Há causos tão impossíveis de acontecer, que, no entanto, costumam acontecer a todo instante. Basta manter a mente conectada aos ouvidos e olhos para não se deixar enganar. Se bem que, como disse o poeta, nem tudo são flores.
Pois lá estava a equipe de
policiais entediada com a demora da troca de plantão, que só aconteceria dali a
quase uma hora. Foi aí que a mente criativa do Marcos entrou em curto circuito
e pensou em algo inacreditável. Aliás, inacreditável, inimaginável e
improvável. Ele andava de pendenga com o Aurélio, que ainda não completara
dois meses de polícia. O novinho fazia parte do grupo que entraria.
Marcos se lembrou de
um manequim extremamente realista, fruto de apreensão em uma operação na residência
de famoso traficante da região, o Zé Moela. Como a cela estava vazia, ele, com
ajuda do Lauro e a conivência de todos da equipe, pegou o tal manequim no
depósito e o levaram para a cela, onde o penduraram pelo pescoço com uma corda
improvisada com alguns trapos. Pronto! De tão impactante ficou, que até para um
bom observador era difícil perceber que aquele enforcado se tratava, na
verdade, de um boneco.
Cínico como ele próprio, Marcos
convidou o comparsa para um cafezinho especialmente preparado pela Sissi na
cozinha da delegacia. De tão eufóricos que estavam, os dois encheram as
xícaras, mas o Marcos, com aquele sorriso sarcástico nos lábios, fez questão de
beber café sem açúcar.
— Sem açúcar, Marcos?
— Sissi, de doce já basta a
vida!
Às 7h55, o poderoso ronco da
motocicleta anunciou a chegada do Aurélio. Marcos, Lauro e o restante da
equipe, incluindo o delegado Álvaro e o escrivão Rubens, cumprimentaram o
colega e já estavam indo embora, quando o Aurélio perguntou se havia algum
preso. Marcos, com a cara mais deslavada, respondeu que sim. Nisso, o Aurélio
foi verificar se estava tudo bem com o detento e quase caiu duro ao vê-lo
pendurado pelo pescoço. O agente saiu gritando.
— Marcos, peraí! O preso se
matou!
— Isso não é problema meu,
Aurélio. Se vira!
— Não, não, não!!!
Marcos e sua equipe, a despeito
dos protestos do Aurélio, foram embora. Desesperado e temendo que algo
acontecesse e caísse sobre as suas costas, o policial começou a colocar a
cachola para pensar em algo. Ele, então, teve uma ideia. Iria desovar o cadáver
no mato para que algum bicho o comesse. Talvez alguma onça andasse por
ali.
Antes que o resto da equipe
chegasse, Aurélio colocou aquele corpo dentro do camburão. Não tardou, os
colegas chegaram. Todos notaram algo estranho no colega e ficaram com a pulga
atrás da orelha. Aquela situação era muito estranha. Tinha caroço naquele angu!
Aurélio disse que precisaria
sair para resolver alguma coisa. O policial pegou as chaves da viatura,
enquanto os colegas o encaravam com olhos inquisidores. Suando em bicas,
Aurélio ligou o carro e saiu o mais rápido possível da delegacia.
Como a delegacia ficava a menos
de 100 quilômetros da divisa com outro estado, Aurélio rumou para lá. Ele
estava certo que aquela era a melhor solução. Assim que ultrapassou a
fronteira, o agente começou a procurar um local ermo, até que, já tendo
avançado quase 30 quilômetros, percebeu um matagal tão denso, que não teve
dúvida. Seria ali mesmo que desovaria o cadáver. E foi o que fez.
Depois do trabalho feito,
Aurélio tomou a estrada de volta. Acendeu um cigarro e sorriu aquele sorriso
nervoso de quem sabe que acabou de fazer algo errado. Seja como for, não seria
ele o culpado. Até que teve certo orgulho do feito, pois se lembrou que a volta
à academia teria lhe proporcionado um excelente preparo físico. Pois é,
carregou um homem daquele tamanho nos ombros e nem sentiu dificuldade.
Assim que estacionou a viatura
na delegacia, ninguém pareceu notá-lo, pois o local estava apinhado de gente.
Tratou logo de se sentar no seu lugar e atender o povo, que estava impaciente
para registrar os mais variados tipos de boletins de ocorrência. E foi o que fez
durante mais 26 anos, até se aposentar.
Aurélio nunca contou para ninguém o que havia feito. Estava certo de que havia cometido o crime perfeito. Quanto ao Márcio e seus cúmplices, todos acabaram se esquecendo da brincadeira. Dessa forma, mesmo que a felicidade não seja eterna, até onde se tem notícias, o Zé Moela jamais reclamou a devolução do manequim.
- Nota de esclarecimento: O conto "O curioso caso da desova do manequim" foi publicado por Notibras no dia 2/6/2024.
- https://www.notibras.com/site/desova-de-manequim-em-goias-cai-no-esquecimento/
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