sábado, 2 de agosto de 2025

Jaque Venturi, a influencer

    

Jaqueline é, por assim dizer, influenciadora, haja vista os milhares de seguidores que comprovavam facilmente tal condição. Influencer, prefere, como se isso significasse dois ou três degraus acima na concorrida escala das subcelebridades.

          Vez ou outra, a mulher é abordada por algum fã na rua ou na fila do mercado. Ela finge naturalidade, apesar dos olhos arregalados, como se estivesse diante de algo tão inusitado como, por exemplo, se uma árvore fosse atingida duas vezes por raios. 

          — Não acredito! Você é a Jaque Venturini?

          — Sim!

          — Ah, acompanho todos os seus posts. Você é demais!

          — Ah, obrigada!

          — Nossa, você é muito mais linda ao vivo! Posso bater uma foto?

          Após quase 30 fotografias, as agora quase melhores amigas se despedem com aquele abraço apertado e dois beijinhos nas faces. Cada uma vai para um lado. Difícil mesmo é afirmar quem saiu mais emocionada, se foi a fã ou, então, a quase famosa. 

          Mas não pense você que vida de famosinha da internet é fácil. Não mesmo! Pois fique sabendo que a nossa heroína do campo virtual precisa lidar com as coisas terrenas. Mulher, mãe, trabalhadora, esposa... Sem contar que nem sempre a criatividade chega no tempo certo para escrever aquele texto impactante, que vai viralizar. 

          Jaqueline tem lá seus receios, pois não quer publicar abobrinhas. Entretanto, isso não a impede de postar, postar e postar seus pensamentos e sentimentos. É complicado, mas seja o que Deus quiser!

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Jaque Venturini, a influencer" foi publicado por Notibras no dia 2/8/2025.
  • https://www.notibras.com/site/e-preciso-ter-coragem-para-expor-pensamentos-e-sentimentos-na-internet/

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Conversa sobre Alcebíades

    

         Aconteceu num ponto de ônibus em Brasília, quando aqueles dois desconhecidos se encontraram. O bate-papo foi inevitável, já que a espera seria longa.

          Alcebíades. Conheceu? Um tipo quase comum que andou por aqui, caso não fosse por uma ou outra surpresa que provocava nos que lidavam com o sujeito. Às vezes tímido, era capaz de certos atrevimentos. Não que fosse indecente, mesmo porque, até onde me consta, era fiel à eterna noiva. Luciana, bela mulher, dona dum sorriso improvável diante de desconhecidos. 

          Um metro e sessenta e cinco, não passava disso. Talvez menos, e não gostava de usar subterfúgios para parecer mais alto. Não que chegasse a ser o dono do pedaço, mas carregava certa confiança imprópria nos de sua estirpe. Mero motorista de táxi, como tantos outros por aí. Aquele bigodinho aparado com esmero, o providencial pente no bolso da camisa, calça tergal, sapatos baratos do dia a dia. Não o culpo, a vida naquele tempo era dura, inflação às alturas, a censura... 

          Você se lembra, né? Não se podia falar nada, que era capaz de te levar pra não sei onde, e nunca mais ninguém saberia de você. E ninguém perguntava, pois perigava sumir também. Mas era um tempo bom, do pra frente, Brasil. E tínhamos Pelé, Gerson e o Furacão, sem falar daquele cracaço que era o Tostão. Eita, mineirinho que sabia fazer gol. Pena que parou de jogar tão cedo. Ou parava ou, então, poderia até ficar cego. Lembra?

          Ih, é mesmo! O papo tá tão bom, que até me esqueci do Alcebíades. Bom sujeito. Sabe, daquele tipo caladão, que falava apenas o necessário ou nem isso. Meu amigo, nem sei por que ele me veio à cabeça agora. Nem éramos amigos. Quer dizer, a gente tinha boa convivência, se conhecia, como quase todo mundo naquela época. Isso aqui era puro barro. Barro vermelho, como você sabe, né?

          Não? O senhor não é daqui da capital? Bem que percebi pelo sotaque. Aposto que é do Rio de Janeiro. Adoro esse modo dos cariocas falarem. Você acredita que ainda não conheço o Rio de Janeiro, meu amigo? Pois é, conheço só das novelas. Quantas praias lindas, né? Olha eu aqui me esquecendo do Alcebíades de novo. 

          Gente finíssima, mas que chegava a causar aquela coisa... Como é que posso dizer? Certo desconforto por algumas coisas que falava. Se bem que, na maior parte do tempo, era calado. Sem contar que, de vez em quando, desaparecia por um tempo. Depois voltava e, dois, três meses depois voltava a desaparecer. 

          Quando retornava, os colegas do ponto de táxi... Havia um ponto de táxi bem ali próximo à W3, mas não existe mais. Pois é, o Alcebíades parava o Fusca dele ali. Naquele tempo era muito comum taxista com Fusca. Hoje virou carro de colecionador. Como tem doido por aí, né, meu amigo? 

          Você gosta de Fusca? Ah, é um automóvel bonito, carrega tradição. É o que digo pra minha patroa sempre: "Adalgiza, um dia ainda vou ter um Fusca!" O quê? Você não tem um Fusca? Mas quer ter, né? Não?  Ah, prefere o carro novo? É melhor, né? Carro velho só dá problema.

          Olha aqui eu desviando a conversa de novo, meu amigo. Pois é, o Alcebíades era um tipo esquisito. Esquisitíssimo, por sinal. Sempre que aparecia lá no ponto de táxi, os colegas iam falar com ele.

          — Mas por que você sumiu, Alcebíades? Até parece que não gosta da gente.

          — Ah, vocês são maravilhosos, mas evitá-los é melhor.

          Pois é, meu amigo. Pra você ver! O Alcebíades era um tipo esquisito pra lá de metro. Né?

  • Nota de esclarecimento: O conto "Conversa sobre Alcebíades" foi publicado por Notibras no dia 1º/8/2025.
  • https://www.notibras.com/site/quando-aqueles-dois-desconhecidos-se-encontraram-o-bate-papo-foi-inevitavel/

quinta-feira, 31 de julho de 2025

O velho e A Verdade Nos Seres

   

Laerte, próximo a se aposentar, sentia uma angústia de não saber o que faria com o tempo livre, que logo chegaria. Desde sempre trabalhara, seja ainda adolescente no pequeno comércio da família, seja depois em múltiplos empregos até que, por indicação de um tio-torto, se tornou auxiliar administrativo de uma importante empresa do ramo de laticínios. E, quase quarenta anos após, gozava de uma posição privilegiada para quem nem era parente dos donos.

          Gerente. Pois é. O sujeito era gerente do setor de exportações, o que lhe permitia viver confortavelmente, ainda mais porque não casou, não teve filhos e as despesas não iam além das que alguém de 64 anos necessitava. É verdade que era apreciador de vinhos finos, além de só tomar café gourmet. Tais mimos, entretanto, nem chegavam a pesar no orçamento.

          Poderia segurar as derradeiras férias e, assim, receber uma boa quantia quando se aposentasse. Entretanto, Laerte decidiu que precisava aprender a ficar sem fazer nada. Não necessariamente nada, pois poderia viajar, conhecer lugares que nunca havia visto além da tela da televisão. João Pessoa? Salvador? Paris? Não poderia faltar o Rio de Janeiro. Sim, a cidade mais linda do mundo, das praias estonteantes, do carnaval que não deixa ninguém parado. 

          O primeiro dia, resolveu passar em casa. Pegou um livro de poesias há muito adiado. A verdade nos seres. O autor era um tal Daniel Marchi, cuja foto de orelha mostrava um homem compenetrado. O que o poeta estaria pensando? O prefácio era assinado por outro tal de nome Jorge Lenzi, também poeta. 

        Laerte precisou ler a dedicatória para se lembrar de como é que aquele exemplar teria parado em suas mãos.

        Querido Laerte,

           Espero que você encontre nestas páginas não o sentido da vida, 

mas algo que o faça sorrir, mesmo que em desespero.

                Com carinho,

                                      Juliana              Setembro/2024.      

            Passou a manhã degustando as poesias, entre pausas longas para reflexão e sorver duas ou três xícaras de café. A amiga estava certa. Houve sorrisos, alguns carregados de sentimentos profundos, o que fez Laerte refletir sobre a própria vida. 

       À tarde, preparou um breve almoço, com temperos que o transportaram para outros tempos. A presença da saudosa mãe poderia ser sentida, diante do adolescente sem sonhos. Como envelhecera tão rápido? Rápido demais para sentir as perdas ao longo do caminho. 

        Ao anoitecer, depositou A verdade nos seres na cabeceira ao lado e adormeceu. Despertou antes dos primeiros raios, lavou o rosto, escovou os dentes, enquanto observava as olheiras daquele desconhecido do outro lado do espelho. Pegou a tesourinha de unha e, antes de sair do quarto, colocou o livro no bolso do roupão.

        Sentado na cadeira de balanço da varanda, cortava pacientemente cada unha dos pés, como se estivesse em transe, até que foi despertado por gritos de crianças no parquinho em frente. Laerte observou por alguns instantes aqueles seres minúsculos, balançou a cabeça e sorriu. Aparou mais uma unha e, ao voltar os olhos para o parque, se deparou com uma mulher sentada debaixo de uma árvore.

        Ela estava curvada sobre um livro, como se alheia a tudo ao seu redor. De onde estava, Laerte não conseguia saber o que aquela jovem estava lendo. Todavia, no seu íntimo, desejou que fosse A verdade nos seres.

  • Nota de esclarecimento: O conto "O velho e A Verdade Nos Seres" foi publicado por Notibras no dia 31/7/2025.
  • https://www.notibras.com/site/laerte-nao-sabia-como-e-que-aquele-livro-teria-parado-em-suas-maoslaerte-precisou-ler-a-dedicatoria-para-se-lembrar-de-como-e-que-aquele-exemplar-teria-parado-em-suas-maos/

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Altair, o esnobe

        

               Não temia o desprezo, mas algo muito pior o afligia como se fosse mais grave do que a própria morte. Afinal, alguém perderia o próprio tempo para se lembrar dele? Justamente o ser alheio ao mundo ao seu redor, muito mais preocupado com o próprio umbigo do que, talvez, enxugar as lágrimas que, porventura, escorressem por faces conhecidas.  

               Altair Cordeiro, cujo hábito era agir na surdina que nem lobo, não perdia nem um mísero minuto do seu dia para cuidar das aflições alheias. Era todo voltado para o seu íntimo, como se nada mais importasse. Nem mesmo um bom-dia sincero, quando os olhares se cruzam. Meras formalidades não pareciam interessar o sujeito.

               No prédio onde residia, bem ali na Asa Norte, era vizinho de porta de Adelaide, cuja viuvez havia levado o marido, mas compensado com uma bela pensão. Não que ela pudesse fazer estripulias com o dinheiro, até porque os remédios que precisava tomar por causa dos problemas que surgiam a todo instante por conta da idade faziam questão de torná-la comedida, o que não quer dizer que fosse mão de vaca.

               Comedida, sim, mas apenas em relação às finanças, pois a velha esbanjava bom humor. E, assim que esbarrava com algum morador ou funcionário do edifício, abria aquele sorriso sincero. 

               — Bom dia, seu José!

               — Bom dia, dona Adelaide!

               — Bom dia, Maria!

               — Bom dia, dona Adelaide!

               — Mas que cachorrinho mais lindo!

               — Oi, dona Adelaide! Este é o Pitoco.

               — Bom dia, Pitoco!

               — Au, au, au, au!

               — Parece que o Pitoco gostou da senhora, dona Adelaide.

               — Ah, ele é muito lindo! Qual é a raça?

               — Num tem raça, não. É vira-lata mesmo.

               — Ah, mas nem parece.

               O medo de Altair era não ser lembrado. Logo ele, que se considerava acima de tudo e de todos, como se fosse a própria reencarnação de Dom Pedro I. Até ostentava o mesmo bigode em ferradura, tão fora de moda, mas que fazia com que as pessoas o associassem ao antigo imperador do Brasil. 

               De tão metido à besta, fazia questão de não responder nem mesmo às saudações da simpática Adelaide. Esta, por sua vez, não levava a mal, como se a vida já lhe tivesse ensinado que há todo tipo de gente neste mundo. Quanto aos outros moradores, nem mencionavam mais o nome do homem.

               Aconteceu durante uma viagem para o Nordeste. Altair resolveu entrar no mar e, excelente nadador que se considerava, foi puxado por uma correnteza. Nunca mais foi visto, e ninguém se deu conta do seu sumiço. Último degrau antes do completo esquecimento.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Altair, o esnobe" foi publicado por Notibras no dia 30/7/2025.
  • https://www.notibras.com/site/o-homem-incapaz-de-enxugar-as-lagrimas-que-escorressem-por-faces-conhecidas/

terça-feira, 29 de julho de 2025

Maggiolino, o Chefe e Dona Zezé

 

        Para quem não sabe, o mais recente contratado do Notibras carrega a sugestiva alcunha de Maggiolino. Sim, isso mesmo! É que, em italiano, Maggiolino significa besouro, o que é deveras apropriado para um Fusca. Mas não um Fusca qualquer. Trata-se de um dos automóveis mais emblemáticos do poeta e escritor Daniel Marchi, o nosso Dan, editor do Café Literário. 

     De tão elevado prestígio, Maggiolino possui até credencial selada, registrada, carimbada, avaliada, rotulada e até assinada pelos baluartes do jornal: José Seabra, Wenceslau Araújo e Armando Cardoso. E, com tamanha distinção, o pequeno notável, apesar de paulista de montagem, está gabaritado a voar por toda extensão do Distrito Federal.

      Seabra, vulgo Chefe, que é o Diretor da Sucursal Regional Nordeste do Notibras, estava de passagem por Brasília, quando precisou atender um chamado de última hora. Desse modo, um dos nossos melhores jornalistas não refugou quando o Wenceslau, o Editor-Chefe do Notibras, lhe pediu um favor em forma de "ou você faz isso ou, então, estamos lascados!"

       — Não tem como pedir pro Mathuzalém?

      — Num tem, Chefe. O Mathuzalém, desde que o Dan lhe deu aquela garrafa de absinto, vive no maior porre.

          — E a Marta?

          — Tá de férias e só volta no mês que vem.

          — E o...

          — Armando?

          — Sim.

          — Ih, aquele ali só quer escrever sobre os graúdos da política.

          — Então?

          — Então, sobrou você, Chefe.

          — Beleza! Qual é a bronca?

          — Dona Zezé.

          — A cafetina?

          — A própria.

          — O que tem ela?

          — Precisamos entrevistá-la.

          — Só se for no Campo da Esperança.

          — Mas ela não morreu.

          — Não?

          — Não.

          — Então, deve ter mais de cem anos.

          — Noventa e três.

          Dona Zezé, usufruiu de benesses das autoridades após o Golpe de 1964. Proprietária da então mais afamada casa da luz vermelha da região de Planaltina, teria sido protegida de influente coronel ligado à Ditadura Militar. Alguns dizem que era por conta de parentesco, outros afirmam categoricamente que eram amantes, enquanto a verdade, deveras esfumaçada, parece apontar para outro caminho. 

        A idosa há muito teria largado o empreendimento. Dizem que tudo por culpa das feministas, que, pasmem, alçaram voos antes inimagináveis para moças direitas. Ademais, a idade chegou e, desse modo, Dona Zezé resolveu fechar as portas do cabaré e se refugiar em sua mansão no Park Way, construída com o suor das inúmeras mulheres que fizeram o Distrito Federal tremer em tempos de outrora. 

          A missão do Chefe era entrevistar Dona Zezé para que suas memórias se tornassem uma série de reportagens que seriam publicadas na editoria Quadradinho em Foco durante uma semana inteira. Seria um sucesso, ainda mais porque certamente seriam revelados segredos que há muito estavam sob o tapete da hipocrisia da capital.

          E lá foi o Chefe ao volante do Maggiolino a caminho do lar, doce lar da Dona Zezé. Mal chegou, foi recebido por uma sorridente senhora de cachos brancos e carisma de fazer inveja até mesmo ao presidente Lula. Não tardou, a anfitriã, braços dados, levou o famoso jornalista para um passeio pelo jardim de hortênsias, enquanto ele anotava em um pequeno bloco os pontos cruciais da entrevista.

          O bate-papo durou quase duas horas, até que Dona Zezé convidou o Chefe para almoçar. Diante de uma mesa com pernil assado, arroz branco, aipim frito e salada, o homem não se fez de rogado. Comeu e repetiu. 

          Mais do que satisfeito, o Chefe se despediu com um longo abraço e os dois tradicionais beijinhos nas faces. Foi aí que ele ouviu algo que o desconcertou.

          — Seabra, por favor, só quero te pedir uma coisinha.

          — O que a senhora quiser, Dona Zezé.

          — É que não quero que você publique nada do que te revelei até que eu parta desta para melhor.

          Diante daquele pedido, o Chefe não teve como recusar. Desse modo, até o momento, não foi escrita nem mesmo uma palavra sobre as revelações bombásticas da Dona Zezé. Afinal, como o baluarte do Notibras faz questão de dizer, tão ou mais importante do que o sigilo da fonte, todo jornalista precisa ser fiel a ela. 

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Maggiolino, o Chefe e Dona Zezé" foi publicada por Notibras no dia 29/7/2025.
  • https://www.notibras.com/site/convocado-as-pressas-o-jornalista-jose-seabra-nao-teve-como-refugar/

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Um tipo a ser estudado

    Afrânio é um tipo a ser estudado. Não porque tenha algum dom que possa alçá-lo à condição de emérito em qualquer área. Bem, esquece o que acabei de escrever, já que o mundo está repleto por imbecis que cospem asneiras como se entendessem de economia, história, ecologia e até vacina. 

    Recomecemos, então, com aquele tipo que até poderia ser estudado, caso a falta de assuntos importantes fosse alarmante. Afrânio Santos de Almeida, 44 anos de quase total inutilidade. Não! Não sejamos tão cruéis com o pobre sujeito.

    Que tal 44 anos de uma vida regada de sofrimento? Gosto desse contraste, como se regar algo fosse digno de pensamentos saborosos que nem... Sorvete de morango? Hum... Não.

        Afrânio Santos de Almeida, também conhecido apenas como Afrânio, carrega a sina de ser desagradável. Sim! Desagradabilíssimo! Verdadeiro crápula! Não necessariamente um crápula de verdade. Não! Creio que a palavra mais adequada seja...

      Inconveniente! Isso! Penso que tal vernáculo define perfeitamente o nosso amigo... Amigo? Hum... Não! No máximo, personagem de crônica ou conto, dependendo do contexto. Prefiro algo mais frio como, por exemplo, persona non grata

       Pois lá estava o Afrânio no apartamento do Wenceslau Araújo, Editor-Chefe do Notibras, localizado no Sudoeste. Sinceramente, não sei quem franqueou a entrada do... Inconveniente! Isso!

        Também não sei como é que o Wenceslau permitiu que o Afrânio adentrasse no recinto. Talvez tenha sido levado por alguém ou, então, encontrou a porta do apartamento aberta e decidiu entrar, provavelmente atraído pela boa música ou pelo cheiro inconfundível de sardinha frita e cerveja. Aqui vale um adendo, já que sardinha frita é algo que o anfitrião sempre faz questão de fornecer aos convidados, talvez por remeter aos mais tradicionais botecos da sua cidade natal, o Rio de Janeiro.

        Pois lá estávamos nós confortavelmente acomodados em cadeiras na varanda, quando o Afrânio, que ninguém conhecia até então, chegou com um copo de cerveja na mão e lambendo as pontas dos dedos logo após dar a derradeira dentada no afamado peixe que vive em cardumes. José Seabra, o Chefe, com seu costumeiro modo sorridente de fazer amizade, logo convidou o, a partir daquele instante, novo amigo. Certamente não sabia que, na verdade, tratava-se de um penetra. 

       Marta Nobre, Maria Amália Alcoforado, Armando Cardoso, Mathuzalém Júnior, Daniel Marchi, Cecília Baumann (Ceci), Dona Irene e eu fazíamos parte do grupo que festejava mais um aniversário do Wenceslau. Afrânio até tentou passar uma cantada na Ceci, mas foi elegantemente mandado para um lugar próximo a Netuno.

        A conversa prosseguiu, até que o Mathuzalém falou que estava namorando. Sim, isso mesmo! Todos felicitamos o nosso companheiro de trabalho, até que o Afrânio, ele mesmo, começou um interlúdio pra lá de sem-noção com o agora apaixonado.

      — É bonita?

      — É bonita, sim, mas o que me chamou mais a atenção nela foi a inteligência.

       — E como é essa inteligência dela? Alta, baixa, gorda, magra?

  • Nota de esclarecimento: A crônica "Um tipo a ser estudado" foi publicada por Notibras no dia 28/7/2025.
  • https://www.notibras.com/site/afranio-mais-do-que-penetra-e-o-rei-da-inconveniencia/

domingo, 27 de julho de 2025

Quando o passado vem à tona

               

            Pedro Matias, que ganhou a alcunha de Zero-Zero na Magnu, a mais afamada oficina para os lados de Sobradinho, parece que anda ressabiado com dona Benedita, cliente das mais assíduas. Leopoldo, dono do estabelecimento, acha graça da situação, ainda mais porque o seu funcionário sempre botou banca de garanhão.

               Para quem não sabe, não faz a menor ideia ou desconhece, Pedro Matias serviu o exército por algum tempo até chegar ao posto de cabo. Aliás, o gajo era conhecido no quartel de Formosa-GO por ser o único com permissão para usar bigode, pois havia pedido ao comandante, que foi com a cara do sujeito.

        Cabo Matias, pois era esse o nome de guerra do rapazola. No entanto, até onde se tem conhecimento, a única batalha travada foi no cabaré da dona Santinha. Dizem as boas e as más línguas que a comerciante do amor tinha trânsito livre até com o governador. 

               A despeito de fazer parte da clientela da casa de luxúria, Cabo Matias começou a arrastar a asa para Rosinha, moça da igreja, que, até onde se tinha notícia, ninguém lhe tocara os lábios. Dona Lourdes, mãe da senhorita, que conhecia de longe a má fama do sujeito, fez de tudo para afastá-lo da filha. Mas sabe aquele ditado que diz que quanto mais afasta, mais o Diabo quer juntar?

               Em menos de mês, lá estava o jovem casal, braços dados, desfilando pela praça em frente à igreja. Não pense você que a coisa era solta, pois lá estava dona Lourdes logo atrás que nem cão pastor protegendo ovelha de lobo. E assim ficou até que, no final do ano seguinte, após curto período de namoro, somado a respeitáveis meses de noivado, o casório aconteceu. 

               Cabo Matias e Rosinha pareciam o par perfeito. Ele saía cedo para o quartel e, quando dava, retornava para o almoço para se deliciar com os pratos típicos preparados pela esposa. Tudo dentro dos conformes de verdadeiro conto de fadas. 

              Agora vamos dar um corte nessa história e retornar para a oficina do Leopoldo, alguns minutos antes do Pedro ficar cabreiro com dona Benedita. É que, até então, os dois não se conheciam.

               Leopoldo, mal abriu a oficina, se deparou com dona Benedita ao volante de um velho Fusca azul. A velha queria que dessem um trato no veículo, pois ele participaria de um encontro de apaixonados por automóveis antigos. Acertados valores e tempo de entrega do serviço, Dona Benedita foi apresentada então mais novo funcionário da Magnu.

               — Zero-Zero?

               — É, dona Benedita. É assim que eles me chamam por aqui.

               — Hum! Te conheço de algum lugar, seu Zero-Zero.

               — Acho que não, dona Benedita.

               — Hum! Pois não sou de esquecer facilmente de um rosto.

               A idosa fitou o Pedro por alguns instantes, balançou a cabeça e, assim que já estava pensando em desistir, abriu aquele sorriso.

               — Já sei!

               — Já sabe o quê, dona Benedita?

               — Seu Leopoldo, já sei de onde conheço o seu funcionário.

               — E é de onde?

               — Ele era o marido da Rosinha.

               — Rosinha?

               — Sim, Leopoldo!

               — Ei, Zero-Zero! Tu já foi casado?

               — Já, mas não sou mais.

               — Também, depois do chifre que você tomou. 

                — Ô, dona Benedita, agora a senhora acabou comigo. Já estava até me esquecendo desse episódio lamentável da minha existência.

               Pois é, dizem que Rosinha, frequentadora tão assídua da igreja, recebia a visita do pastor sempre que o Cabo Matias saía para trabalhar.  

  • Nota de esclarecimento: O conto "Quando o passado vem à tona" foi publicado por Notibras no dia 27/7/2025.
  • https://www.notibras.com/site/dona-benedita-nao-perdoa-e-faz-revelacao-bombastica/

sábado, 26 de julho de 2025

O quase compadre

 

Tio João é um tipo incomum. Não que tenha poderes sobrenaturais ou algo assim, mas simplesmente porque sabe entreter familiares e amigos com histórias. E, sempre que possível, lá estou eu sentada diante dele, olhos arregalados, orelhas atentas e um leve sorriso nos lábios, pois sei que, não demora, meu parente mais ilustre vai estalar a língua e começar a contar um dos seus inúmeros causos. 

          Almoço de família, todos com os buchos cheios, eis que estávamos na enorme varanda da casa da minha mãe, quando tio João estalou a língua. Eu, que levava uma xícara de café aos lábios, tratei de repousá-la ao lado. Não tardou, titio começou a falar sobre uma situação que aconteceu há quase 40 anos na região rural de Brazlândia.

          "Joaquim era quase meu compadre. Quase porque o meu amigo não teve tempo de batizar a Sônia, que já estava passando da hora de ter a cabeça molhada pelas mãos do padre. Chiquinha e eu tivemos que chamar às pressas o Tião ou, então, perigava da nossa primogênita virar pagã. 

          O homem era um touro, tinha saúde pra dar e vender. Ninguém imaginava que poderia acontecer algo com ele, ainda mais naquele domingo, já agendado para o batismo da Sônia. Mas nada do Joaquim aparecer. O que teria acontecido com ele? 

          Minha Chiquinha, que Deus a tenha, cuspiu marimbondos, falou horrores do Joaquim. Mas é lógico que se arrependeu depois, pois a ausência do quase compadre acabou sendo mais do que justificada. O meu amigo estava morto.

          Morto e de morte matada. Não por desafeto, que Joaquim até possuía um ou dois. Foi por cobra venenosa. Sim, isso mesmo! E não pense vocês que era uma serpente qualquer. Naninanão! Era uma cascavel, com seu chocalho de fazer arrepiar até nuca de cabra metido a valente. 

          Quem viu o Joaquim ser picado foi a própria mãe, dona Anísia. A pobre mulher teve um piripaque e desmaiou na hora. Mas foi testemunha do fato ocorrido e, assim que voltou a si, encontrou o filho morto ao lado. Não se sabe se o Joaquim tentou acudir a mãe ou, então, se o veneno foi tão poderoso que matou o pobre coitado na hora. 

          A notícia se espalhou, até que chegou aos ouvidos das pessoas que estavam na igreja para o batizado da minha filha. Padre Alfredo não teve dúvida e trocou o batismo pelo velório, que varou madrugada adentro. Dona Anísia e Chiquinha foram as que mais choraram. A primeira porque perdera o único filho; Chiquinha por arrependimento do que havia dito sobre o Joaquim.

          O enterro aconteceu bem cedinho no outro dia. E todo mundo que era parente ou amigo do Joaquim apareceu. E a cascavel, que não era nem uma coisa nem outra, também estava lá, talvez até com remorso da sua atitude. A bicha deu uma boa olhada, chacoalhou o guizo e, em seguida, se embrenhou no mato."

          Assim que terminou de contar o causo, tio João ergueu o rosto, como se essa lembrança lhe trouxesse sentimentos profundos. Não sei se alguém mais percebeu, mas os seus olhos estavam marejados. 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O quase compadre" foi publicado por Notibras no dia 26/7/2025.
  • https://www.notibras.com/site/joaquim-por-motivo-de-forca-maior-faltou-ao-batizado-em-brazlandia/

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Gêmeas quase idênticas

   

          Marineide e Marinete, gêmeas univitelinas, eram iguais em quase tudo. Quase tudo porque a primeira parecia ter nascido com o bumbum virado para a Lua, enquanto Marinete, que teria sido a segunda a sair da barriga da mãe exatos 13 minutos após, certamente carregava todo o peso do mundo nas costas. E, por conta dessas incongruências de sinas, a caçula começou a acreditar que a sorte só lhe sorriria caso a irmã morresse. 

          Não que Marinete desejasse qualquer mal à parenta. No entanto, cansada de viver tantos martírios, uma sementinha do mal começou a germinar na mente da azarada. E se, por acaso, Marineide tropeçasse sem querer e batesse a cabeça na quina da mesa da sala? Que a morte fosse instantânea, já que não seria Marinete a querer que a amada irmã sofresse. 

          Ciente de que Marineide costumava sair do quarto descalça, pois adorava sentir o geladinho da cerâmica, Marinete fez questão de passar pano úmido no chão. Mas não pense você que a consciência bateu, mesmo porque era o seu dia de fazer faxina na casa. 

          — Ai, que chão gostoso!

          Era a primogênita, braços erguidos e sorriso contagiante. Marinete, rodo na mão, observou a irmã, como se estivesse aguardando por um desfecho fatal. Que nada! A sortuda passou radiante, foi até a cozinha, pegou um copo de leite e retornou que nem bailarina para o quarto. 

          Marinete ficou furiosa com a cena e, talvez por isso, tenha perdido o equilíbrio e caiu de bumbum no chão. Ui! Doeu! Entretanto, o que ficou mesmo ferido foi o orgulho. 

          A partir daquele momento, a caçula resolveu decretar guerra. Todavia, não se deu ao trabalho de avisar a irmã sobre sua decisão. Por que dar armas à inimiga? O ataque seria na encolha. 

          E a mulher tentou, tentou, tentou... Ih, tentou de tudo! Até colocar veneno de rato num pedaço de bolo. O problema é que, na hora de entregá-lo para a irmã, Marinete se confundiu e acabou comendo o pedaço envenenado. Por sorte, percebeu o equívoco assim que engoliu o primeiro naco e correu desesperada para o banheiro. Vomitou até os bofes, mas não morreu. 

          Marineide não aparentou desconfiança, mas parece que aquela luzinha de alerta foi acesa. A partir daí, passou a observar melhor as atitudes da irmã mais nova, e, não tardou, não teve a menor dúvida de que ela estava tramando algo. E, na primeira oportunidade, deu o troco.

          Aconteceu alguns dias após o caso do bolo. A campainha tocou, e lá foi a Marineide atender. Flores. Aliás, um buquê caprichado de rosas vermelhas, cuja mensagem geralmente vem carregada de amor, paixão, sedução e desejo. Que felicidade! Entretanto, o melhor mesmo foi quando Marineide, buquê nas mãos, passou pela irmã e disparou:

          — Tá com inveja, bebê? Morda as suas costas!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Gêmeas quase idênticas" foi publicado por Notibras no dia 25/7/2025.
  • https://www.notibras.com/site/enquanto-uma-nasceu-para-sorrir-outra-para-chorar/

quinta-feira, 24 de julho de 2025

O quase furo de reportagem

          

            Assim que abasteci a minha velha câmera com mais um rolo de filme, eis que o senador, em pé e com o dedo indicador da mão direita em riste, esbravejada diante dos repórteres. É tudo mentira o que andam falando por aí. Não sou o que os adversários dizem. Mentira, repito! Aliás, repito e repilo qualquer ofensa dirigida à minha pessoa, tão digna quanto minha amada mãe diria, caso ainda estivesse aqui nesta vida terrena. 

            Eloquência é o que sobrava no político, cuja fama era tão coberta de podridão, que os eleitores já nem se importavam com o odor fétido que exalava de palavras tão falaciosas. Tudo mentira, é verdade. Mas mentiras contadas com propriedade por quem sabe que nem precisaria mais enganar a plateia, desejosa apenas de ouvir a voz firme na infrutífera tentativa de afastar a quantidade enorme de indícios de crimes. 

          Quando apontei novamente a câmera para o político, eis que, antes mesmo de dar mais um clique, o José Seabra (Chefe), editor do jornal, me telefonou. Nada de mensagens, mas ligação mesmo. E bem sei que, nessas horas, é melhor atender.

            — Tá onde?

            — Na entrevista do Couto.

            — Deixa isso pra lá.

            — Mas, Chefe...

            — Tenho coisa mais importante.

            Como precisava pagar o leite das crianças, tratei de obedecer ao meu chefe, que só revelou qual seria a tal coisa mais importante quando eu já estava dando partida no Fusca 1968, cor bege-nilo, que havia pegado emprestado com meu colega de redação, o Dan (Daniel Marchi).

            — Mathuzalém, olha lá o que vai fazer com o Maggiolino!

            Maggiolino. Isso mesmo! Será que todo gênio tem a mania de colocar nomes em carros? Meu pensamento foi interrompido por nova ligação do Chefe.

            — Mathuzalém, vá ao Meliá Brasil 21, que a Marta já está na recepção.

            Trata-se da minha colega Marta Nobre, que assina várias matérias de destaque no Notibras. Mal cheguei, ela veio até mim.

            — Caramba, Mathuzalém! Onde você estava? 

            — Não estou entendendo nada. O que tá acontecendo?

            — Hum! Não tá sabendo mesmo?

            — Não.

            Em vez de revelar o que era, a Marta me puxou pelo braço e subimos até a melhor suíte, onde dois brutamontes estavam diante da porta. Afinal, o que seria tudo aquilo? 

            — Boa tarde, senhora Marta. Ela já está aguardando por vocês.

            Ela? Minha mente começou a entrar em parafuso. Quem seria? Até onde me constava, Elizabeth, a rainha da Inglaterra, já teria partido desta para melhor. 

      Mas eis que, assim que a porta se abriu, lá estava a tal ela. Impossível não reconhecer aquela cruzada de pernas, que ficou eternizada nas telonas. 

      Marta e a afamada atriz pareciam velhas conhecidas, pois trocaram sorrisos, enquanto eu, tremendo que nem adolescente diante de revista adulta, não conseguia tirar os olhos da cena. A visita era segredo e não poderia vazar. Todavia, isso não foi empecilho para que a bonitona se deixasse fotografar. 

       — Fotografa a mulher, Mathuzalém!

        Após mais de cem cliques, tomamos alguns drinques e canapés. E, assim que chegou a hora da despedida, eu estava mais pra lá do que Bagdá. E, ao receber dois beijos da celebridade, prometi ali mesmo que nunca mais lavaria o rosto. 

        Já na garagem, a Marta me perguntou se eu havia vindo de carro. Respondi que sim, mas que era melhor pegarmos um táxi, tamanho o nível alcoólico de nós dois.

Deixei o Fusca numa vaga da garagem do hotel. No dia seguinte, eu daria um jeito de pegá-lo. E foi o que fiz. Vá que acontecesse alguma coisa com o Maggiolino. O Dan certamente iria me matar! 

  • Nota de esclarecimento: O conto "O quase furo de reportagem" foi publicado por Notibras no dia 24/7/2025.
  • https://www.notibras.com/site/missao-secreta-para-materia-especial-faz-mathuzalem-sair-correndo-pela-cidade/

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Evandro, cidadão ítalo-brasileiro

    

        Evandro, nascido e criado em Brasília, era ítalo-brasileiro, como provava o invejado passaporte bordô dos cidadãos da União Europeia. É verdade que não carregava o pomposo sobrenome do trisavô materno: Ferrari.

Um sobrenome que poderia levar alguém ao equívoco de supor que o gajo seria parente do lendário Enzo Ferrari, fundador da marca que está no imaginário de nove em cada dez apaixonados por automóveis. Pouco provável. Diria até que beira o absurdo, já que tal sobrenome é um dos mais comuns dos originários da Bota. 

          Em vez de Ferrari, Evandro carregava Ferreira, que permanecia na família paterna há tanto tempo, que ninguém arriscava a dizer de onde teria vindo. O mais provável era de Portugal. Quem sabe, de um antepassado judeu perseguido durante a Inquisição na Península Ibérica?

          Ferreira ou Ferrari, não importa, já que o homem tinha trânsito por todo o Velho Continente. Melhor, não havia ponto no planeta Terra que o gajo não pudesse colocar os pés. "Sou italiano!", amava dizer para todos, como se isso fosse credencial para ganhar, por exemplo, abatimento na compra do pão de sal na padaria do seu Joaquim, bem ali numa das inúmeras esquinas da afamada cidade por não as possuir.

          Após quase dois anos de esforços hercúleos para juntar grana para, finalmente, visitar a Itália, Evandro desceu em Roma. Sim, isso mesmo! Roma, a Cidade Eterna. Que beleza! O homem sentiu como se estivesse retornando à terra natal, mesmo que aquele seu bisavô fosse de Reggio Calabria, no extremo sul, localidade que parece querer dar uma bicuda na enorme Sicília. 

          Os primeiros dias foram de puro êxtase por cada descoberta, apesar de, antes da viagem, ter estudado com esmero a história e os costumes do local. Tudo perfeito, até que, algo começou a deixá-lo incomodado. Não foi a culinária, que até apreciou. Também não teve o que reclamar da escultura e muito menos da pintura. O problema era sonoro. 

          Evandro percebeu que por ali não havia aquela batida gostosa de uma roda de samba, de uma MPB que penetra na alma e faz o coração sorrir. Até apreciava ópera, mas Enrico Caruso não era Martinho, Luciano Pavarotti não era Elis e, definitivamente, Andrea Bocelli não é Gilberto Gil. Foi aí que o sujeito, xícara de ristretto na mão, gargalhou.

      Todos na cafeteria voltaram os olhares para Evandro. Seria aquele homem um doidivana? Eis que, então, erguendo a xícara para a plateia de última hora, ele disse em bom português:

        — Deus me livre de não ser brasileiro!

  • Nota de esclarecimento: O conto "Evandro, cidadão ítalo-brasileiro" foi publicado por Notibras no dia 23/7/2025.
  • https://www.notibras.com/site/brasiliense-por-ter-passaporte-europeu-queria-ate-desconto-na-padaria/