqueceu da última vez que recebeu um carinho do esposo. Cansou de esperar por aquele homem tão insensível. Que traste!

          Aconteceu num domingo, final de algum campeonato qualquer. Jaime, rodeado de amigos aposentados, disputava com eles quem é que falava mais grosso. Madalena, talvez prevendo o ambiente tóxico, foi visitar uma amiga, a Arlete, que também gostava de crochê. Crochetaram, crochetaram, crochetaram até que, enquanto ainda crochetavam, a campainha tocou. 

        Era o Augusto, morador do apartamento de cima. O homem foi pedir um pouco de açúcar. Enquanto Arlete foi até a cozinha, ele olhou para as mãos habilidosas da Madalena. Ficou encantado. A mulher sorriu.

        — Ponto baixíssimo duplo?

        — Sim. Conhece?

        — Um pouco. Vovó fazia, mas minha mãe nunca me deixou aprender.

        Arlete voltou com uma xícara com açúcar até a borda, quando percebeu que Madalena estava ensinando o vizinho a crochetar. Tratou de fechar a porta e deixou a xícara sobre a mesa. Os três passaram o final da tarde crochetando, crochetando, crochetando. 

          Dois meses após, Arlete pegou seus apetrechos e foi morar com Augusto. Dizem que os dois vivem crochetando. Quanto ao Jaime, parece que a testosterona está cada vez mais baixa. Tanto é que o sangue continua jorrando da tela da televisão. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "A arte de crochetar" foi publicado por Notibras no dia 25/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/jaime-testosterona-em-baixa-perde-para-o-croche/

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Mamãe era assim

    

            Mamãe era um doce quando queria. O problema é que, tirando o chamego que tinha pela minha irmã caçula, todos os outros eram tratados como quase estranhos. Não que ela não nos reconhecesse como filhos, pois sabia de cor o nome de todos nós. É que minha mãe não era muito afeita a dengos, talvez por conta da criação que tivera, que a fez dura que nem pedra. 

          Laurentina Gomes. Gomes por conta do padre que a acolheu na porta da igreja. Mamãe, recém-nascida, foi deixada embrulhada em trapos. O religioso até pensou em cuidar da criança, mas a idade avançada o impediu. Tanto é que, meses após ter acolhido mamãe, o homem não mais se levantou. Tiveram que chamar outro padre às pressas para rezar missa.

          Minha mãe acabou no orfanato e, apesar de ainda ser bebê, não teve a sorte de ser adotada. Não que fosse feia, era até bonita, como provam alguns raros retratos. É que, como mamãe sempre fala, ela não nasceu com a cor da moda. Preta retinta, foi jogada para o final da fila até que completou 18 anos e foi atirada no mundo. 

          Trabalhou em casa de família, comeu o pão que o diabo amassou. Não sofreu chibatadas, é verdade, mas os olhares, muitas vezes silenciosos, a cortaram nas carnes. Precisava sobreviver e ficou calada, até que a sorte lhe sorriu diante de uma banca de bicho. 

          Apostou no cachorro, deu veado na cabeça. Tudo parecia perdido, não estava. Mamãe fez amizade com o apontador, o Binha, que gostava de se fantasiar de mulher no carnaval. Ele arranjou emprego para mamãe, que, desde então, cresceu na contravenção. A única mulher gerente na região. 

          Levou tempo, mas todo mundo passou a conhecer a Dona Laura. Após quase 40 anos no ofício, muita gente graúda foi no seu velório. Rafael, meu marido, era um dos mais comovidos. Chorava como um bebê diante do caixão. 

          — Dona Laura, a senhora sempre foi como uma mãe pra mim.

          Se mamãe pudesse ouvi-lo, certamente diria:

          — Quem tem filho grande é elefante. Grupo 12!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Mamãe era assim" foi publicado por Notibras no dia 24/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/quem-tem-filho-grande-e-elefante-grupo-12/