quinta-feira, 2 de maio de 2024

Velhice e vaidade

           Parece, mas não é sempre que ocorre, que o tempo carrega o viço, apesar da vaidade permanecer incrustada na alma. Se isso é totalmente verdade, não se pode afirmar, mas bem que, como mostra esta história, que se iniciou logo ali naquela praça, parece que é. 

          — Como está o Asdrúbal?

          — Anda mal, muito mal.

          — Sério? O que houve?

          — Morrer novo não é bom, mas ficar velho é um desafio e tanto. 

          — Muito complicado.

          — E o pior é que a gente não pode fazer nada, a não ser acompanhá-lo ao médico, ministrar os remédios.

          — Mas ele nem está tão velho assim. 

          — Isso é verdade. No último dia de outubro completará 76.

          — Então!

          — Mas adoeceu muito cedo. O cigarro.

          — Terrível!

          — Pois é.

          José falou em fazer uma visita ao amigo de longa data, proposta logo aceita por mais dois que estavam por ali. E foram em sete, pois angariaram mais alguns desocupados pelo caminho. Mal chegaram, constataram a carranca do velho, que fazia bico até para tomar sorvete de chocolate, seu favorito. 

          Contaram anedotas, mas nada conseguia arrancar Asdrúbal daquela masmorra, até que o Juvêncio, sempre ele, que arrancava ideias de não sei onde, resolveu bater um retrato de todos. Retrato. Nada dessas modernidades de fotografia. 

          O retratista, que carregava sua máquina pendurada no pescoço, mandou que todos se juntassem ao redor do ranzinza. Marcou 10 segundos para o clique e correu para junto daqueles corpos carcomidos. 

          Depois de quase duas horas, Asdrúbal finalmente se viu só. Um alívio, segundo seu próprio pensamento. Foi dormir sonhando com a morte, que desejava ser breve. Que nada, acordou no dia seguinte e no próximo também, quando, então, ouviu a campainha soar irritantemente. Desejou jogá-la fora, mas, antes que o fizesse, foi ver quem era. Juvêncio, que, além do sorriso, trazia o retrato.

          — Não gostei!

          — Por quê, Asdrúbal?

          — O Armando ficou mais bonito que eu.

          — Dificilmente, ainda mais com esse seu grisalho respeitável e hierático.

          — Que nada! Já estou no farelo do biscoito.

  • Nota de esclarecimento: O conto "Velhice e vaidade" foi publicado por Notibras no dia 2/5/2024.
  • https://www.notibras.com/site/morrer-e-complicado-e-quando-jovem-pior-ainda/

Nenhum comentário:

Postar um comentário