Até onde se sabe, não era do conhecimento dos
moradores do bairro o nome daquele homem. Todos o chamavam de Pancada, talvez
por conta da aparente falta de normalidade de suas ações, algumas até
esdrúxulas. No entanto, ninguém o via como possível ameaça, já que nunca
tiveram motivo para tal. Até gostavam dele, como provavam as diversas migalhas
que lhe jogavam, da mesma forma que faziam com os cachorros da rua.
Quando os dias estavam quentes, o mendigo
era facilmente encontrado debaixo de alguma árvore frondosa, especialmente a
mangueira da pracinha em frente à igreja. Lagarteava o dia inteiro, até que, no
final da tarde, espreguiçava-se como um felino que acabara de se levantar.
Precisava se alimentar.
Durante o inverno, Pancada tratava de
arrumar algum jornal velho para se aquecer. Não que a vestimenta puída não lhe
fosse suficiente para suportar o frio, mas o costume, já entranhado em seu ser,
dizia que hábitos deveriam ser preservados. Além do mais, gostava de se
inteirar das notícias, mesmo que antigas, apesar de não saber ler. Divertia-se
com as figuras.
Pancada, quando estava livre de suas
obrigações, que poderiam ser facilmente adiadas para o dia de São Nunca,
apreciava o cheirinho de frango assado. Postava-se logo atrás dos vira-latas
diante da televisão de cachorro da padaria do Manoel. Tantos olhos gulosos
assistindo àquelas aves depenadas girando em longos espetos.
Foi num momento de distração do dono do
comércio que o faminto Pancada teve uma crise de atrevimento. Abriu a
portinhola, arrancou um fumegante frango e o jogou para o alto para não queimar
as mãos. Os cães, concorrentes diretos, tentaram pegar os nacos de direito. Sem
sucesso, pois o mendigo, mais ligeiro, aparou a iguaria com a barra da blusa e
se escafedeu.
Manoel, avisado por um cliente sobre o
ocorrido, foi até a rua, de onde ainda conseguiu visualizar o maltrapilho
correndo desembestado atirando e aparando sobre a blusa o fruto do roubo.
Pão-duro que era, bem que poderia praguejar pelo prejuízo. Que nada! O homem
até achou graça vendo aquele doido tentando não se queimar, ao mesmo tempo em
que era perseguido por uma horda de cachorros.
Alguns fregueses ainda soltaram impropérios em
direção ao maluco. Entretanto, Manoel virou-se e, antes de entrar no seu
comércio, ainda com um sorriso nos lábios, desencorajou qualquer
possível ato de violência contra o mendigo.
— Esse Pancada precisaria ser refundado
para ser normal.
- Nota de esclarecimento: O conto "Pancada, os cachorros e o frango" foi publicado por Notibras no dia 22/6/2024.
- https://www.notibras.com/site/pancada-os-cachorros-e-o-frango-do-dia-de-sao-nunca/
Nenhum comentário:
Postar um comentário